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Bruno Cruz
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cunhacruz2 · 3 years ago
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Maninho, o último hippie de Uberaba
[Esta é a minha primeira reportagem, escrita em 2014, na disciplina "Introdução ao Jornalismo" — do primeiro semestre da graduação. O texto foi publicado no jornal Revelação, da Universidade de Uberaba, onde fiz metade do curso. A atual versão está revista e atualizada em decorrência da morte de Maninho, "o último hippie da cidade", na madrugada do último dia 13. Apresenta-se este, pois, como uma homenagem ao "maluco beleza" que deu cor à cidade de Uberaba, em Minas Gerais. Descanse em paz, Maninho!]
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“Ele é um exemplo de vida”. Quem diz é Antônio Andrade, funcionário da Escola Professor Chaves, se referindo a João Ribeiro da Silva, homem que há 21 anos mora em uma barraca na calçada da instituição. João, ou Maninho — como é chamado —, vive pelas estradas há 40 anos, e nas ruas de Uberaba há quase 30. Natural de Pedra Azul, norte de Minas Gerais, Maninho se mudou para o triângulo mineiro em 1969, mas não parou mais em casa; a viagem sem rumo, feita sob a influência do movimento hippie, só terminou quando ele já estava com quase 50 anos “nas costas”.
Iniciado nos Estados Unidos na década de 1960, o movimento hippie — mais conhecido caso de contracultura — chegou ao Brasil quando Maninho estava prestes a completar 18 anos. A ideologia levou uma grande quantidade de jovens — a maioria de classe média — a contestar o sistema social da época, abandonando família e bens. Os “malucos de estrada” — como foram apelidados no país — viviam pregando a liberdade, o pacifismo e a crítica ao consumismo. Como Maninho, uma boa parte dos hippies sobrevivera da venda de artesanatos feitos de arame, linhas e alguns cristais.
Mas se engana quem pensa que Maninho não tem família por perto. A alguns poucos quilômetros de onde está instalada a barraca do “último hippie da cidade”, no bairro São Benedito, mora uma de suas irmãs, Isaurina Arruda. A mulher vive com a família no bairro Leblon, região central. Ela conta que sua família já tentou tirar João das ruas por diversas vezes, e que todas foram em vão. Segundo Isaurina, Maninho é muito amoroso, apesar de não aparecer para visitas; para ele, sua “casa” — um caixote de metal que também é uma banca de artesanatos — não pode ficar sozinha.
A rotina de Maninho é quase sempre a mesma, e seu dia conta com pequenas pausas para a prática da Yoga, que — ele diz — acha fundamental para a “limpeza da mente”. As refeições são feitas na calçada da banca, e todas são preparadas por ele mesmo. Maninho conta que aprendeu tudo que considera fundamental para sua sobrevivência durante os vários anos de estrada — desde atividades diárias até a defesa pessoal. E apesar de as pessoas que o conhecem preocuparem com sua saúde, Maninho lembra que fôra poucas vezes ao médico; o hippie assume que, quando precisa, automedica-se.
Todos os dias, por conta própria, Maninho varre a calçada da escola estadual e rega as plantas de um pequeno canteiro, ele também alimenta os pássaros que ali ficam. Heliana Prata, vice-diretora da instituição, diz que o ilustre vizinho está sempre bem humorado, e que é muito educado e solícito com os alunos e funcionários do local. Na calçada, passam olhares indiferentes e até assustados, mas também pessoas que não se hesitam em dar seus comprimentos de bom dia, ou boa tarde, ao “rapaz”; esses recebem de Maninho uma energia especial, presente num sorriso sempre estampado.
“Eu sou muito feliz aqui”, conta Maninho, “tenho que agradecer a todos que me deixam viver, já que aqui está minha vida”, diz emocionado. No fim da conversa — que durara toda manhã, pela empolgação —, Maninho surpreende quando compartilha a expectativa do lançamento de um livro sobre sua vida que, segundo ele, está sendo escrito por João Sabino, escritor uberabense e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro. Demonstrando desapego material, o “último hippie de Uberaba” ainda faz uma revelação: todo lucro arrecadado será destinado à caridade.
Bruno Cruz - 1º período de Jornalismo (Junho de 2014)
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cunhacruz2 · 3 years ago
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Por uma ‘filosofia com as pessoas dentro’ no tempo do antropoceno
Inicio com uma pequena história: É manhã de um dia como qualquer outro no interior do estado de Minas Gerais, região sudeste do Brasil¹. A data, aqui, é impossível precisar, talvez fim da década de 30 ou início da de 40. Crianças de idades distintas dividem uma pequena sala, construída de pau a pique (um tipo construção precária, resultado do entrelaçamento de bambus e barro) com sua única professora. A rotina dá lugar ao pavor: um barulho assombroso toma conta do espaço miserável feito escola. Num misto de curiosidade e pânico, professora e alunos saem para ver o que é, afinal, o desconcertante som. Na mesma rapidez, e agora envoltos em pânico, retornam para o interior do lugar. A professora, em reação imediata, recomenda que todos se abriguem por debaixo das mesas: no céu desponta um objeto em forma de cruz, e na medida em que a peça se aproxima, o barulho só faz aumentar. Só depois de minutos que o estrondo não podia mais ser ouvido, que os corpos miúdos puderam sair de seus refúgios e, mais tarde, retornar aos seus lares. Anos mais tarde, e com a chegada de novas notícias, se dão conta que o objeto era, na verdade, um avião que fazia seu trajeto pela região e que, logo, não se tratava do esperado apocalipse.
A relato acima descrito fora feito por minha avó paterna, Maria José, durante minha infância. Rindo do que dizia ser ignorância dela, fazia saber, a mim e a quem quisesse ouvir, essa e outras histórias. Entretanto, e apesar de o caso narrado não ter sido, em si, o fim do mundo, não é possível dizer o mesmo sobre a vida da narradora original: Maria José, semi-analfabeta, casou-se aos 16 anos e teve 12 filhos². Até que a doença e morte de seu marido exigisse o êxodo rural, quando o mais novo dos filhos (meu pai) tinha 17 anos, Maria José e toda sua família vivia de uma mísera parte do muito que produziam para seus patrões. Após o êxodo, passou a vida como boia-fria em plantações de café. Próxima à sua morte, ocorrida em 2009, e já acometida pelo que mais tarde se descobriu ser uma severa leucemia (que a causara feridas pelo corpo), Maria José foi chamada para um dia de trabalho doméstico em uma fazenda da região. Recebeu, ao fim desse dia, dois litros de leite que foram colocados em uma garrafa PET. Dois litros de leite e nada mais.
Maria José, que teve medo do fim vindo do céu, talvez nunca pudesse imaginar que a ela não coube o mundo, tal como muitos do ocidente moderno o conhecem. Mas ela não foi a única: espalhados desde as mutiladas florestas tropicais até os subúrbios das megalópolis internacionais, inumeráveis populações e espécies vivas, humanas e não-humanas, dos séculos que nos antecedem e do presente que vivemos, talvez viveram e vivam mesmo somente o “fim”. São os que, em comunicação, Juliana Fausto (cf. 2014) chamou de “desaparecidos do Antropoceno”. Desses desaparecidos, “subversivos pelo desacordo entre seu modo de vida  e aquele único aceito pelo poder que se impõe sobre eles” (ibid.: 3), alguns são, agora, vistos com atenção: relatório recentíssimo do Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services, da Organização das Nações Unidas, (IPBES/ONU, 2019) dá conta que ao menos um milhão de espécies correm o risco de serem extintas já nos próximos anos.
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cunhacruz2 · 4 years ago
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Cultura: um conceito reacionário?
Fragmento escrito por Félix Guattari, incluso no livro “Micropolítica: Cartografias do desejo.”, do mesmo Guattari com Rolnik Suely - páginas 15-24.
O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas, às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas. 
                                                                                   §
Toda a obra de Proust gira em torno da ideia de que é impossível autonomizar esferas como a da música, das artes plásticas, da literatura, dos conjuntos arquitetônicos, da vida microssocial nos salões… 
                                                                                  §
A cultura enquanto esfera autônoma só existe a nível dos mercados de poder, dos mercados econômicos, e não a nível da produção, da criação e do consumo real. 
                                                                                  §
O que caracteriza os modos de produção capitalísticos¹ é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação, que eu chamaria de ‘cultura de equivalência’ ou de ‘sistemas de equivalência na esfera da cultura’. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em sujeição subjetiva não me refiro à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da subjetividade.
                                                                                  § 
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cunhacruz2 · 4 years ago
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Para pedir a graça de aceitar inteiramente o sofrimento moral
in Preces Pro Opportunitate Dicendæ.
Minha Mãe, vejo tantos e tantos homens fugirem dos sofrimentos morais, no que há uma suprema covardia.
A Vós suplico esta forma de integridade: que em todos os sofrimentos morais de minha vida, eu seja inteiramente homem, e inteiramente homem batizado. Que veja esses sofrimentos, um por um, conte-os, pese-os e meça-os ponto a ponto. Beba cada um deles como taça amarga, até a última gota. Que eu os sorva com serenidade, com clareza, com fidelidade, e caminhando resolutamente para os novos sofrimentos que vêm. Que eu não recuse nenhum, assuma-os todos, dando o exemplo de um homem que sofre moralmente até onde se possa sofrer. 
E que, nesse sofrimento, minha alma, na sua fina ponta, experimente a alegria de Vos ter dado absolutamente tudo: “hílarem datórem díligt Deus”: Vós amais, ó Senhor, quem vos oferece com alegria este sofrimento total. 
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cunhacruz2 · 4 years ago
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Ladainha da humildade
Escrita pelo cardeal Rafael Merry del Val, Secretário de Estado do Vaticano, hoje Servo de Deus.
Jesus, manso e humilde de coração, ouvi-me. Do desejo de ser estimado, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser amado, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser conhecido, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser honrado, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser louvado, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser preferido, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser consultado, livrai-me, ó Jesus. Do desejo de ser aprovado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser humilhado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de ser desprezado, livrai-me, ó Jesus.
Do receio de sofrer repulsas, livrai-me, ó Jesus. Do receio de ser caluniado, livrai-me, ó Jesus. Do receio de ser esquecido, livrai-me, ó Jesus. Do receio de ser ridicularizado, livrai-me, ó Jesus. Do receio de ser infamado, livrai-me, ó Jesus. Do receio de ser objeto de suspeita, livrai-me, ó Jesus.
Que os outros sejam amados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros sejam estimados mais do que eu, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros possam elevar-se na opinião do mundo, e que eu possa ser diminuído, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros possam ser escolhidos e eu posto de lado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros possam ser louvados e eu desprezado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros possam ser preferidos a mim em todas as coisas, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo. Que os outros possam ser mais santos do que eu, embora me torne santo tanto quanto me for possível, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo.
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cunhacruz2 · 4 years ago
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Teresinha, reze por nós!
No sétimo dia da Teresinha. 
"Que jeito, Teresinha?" Virou uma brincadeira entre amigos. Mas não era brincadeira.
Era um dia difícil para Pedrinópolis. Naquelas horas, perdia-se o Fred, um amigo de todo mundo, um companheiro de muita gente e muitas horas. No desespero, uma de suas primas, Maria Eugênia, não sabia o que fazer. Teresinha, a Teresinha Mirota, estava a serviço: "se acalme!", dizia ela. Não tinha como! O acidente era a síntese do inexplicável: "Que jeito, Teresinha?", respondia a garota num abraço apertado. Mas a Teresinha, a Teresinha Mirota, não desistia: "sempre tem um jeito!". 
Ela costumava andar correndo; tudo era para o aqui e para o agora. Alguém precisa de um auxílio? Aqui estou! Alguém precisa de um abraço amigo? Aqui estou! Alguém precisa de qualquer coisa, mesmo não estando ao meu alcance? Aqui estou. Teresinha respondia assim: "Aqui estou!", "Praesto Sum!", como Samuel a Deus diante seu chamado (Cf. 1 Samuel 3:6, 12:3). Aqui estou, Senhor! 
Teresinha era assim: encontrava Deus em qualquer um que precisasse de ajuda. Teresinha sabia dar e ser pão a quem tinha fome, sabia dar e ser água a quem tinha sede. Na paróquia de São Sebastião, o Mártir, sabia buscar o pouco, e fazia o pouco se tornar muito! Óleo, frango, leilão, serviço... Teresinha estava pronta! "Praesto sum!" Aqui estou, Senhor! 
Mas chegou o dia que Teresinha foi ao encontro do seu Senhor, Nosso Senhor, Jesus Cristo. E ela foi de prontidão! "Aqui estou!" Não se despediu de ninguém, nem se preocupou em prestar seu último serviço. Ela, a Teresinha Mirota, cuja alcunha ganhou de seu marido, se pôs à disposição também na hora última. Foi como uma calma nuvem diante do calmo vento; foi como um pássaro, que encontra no céu o seu vôo. 
Foi repousar em águas tranquilas depois de anos de tanto movimento. Foi ao encontro do seu companheiro de serviço, Dute, que meses atrás também dava seu salto em direção ao paraíso. Foi demonstrar que o serviço, do aqui e do agora, responde à busca das coisas do alto.
Teresinha foi. Deixou uma saudade e uma falta. Mas deixou também o exemplo. Como Teresinha, de Jesus, Teresinha, a Mirota, soube mostrar santidade nos pequenos atos! 
De minha parte, e diante do adeus, cabe dizer: Teresinha, vá com Deus! E reze por nós, minha amiga. "Você está tão bonita, Terê!"
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cunhacruz2 · 5 years ago
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O estandarte do sanatório geral vai passar
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Nulla in Mundo Pax Sincera (RV 630)
Todo mundo sabe disso. É um fato. Beijos, beijos. 
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Para chorar
Gente, o que foi isso? 
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Exortação a invocar Maria, a Estrela do mar
São Bernardo de Claraval
E o nome da Virgem era Maria (Lc. 1,27). Falemos um pouco deste nome que significa, segundo se diz, Estrela do mar, e que convém maravilhosamente à Virgem Mãe. … Ela é verdadeiramente esta esplêndida estrela que devia se levantar sobre a imensidade do mar, toda brilhante por seus méritos, radiante por seus exemplos.
Ó tu, quem quer que sejas, que te sentes longe da terra firme, arrastado pelas ondas deste mundo, no meio das borrascas e tempestades, se não queres soçobrar, não tires os olhos da luz desta estrela.
Se o vento das tentações se levanta, se o escolho das tribulações se interpõe em teu caminho, olha a estrela, invoca Maria.
Se és balouçado pelas vagas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olha a estrela, invoca Maria.
Se a cólera, a avareza, os desejos impuros sacodem a frágil embarcação de tua alma, levanta os olhos para Maria.
Se, perturbado pela lembrança da enormidade de teus crimes, confuso à vista das torpezas de tua consciência, aterrorizado pelo medo do Juízo, começas a te deixar arrastar pelo turbilhão da tristeza, a despenhar no abismo do desespero, pensa em Maria.
Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria.
Que seu nome nunca se afaste de teus lábios, jamais abandone teu coração; e para alcançar o socorro da intercessão dEla, não negligencies os exemplos de sua vida.
Seguindo-A, não te transviarás; rezando a Ela, não desesperarás; pensando n'Ela, evitarás todo erro.
Se Ela te sustenta, não cairás; se Ela te protege, nadas terás a temer; se Ela te conduz, não te cansarás, se Ela te é favorável, alcançarás o fim.
E assim verificarás, por tua própria experiência, com quanta razão foi dito: “E o nome da Virgem era Maria”.
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Por que será que o racimo brasileiro tem tanta vergonha de si mesmo?
Pensando sobre Lélia Gonzalez, Que Horas Ela Volta e racismo no brasil. Breve resenha de atividade realizada em disciplina do curso de Ciências Sociais. 
A resenha que aqui seguirá, e considerando os temas propostos, será feita observando uma única cena do filme assistido. Nela tentarei condensar questões que considero, aqui, fundamentais, levando em conta especificidades que só me dei conta à luz dos textos lidos, bem como do debate feito em sala. Cuido, especialmente, da cena em que uma festa é oferecida na casa onde boa parte do enredo se desenrola. Dada por volta do minuto 20 da película. Apesar de reconhecer o curto espaço para a resposta, imagino ser necessário descrevê-la com detalhes:
Ao som de “Águas de Março”, na voz de Tom Jobim, Val, a personagem principal, é mostrada de costas, vestida com touca e uniforme cinza com avental e babados brancos. Val leva, nas mãos, uma bandeja de carapés e alguns guardanapos perfeitamente organizados. Sai da cozinha e segue para as salas de jantar e estar. No caminho, passa por alguns convidados elegantemente vestidos que conversam entre si. Uma das convidadas, em alguns poucos segundos, passa por Val e desvia seu caminho. A protagonista, ainda vista de costas (como se o espectador a acompanhasse) segue para a sala onde se encontram a grande maioria dos presentes: por segundos, se vê diante duas mulheres que, sem interromper o assunto se servem dos quitures e guardanapos, Val, em silêncio, parece precionar os lábios fortemente e se contorce para dar conta do trabalho feito. Segundos adiante, passam outras duas mulheres que, também sem interromper o assunto se servem ou se negam, sem olhar para o rosto de quem as oferece. Passa ainda por outras pessoas, entre ela seus patrões que também rejeitam os carapés. Val observa, com certa preocupação, a todos, parecendo buscar quem estaria necessitando de seus “serviços”. Continua a servir e tem sua presença ignorada por todos. A personagem se dirige para a área externa onde encontra Fabinho e seus amigos, estes não a ignoram e ela parece dar pequena bronca em um dos amigos que aparece com o cabelo grande. Em segundo plano, Val faz o caminho de volta e, no meio do trajeto, outra vez observa a todos os presentes. De volta à cozinha, e estando com a porta fechada, a personagem organiza algumas xícaras e garrafa, brancas e pretas, que cenas antes nos relevaram ser um presente da empregada à patroa. Val demonstra estar orgulhosa pelo conjunto - que a patroa, em cena anterior, dissera que o utilizaria em ocasiões especiais. A personagem, com o conjunto às mãos, volta para servir os convidados. Abre e fecha a porta e a cena imóvel da cozinha fechada é apresentada por alguns segundos, ao ser interrompida pelo retorno apressado de Val, agora acompanhada pela sua patroa, que, nervosa, a repreende pelo uso daqueles objetos, enquando recomenda o conjunto que havia sido trazida da Suécia. Ao questionar a patroa, Val é outra vez ignoranda, enquanto a coadjuvante fecha a porta e retorna à área “social”.
Bem, diante desta cena, partamos para os comentários. Por estar nos minutos iniciais do filme, e sem tratar, de maneira mais direta, de nenhuma questão, a mesma pode nos parecer inofensiva. Estamos diante de uma empregada que faz o seu trabalho como deveria, enquanto outras pessoas aproveitam a festa para que foram convidadas. É possível até pensar que “ela está sendo paga para isso”. O desconforto, ainda mínimo (diante dos demais que se seguirão durante toda produção), só vem quando, até então ignorada, Val é repreendida por sua patroa por não usar um conjunto de xícaras que não estava “à altura” da recepção. Mas, como mencionei, e bem diante do desconforto que a obra completa causa, a cena, por si só, nos ajuda a compreender as questões sugeridas, quais sejam, migração e trabalho, bem como os resquícios da escravidão.
Para tanto, e tratando do conjunto (trabalho e migração), parto inicialmente para segregação - visivelmente marcada na cena: a indumentária de Val e dos convidados, os espaços compartilhados e a invisibilidade da protagonista e da cozinha. Todos estão colocados nos seus lugares - lugares que, que como vai dizer Val em outro momento, todo mundo já “nasce sabendo” qual é. Os convidados parecem estar diante apenas de um objeto em serviço, que se mantém invisível. Objeto que, para além de sua “serventia”, e utilizando a expressão disposta por Lélia Gonzalez, é apenas “lata de lixo” da sociedade brasileira, bem apesar do mito da democracia racial. Vale ressaltar, desde já, que Val é, naquele lugar, permitia e necessária (ibid. 230); mas permitida e necessária enquanto for invisível. Só é vista e notada por Fabinho e seus amigos - numa relação de “molecagem”. Val percebe a todos e não é percebida por ninguém.
Tal qual os belos bairros e condomínios, enquanto enclaves fortificados, em relação aos bairros de trabalhadores, “hiperperiféricos”, a impressão que se tem, até mesmo pela cena de confronto entre patroa e empregada, é de que a “casa” vomita na “cozinha”. Vomita suas posições e as escancara. Vomita o lugar de cada um e suas necessidades. E bem falando de necessidades, somente à “casa” é permitida tê-las. À “cozinha” não se chegam os sonhos, tampouco a realização. Aí se encontra a zona fronteiriça entre o possível e o já dado. O “desejo” é da “casa” e tão somente, se há desejos na “cozinha”, eles não importam - porque, provavelmente, jamais se realizarão, até porque cada um sabe de seu lugar e o desejo da “cozinha” deve ser sempre o de realizar os desejos da “casa”.
Há que se lembrar e corroborar: o mito do conjunto de xícaras, ou ainda, o mito da democracia racial, onde “pretos” e “brancos” convivem em harmonia, não deve passar das portas da “cozinha”. A inclusão, diz a casa, deve ser “allegro ma non troppo”, uma vez que a inclusão, apesar de “un poco maestoso”, deve mesmo ficar nos livros e discursos, nas estantes e salas de descontração, tal qual o carnaval das mulatas. Aos do lado de cá da porta, devem deixar apenas o brilho das panelas polidas, ou ainda, seus valores morais em compensação à sua cor, cabelo e condição. Enquanto isso, quando a “cozinha” passar pelas “salas”, de aula ou direção, terão que responder, às vezes repetitivamente, aos “questionabrancos”. De brancos. Será tua cor tão escura assim? Será teu cabelo tão duro assim? Será tua condição tão ruim assim? Ou será que já é um “preto de alma branca”, nas palavras de um nobre ministro do egrégio Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil?
Muito ao contrário do “Outrem” como possibilidade, nos termos de Deleuze e Guatarri, o outro, ou a “cozinha”, como aqui foi chamado, não é nada mais que negação. Na série de porquês dispostos por González, ressalto um: “por que será que o racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo?”. A vergonha, se vale uma aposta, imagino estar materialmente no desconforto que o filme causa. É no desconforto que nos confrontamos com o confronto do conforto.
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Uma aula que deve ser registrada
Diretamente de Itapetininga, São Paulo, Brasil.
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Das Unbehagen in der Kultur
Um resumo dos últimos dias. Entendendo o desconforto.
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Ali está parte de um cadáver
Tunga, sobre 'Dente por Dente', na Caixa Tunga.
"Todos nos lembramos, bem ou mal, de uma dor de dente. 
A nevralgia parece nos remeter a uma regra básica da existência dentária: que eles, quando doloridos, somos nós. 
É de se notar a parca presença dos dentes na mitografia atual. Se existe grande atenção aos sucedâneos ou, na profilaxia relativa ao tema, pouco se pode apreciar naquilo que evocativo ou de simbólico os humanos dentes suscitam. 
Prosaicas visitas ao dentista não se fazem cercar por ritos especiais, além do pânico à dor, aludindo-se assim a forte carga simbólica que podem representar. As poucas referências que ainda subsistem quanto aos sonhos ou experiências infantis de perda são tratadas como cândidas crendices, superstições ou contos pueris dos quais o lastro de matrizes simbólicas importante foi olvidado.  
Um certo mal-estar contudo, mesmo que semiconsciente, pode advir de uma presa sob nosso olhar, em nossas mãos a lembrar-nos que ali está parte de um cadáver. 
Nem sempre foi assim." 
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Alguém me roubou do tempo
Há alguns dias eu disse que a música estava fazendo sucesso, hoje, enquanto espero uma chamada no zoom, me dou conta que ela foi lançada lá no finado 2015... E que, portanto, fez sucesso há quatro anos. Só sei que alguém me roubou do tempo. 
AAAAAAAAAAAAAAAAAA
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cunhacruz2 · 5 years ago
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Batidinha chic
Descobri esta música, que parece estar fazendo sucesso, e já me sinto de volta à civilização. Ou não. 
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cunhacruz2 · 5 years ago
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O áudio original e tradução podem ser encontrados clicando aqui.
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