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como eu perdi um ano da minha vida
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Antes de começar a contar sobre um dos momentos mais sombrios e ruins da minha vida, eu gostaria de dizer algo a todas as meninas e mulheres que estejam passando ou que passaram por algum abuso ou caso de violência masculina: você não está sozinha. Eu sei que essa é uma frase clichê e eu sei que você se sente assim, mas você realmente não está sozinha. Muitas pessoas vão te questionar e isso vai doer demais, eu sinto muito que você tenha que passar pela mesma situação que eu e outras mulheres passamos. Outra coisa que eu vou dizer e que eu queria ter ouvido na época em que eu passei por um abuso: não tente lidar com isso sozinha. Essa dor, essas marcas, esse acontecimento vai te assombrar por muito tempo e você precisa procurar ajuda. Se alguém lhe negar ajuda, não desista. Existem pessoas que vão te ajudar. Também quero dizer talvez a coisa mais óbvia que não parece tão óbvia quando isso acontece com a gente: não é culpa sua e você não está exagerando. Eu sei que é difícil entender isso, principalmente quando fomos ensinadas a abaixar a cabeça e simplesmente aceitar que somos inferiores e devemos servir a alguém, mas é a verdade: você não está exagerando. Se você conseguir, fale sobre isso - é mais fácil falar do que fazer, porque mesmo depois de seis anos eu ainda não consigo falar sobre o que aconteceu comigo sem chorar.
Enfim, a qualquer pessoa que esteja lendo isso, por favor, não continue se você for sensível ou tiver passado por algum abuso. Acho que meu primeiro parágrafo é o suficiente para você entender o meu recado e procurar ajuda e apoio para lidar com a sua situação. Eu não vou citar nomes de pessoas físicas nem de instituições aqui, apenas pessoas muito próximas a mim sabem do que e de quem estou falando e eu confio nelas e sei que isso nunca virá a público a menos que eu permita. Dito isso, eu vou tentar contar o que aconteceu comigo e como eu perdi um ano da minha vida.
Em 2014, eu estava no primeiro ano do ensino médio. Naquele mesmo ano, eu comecei a namorar. Eu era uma adolescente bem normal, eu era excluída, tinha uma ou duas amigas e não falava muito com outras pessoas. Meu antigo colégio tinha uma dinâmica envolvendo o ensino médio e o curso técnico: no primeiro ano, os alunos teriam uma amostra dos cursos durante um semestre, participando de aulas de cada curso uma vez por semana. No segundo e no terceiro ano, o aluno poderia fazer o curso de sua preferência. Simples. Eu comecei a frequentar essas aulas no primeiro ano e, como sempre, eu não falava com ninguém e ninguém falava comigo. No segundo mês de aula, as pessoas da minha turma começaram a se aproximar de mim e começamos uma certa amizade - daquelas que você chama de amizade, mas na verdade não é. Eu me aproximei de duas pessoas em especial: uma antiga amiga minha da pré-escola (que eu não via há dez anos) e o meu abusador. Eu não conhecia ele até aquele momento, mas eu já tinha ouvido falar dele algumas vezes - pessoas da minha turma que conheciam ele, amigos de amigos, e assim por diante. Nós nos aproximamos e formamos um trio. Todos os trabalhamos naquelas aulas nós fazíamos juntos porque parecia a coisa certa, nos dávamos bem e simplesmente aconteceu.
No dia 10 de abril de 2014, a gente estava na última aula antes do feriadão de páscoa (sim, a data está se aproximando e vai completar seis anos desde que isso aconteceu). A aula daquela vez era do curso técnico de moda e o professor mandou formarmos duplas. Nosso trio se separou, minha amiga fez dupla com outra menina e eu e meu abusador fizemos uma dupla. O trabalho consistia em montar um painel de fotos e imagens para apresentar a ideia de um projeto de moda. Nós estávamos selecionando imagens de algumas revistas e eu dei a ideia de fazer uma colagem com tiras coloridas para preencher os espaços vazios na cartolina. Então, estava eu, cortando as tiras e apenas fazendo o que eu deveria fazer, quando esse cara em questão chegou e falou que eu estava cortando tudo torto e propôs uma aposta: se eu cortasse a próxima tira torta, ele poderia fazer o que quisesse comigo e, se eu cortasse reto, eu poderia fazer o que quisesse com ele. Lembra do que eu falei lá no início? Pois é, eu namorava e eu não tinha interesse nenhum em fazer qualquer coisa com aquele garoto e obviamente ele estava falando de fazer algo sexual. Eu recusei, disse que aquilo era ridículo e continuei fazendo a atividade. Cortando as fitas tortas. Eu estava sentada no canto na parede, na minha frente tinha carteiras e atrás de mim também. Do meu lado, bloqueando minha passagem, estava o meu abusador. Enquanto eu penso em como descrever o que aconteceu nos próximos minutos - que pareceram horas - eu continuo pensando que eu estou exagerando. Eu continuo pensando que, de alguma forma, aquilo foi culpa minha. Eu continuo pensando que não foi nada demais, mas se não foi então por que até hoje eu tenho traumas e marcas que me machucam diariamente? Por que até hoje eu sinto vontade de chorar, vomitar e fugir quando alguém me encosta nos mesmos lugares que o meu abusador encostou? Eu sei que eu não estou exagerando, mas eu ouvi tantas vezes que o que aconteceu não passou de uma brincadeira que eu não consigo acreditar de verdade em mim mesma. Eu duvido de mim mesma e da minha própria dor porque é isso o que o sistema no qual estamos condicionadas faz: ele nos faz acreditar em qualquer pessoa menos em nós mesmas.
Eu vou pedir, mais uma vez, que qualquer pessoa sensível pare de ler agora.
Eu estava sentada entre a parede, carteiras e o meu abusador. Ele se reclinou na minha direção e falou, em voz baixa, “você cortou essas tiras tortas e nós fizemos um trato”. Não, nós não fizemos um trato. Eu falei que não tinha aceitado e que era para ele esquecer aquilo. Ele não o fez. Naquele momento, ele começou a passar a mão na minha coxa, por baixo da carteira, e me falou para não falar nada enquanto ele cumprisse a aposta. Ele começou a passar a mão nas minhas partes íntimas, por cima da calça, enquanto dizia que eu deveria estar gostando e só negava para não pegar mal porque eu tinha um namorado. Eu não conseguia fazer nada, eu fiquei completamente paralisada enquanto ele simplesmente passa a mão em mim. Num determinado momento, ele conseguiu passar sua mão para dentro da minha calça. E naquela hora eu reagi, chamei a atenção dele e, quando ele recuou, eu consegui o empurrar e sair da sala. Eu nunca mais voltei para a aula, nem participei dos outros cursos.
Dois meses se passaram e eu não tinha contado para ninguém o que aconteceu, até que um certo dia eu ouvi alguém falando sobre isso. Sim, pessoas no colégio sabiam daquilo, e pior: eles achavam que foi algo consentido. Automaticamente, para as pessoas que não me conheciam ou não gostavam de mim, eu virei uma vadia. Eu tinha um namorado e eu traí ele com um colega de aula. Essa era a história que o meu abusador contava por aí, dizendo que ele não fez nada que eu não quisesse. Naquele dia, eu soube que eu não poderia fazer nada além de conversar com algum coordenador do colégio sobre aquela situação. Na hora o intervalo, eu e minha amiga fomos para a coordenação e eu pedi pra secretaria chamar o coordenador do ensino médio. Quando ele chegou, eu falei que precisava denunciar um abuso e ele, assustado, me chamou para conversar sozinha numa sala de reunião. Chegando lá, contei tudo o que aconteceu: a aposta, como eu recusei, como o garoto desrespeitou minha decisão e violou minha individualidade. O que eu ouvi como resposta? “Você tem certeza que não passou de um mal entendido?”. Sim, um profissional da educação, responsável por 600 adolescentes, me questionou sobre um claro caso de abuso, importunação sexual, estupro - chame como quiser. Ele falou que ia conversar com o meu abusador para averiguar se eu estava falando a verdade. Obviamente, ele negou. Disse que eu havia concordado com aquela aposta e que nós estávamos entendidos. Ah, detalhe: ele fez isso na minha frente. O coordenador me colocou para relatar, de novo, o ocorrido na frente do meu abusador. Eu não conseguia falar e só sabia chorar. Eu fui chamada de dramática - de forma bem sucinta e implícita - e me recomendaram não denunciar nem envolver a polícia porque isso poderia manchar o nome da instituição. Sim, você leu isso certo.
Quando eu cheguei em casa, eu estava completamente destruída. Eu não tinha ninguém para falar sobre aquilo - ou achava que não tinha. Talvez por pura sorte, minha irmã - que na época não era tão próxima de mim - veio conversar comigo, questionar se havia acontecido alguma coisa e eu contei tudo. Dessa vez, ninguém me questionou. Ninguém perguntou se eu não havia entendido errado ou se eu não estava exagerando. Não. Minha irmã acreditou em mim e na mesma hora ela me perguntou o nome do garoto. Procurou nas minhas redes sociais e mandou uma mensagem bem clara: “Fica longe da minha irmã”. Ele respondeu na hora, dizendo que não me conhecia e que era melhor não envolvermos a polícia porque ele tinha dinheiro o suficiente para fazer a gente ficar sem nada num possível processo. Veja bem, o clássico caso de um cara branco, rico e com contatos em setores importantes suficientes para livrarem ele de qualquer situação. Mais tarde, naquele dia, minha mãe chegou em casa do trabalho. Naquela época, meu pai não morava com a gente, ele havia sido transferido para um cargo da empresa dele em outra cidade. Minha irmã chamou minha mãe para conversar sobre o que aconteceu. Minha mãe não conseguia acreditar, mas não que ela não acreditasse em mim e sim que algo sério como isso acontecesse dentro de um colégio, lugar que deveria oferecer segurança para os estudantes. Contamos da conversa entre minha irmã e ele e como ele havia nos ameaçado caso envolvêssemos a justiça nisso. Nós não tínhamos condições financeiras nem emocionais para lidar com uma briga judicial. Por mais que minha mãe me desse apoio naquela hora, ela achou melhor não levarmos aquilo adiante. E assim foi. Eu perdi um ano da minha vida porque, como mecanismo de defesa, minha mente apagou completamente os acontecimentos daquele ano, só deixando essa e outras pequenas ocasiões. Eu não lembro de nada do que aconteceu no meu primeiro relacionamento sério. Eu não lembro de nada do que aconteceu no meu primeiro ano de ensino médio. Eu simplesmente perdi um ano da minha vida.
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