daminhavidacuidastu
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Da minha vida cuidas tu
148 posts
Martim Dornellas
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daminhavidacuidastu · 4 years ago
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Sinais
Ele senta-se na esplanada a pensar nos sinais dela. Em todos os sinais dela. Ela tem medo e sorri e esconde as lágrimas e diz só 'não vamos falar disso agora'. Mas reconforta-o sempre. Sempre. Para sempre mais cinco minutos, dizem abraçados na cama. Ele passa os dedos pelos sinais dela. E são tantos. Dentro dela acendem-se alarmes com que ele brinca, com o mesmo cuidado com que lhe passa os dedos pelas costas.
Ela tem sinais no corpo e sinais no coração e deixa-lhe sinais em casa. Sinais gestos, sinais palavras. Os sinais são sempre sempre sempre bonitos.
Ele sente-se a tirar a carta de condução, numa excitação infantil mas sempre muito atento aos sinais todos que ela tem e dá.
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daminhavidacuidastu · 4 years ago
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Rita
“…E olha, de repente isto. Nem sabia que era possível assim, ou já. Não é isso, é: nem sabia que ainda era possível isto assim. E estou a aprender tudo de novo, sabes? Os carinhos e os corpos e o apaixonar-me desenfreadamente. É isso, desenfreadamente. Claro que temos medo, há sempre medos. Mas não nos travam, ou pelo menos é isso que sinto. E depois ela é quase que mágica, sabes? Se há qualquer momento em que me sinto assustado ou qualquer coisa parva, ela segura-me logo. Nem preciso de dizer nada. Sim, isso. Isso mesmo. É especial. Por isso era só para te agradecer. Claro que tenho. Fazes ideia do que é sentir isto assim? Esta paz, mas este amor todo também assim a crescer? Pois, mas eu não sabia. Não fazia ideia que isto ainda era possível assim, tão bom. Obrigado. Mesmo. Claro que tenho, para sempre.”
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daminhavidacuidastu · 4 years ago
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SIS
1 — Um almoço de 500€
A malta estava toda a descongelar os almoços quando se ouviu um grito vindo da sala da geolocalização: “Ela está em Alcântara!!!!”
O que se sucedeu foi provavelmente a experiência mais próxima que tive de ver a grande migração dos gnus: uma correria desenfreada em direcção à sala, sem olhar para o que estavam a fazer, o que tinham na mão ou quem estava a frente. A Mariana chegou a trepar pelo Roberto para ver se chegava primeiro — como qualquer tipo que está à frente do departamento de IT, o Roberto não é propriamente pequeno — o Victor deixou um rasto de sopa pelo corredor e a estagiária — nunca sei o nome dela — abriu a cabeça na ombreira da porta da copa, porque não contou com os ombros em V do Leal, fruto das suas idas diárias ao ginásio.
Como todos a espreitar por cima do monitor, o Tózé dos Serviços Especiais de Geolocalização (SEG) apontava orgulhoso para o pontinho verde que vinha a descer a Rua Maria Pia. “E ele? Onde raio está o rapaz?”, perguntava a Mariana impaciente.
A Mariana é assim uma rapariga interessante em todos os sentidos. À excepção do Tózé, que é um nerd sempre enfiado atrás dos ombros e dos óculos a olhar para o monitor na sala do SEG e a quem as raparigas assustam ligeiramente, todos os homens (e a Natália da cozinha também) já tentaram convidar a Mariana para um copo, café, cinema, exposições, compras, ginásio, etc. Sem qualquer efeito. A Mariana é uma espécie de diva do cinema clássico, totalmente inalcançável, mas que nos dá o prazer da sua visita de vez em quando. Apesar de recusar todos os convites, tira um gozo tremendo em nos fazer rodar as cadeiras, bamboleando-se no corredor ou curvando-se demais quando tira o café da manhã.
Acontece que a Mariana tinha apostado 100€ em como se encontravam os dois nessa semana, e as probabilidades estavam a 1:5. E isso explicava o porquê de apesar de ser sempre muito calma e profissional, neste caso em específico estivesse particularmente nervosa. Houve uma altura em que alguns de nós acreditaram que sim, que seria possível ficarem estes dois juntos. Como quando ela disse para ele a desafiar a irem trabalhar juntos para a praia. Mas quando a rapariga resolveu apresentar o rapaz a uma outra amiga as apostas mudaram todas de sentido. Todas. Só a Mariana se manteve estoicamente fiel à ideia inicial, eles iam acabar por se encontrar. Não era muito dinheiro, para o que ganhamos, mas se ganhasse os 500 paus sempre dava para comprar os sapatos novos que tanto queria. Uns sapatos que nos fariam virar cabeças cada vez que fosse à máquina do café e ela adorava isso. Secretamente, acho que todos os homens (e a Natália da cozinha) queriam que ela ganhasse os tais sapatos.
A Mariana voltou a perguntar: “onde é que se enfiou o cabrão do rapaz??”
O Tozé, que se sobressalta sempre que houve uma voz feminina, ajustou os óculos atrapalhado e reconfigurou o mapa. Apontou para o ponto azul que mostrava, claramente, que ele não estaria a mais de 500 metros da Rua Maria Pia. O Leal soltou um ‘foda-se’ entre dentes serrados e a Mariana bateu palmas de contente enquanto saltitava nos calcanhares, que faziam um divertido toc-toc-toc no chão de pedra.
Mais uns segundos de silêncio absurdamente incomodativo e surgiu um ícone por cima do ponto verde. É ridículo como o ícone de uma agência tão tecnológica como a nossa seja ainda um daqueles telefones dos anos 80. Mas cumpre a sua função: ela estava a ligar para alguém.
Novamente, a visão dos gnus a correrem desenfreados pelos corredores da agência, agora até à sala de supervisão de telefonemas e mensagens escritas (STME).
“Põe mais alto!” “Tira os fones!” “Isso está a funcionar?” “Não oiço nada!” até o Victor, o seboso diretor do STME, encostar o microfone à coluna e calar toda a gente com o que parecia ser o som de um eléctrico a travar num dia de chuva.
- Pouco barulho.
Ouviu-se então na coluna a voz dela: “olha, vim deixar o carro à oficina para fazer a inspecção e queria saber se queres almoçar comigo…”. Ainda não se tinha ouvido a resposta do rapaz e já a Mariana andava a recolher o dinheiro das apostas. Saiu a abanar as ancas vitoriosas, com as notas na mão e na sua voz melosa deixou apenas um ‘Aprendam…’
No fundo, ficámos todos contentes. O que eram 100 paus para ver aquilo acontecer?
Apesar de estarmos colados às colunas do STME, e da estagiária ir enviando as imagens de satélite para o grupo, não percebemos muito do que aconteceu no almoço. Os telefones deles estavam nas carteiras e por isso não tínhamos som claro, o nosso agente da zona tinha sido subitamente destacado para resolver um caso que se complicou devido a um mal entendido e as imagens de satélite, para além do abraço inicial e o de despedida, não eram muito claras por causa dos chapéus de sol do restaurante que ele escolheu.
Assim que se despediram os dois e vimos os pontinhos afastarem-se, a Mariana entrou pela sala dentro e lançou novamente o caos: “1000€ em como se beijam antes do casamento”. Ficou tudo louco. De um bando de gnus a atravessar Masai Mara, tornamo-nos subitamente numa família de chimpanzés quando se aproxima um leopardo: gritos, excitação desenfreada, braços no ar, impropérios, ofensas e promessas de vitória. Quando se acalmaram os ânimos, o Roberto anotou as apostas, cada um voltou ao trabalho e eu fui ao gabinete da Mariana. Sentada de pernas cruzadas, olhava sorridente para o monitor. Perguntei-lhe, num tom mais paternalista do que queria “Estás louca? 1000€?”
Ela voltou-se na cadeira muito lentamente, deixou no ar o tempo suficiente para eu poder gozar as suas pernas já bronzeadas pelos dias de verão e apontou para o monitor que tinha os extractos bancários actualizados de ambos: “Olha aqui… foi ela a pagar o almoço. Ele deixou que ela pagasse o almoço.” A minha estupefação obrigou-a a continuar,
- E isso só acontece se ele gostar muito, e quiser ter uma desculpa para repetir.
2 — Otário
O ambiente na agência não se cortava nem com uma motoserra. Faltam menos de 15 dias para o casamento e aqueles dois não se voltaram a ver. A Mariana já não anda nos corredores a abanar as ancas como antes e passa o tempo a perguntar nas salas por novidades, o Tozé atrasou-se pela primeira vez em 5 anos. A míuda ainda tentou, mas não conseguimos, nenhum de nós, perceber o que se passa na cabeça do rapaz. ‘Otário pá!’ Ia-se ouvindo a Mariana dizer entre dentes. Claro que se passaram as férias, 15 dias cada um para seu lado, alternados. 1 mês inteiro no fim. Mas mesmo assim, parece-nos que é demais.
Se eles sonhassem que os nossos empregos dependem disto, se calhar as coisas eram diferentes. Mas infelizmente não podemos apelar a isso, ou se juntam ou não se juntam. Podemos usar todas as ferramentas e tácticas que estão estipuladas no manual — encontros casuais por desvio de tráfego ou estratégias similares, levar os amigos a pressionar, horóscopos forjados, algum hipnotismo em casas extremos e outras tantas — mas nunca nos podemos expor ou revelar a nossa função. Juntando-se os casais, a nossa missão continua mas num registo diferente. Se não se juntam, temos de seguir caminho e esperar que a direcção nos dê outra missão.
Depois de quase 14 anos no SIS, posso dizer com toda a certeza que estes momentos são os mais aflitivos. Os compassos de espera entre os primeiros encontros são, provavelmente, os tempos de trabalho mais extenuantes e desmoralizastes de todos no exercício das nossas funções. Já vi inspectores experientes sucumbirem à monotonia da espera e à angustia da incerteza, abandonando as suas funções sem olhar para trás. E apesar dos constantes treinos e simulações a que somos sujeitos na academia, nada nos prepara para a realidade.
Por isso, estávamos todos naturalmente desmoralizados quando se acendeu uma luz no STME: Mensagem dela para ele. ‘Alô! Hoje já tens a Zizi? Queria a tua companhia para jantar’. Uma réstia de esperança, alguns sorrisos cúmplices enquanto aguardamos pela resposta dele: ‘Sim, até domingo’. A Mariana pega nos sapatos novos que comprou com o dinheiro da primeira aposta e atira-os pela janela, verde de raiva. ‘Otário de merda!!!!” Ouve-se a porta do seu gabinete bater com o som de uma saca de cimento que cai de um 4 andar na calçada deserta.
- Ele está com a filha… podíamos fazer alguma coisa — Começamos a discutir ideias, atentado na escola? Forjar um caso de covid na escola dela? Rebentar com o carro dele? Qualquer coisa que o obrigue a deixar a miúda com os avós, ou com a mãe. Mas desistimos quando alguém sugere meter a miúda doente, mesmo que fosse ligeiro.
O Tozé, agarrado ao monitor a ver os dois pontos muito afastados, esconde a cabeça inteira nas mãos e murmura ‘Acho que nem eu sou tão otário’.
Sente-se a equipa a desistir. Repito que isto põe os nossos empregos, ou no mínimo a nossa missão, em causa. Que vamos apresentar nos reports mensais? Como justificamos a nossa presença aqui, perante tal incapacidade para desenvolver uma relação? Para que servimos, se não tivermos nada para relatar e investigar? Eu próprio, talvez o mais experiente nesta equipa, me sinto desmoralizado. Não encontro soluções. Não está tudo perdido, mas o rapaz tem de se mexer, de a convidar para alguma coisa. Não adianta dizer que ela é bonita ou querer muito enfiar a cabeça no seu pescoço se não há um encontro que permita isso acontecer. Há muitos outros casais aí para ajudar e espiar e o SIS não precisa nem quer perder tempo e recursos com atadinhos. Isto é uma estrutura cara e paga com o dinheiro dos contribuintes, não podemos nem devemos facilitar.
A decisão está-se a formar na minha cabeça, é preciso saber quando parar e quando não vale a pena insistir. A custo, preparo-me para juntar a equipa e comunicar que esta missão vai terminar aqui. Pego no telefone para comunicar primeiro ao quartel-general a minha decisão e as razões que a sustentam. Estou a marcar os números quando oiço um grito: ‘Já sei!!!’ É o Leal. O leal é, ironicamente, o tipo menos leal da companhia. Capaz de trair o melhor dos amigos se isso lhe permitisse ganhar uma aposta. Mas às vezes tem boas ideias e é preciso reconhecer que trabalha bem.
Um aparte nesta pequena história que demonstra bem a lealdade do Leal. Aqui há uns anos atrás, tínhamos um caso algo complicado nas mãos. Um casal à beira da rotura mas de alta importância para o governo de então que se mantivesse junto e a funcionar pelo menos até à depois das eleições. Apesar de um amor gigante pela companheira, o ministro tinha um fascínio descontrolado por ‘meninas de alterne’. De notar que o ministro em causa era amigo do Leal, o que tornava por um lado tudo muito pessoal, e por outro facilitava de alguma forma, uma vez que tínhamos algum conhecimento do alvo a investigar. Como é normal nestes casos, fizemos de tudo. Forjamos reuniões que se prolongavam até ser impossível ter qualquer encontro, manipulámos grande parte dos alimentos do supermercado onde este casal se abastecia de forma a que o homem perdesse um pouco da sua libido (ela era vegetariana, por isso fizemos uma selecção específica de forma a que só ele padecesse dos efeitos), e os naturais desvios de trânsito sempre que havia a mínima hipótese dele se cruzar com uma destas meninas. Subornámos ainda todos os porteiros de estabelecimentos dessa natureza de forma a que indicassem sempre ‘festa privada’ ou ‘fechado para remodelações’ para o caso do ministro nos iludir.
Naturalmente, fizeram-se muitas apostas e o valor foi subindo com o passar do tempo, cada vez mais certos do sucesso da operação. E eis que o Leal, num domingo à noite, espetou com uma menina de origens dúbias na porta do pobre homem, que foi abordado assim que desceu para por o lixo, acabando a noite nas traseiras do prédio a apanhar sifilis.
O Leal ganhou a aposta, e nós para além do dinheiro perdemos noites seguidas de trabalho para apagar mensagens, videos e fotos do acto pecaminoso dos telemóveis dos vizinhos, silenciar testemunhas, e encobrir de todas as formas imagináveis as duas traições — do homem à mulher e do Leal ao seu amigo ministro. Tudo por um punhado de euros.
3 — O plano do Leal
O Leal explicou então: A amiga comum deles — a que vai casar — vai ter uma reunião na sexta e ele vai ter de lhe ligar entretanto por causa do casamento e de organizar algumas coisas. Até sexta, desviamos todas as chamadas dele para a noiva de forma a que ela não atenda, se for preciso, respondemos por ela a dizer que não pode atender mas que já liga. Até sexta feira de manhã ele não pode falar com ela sob nenhuma circunstância — o Victor e o departamento do STME ficam responsáveis. Pelo que ela disse ao noivo esta tarde, na quinta à noite vai encomendar jantar para ficarem a namorar no sofá. Nessa altura alteramos o prato dela de forma a que não durma a noite toda — a Natália da cozinha fica encarregue de fazer a sua magia. De manhã, fazemos aquelas pequenas coisas que costumamos fazer para deixar os visados bem irritados e com os nervos à flor da pele: água do banho que não aquece, carros estacionados em segunda fila, todos os semáforos no vermelho até ao escritório, ah! E alguém que lhe entorne café em cima, que ela odeia o cheiro do café. Assim quando ele lhe ligar a combinar as coisas e no meio lhe perguntar pela amiga, salta-lhe a tampa e diz-lhe o que nós queremos dizer e não podemos: ‘que é bom que ele se mexa, e depressa’.
À falta de uma ideia melhor, avançamos com o plano do Leal. Passam-se os dias e o ambiente parece estar a melhorar, sente-se alguma esperança no ar. Quando ele liga a amiga o plano não podia correr melhor. Se não estivesse na sala connosco a ouvir a chamada, diria que era a Mariana a falar ‘Mexe-te pá! Estás a espera de que???? Ainda não percebeste que isso pode funcionar?? Que é que precisas para entender que ela está interessada??? É melhor que a convides para alguma coisa, e depressa!’ E mais um monte de coisas que a Mariana diria, mas sem os palavrões. As cameras que temos montadas na ponte 25 de abril a visionar a casa dele mostram-nos que fez efeito, com pobre rapaz a andar perdido de um lado para o outro no terraço.
Passados dois dias o Victor, do STME, vem com um papel impresso e um sorriso triunfante na cara. Lemos todos em conjunto:
‘Então amanhã… ao fim da tarde, bebemos uma cerveja?’
‘Ou duas ou quatro?’
‘Hahahahha vamos a isso! Tenho motelx as 21h, até lá, venham as cervejas. Sou tua!’
O resto adivinhava-se. Nem precisávamos das imagens de satélite, nem dos agentes todos no sítio a fazerem-se passar por estrangeiros, nem precisávamos de ter aumentado ainda nessa manhã o teor alcoólico das cervejas e do vinho para ver se a coisa andava mais depressa. Eles encontraram-se como se se vissem todos os dias, e falaram como se falassem todos os dias, e trocaram as mãos como se fossem um casal já antigo mas ainda enamorado. A descrição é da Mariana, que contra todas as regras e indicações, vestiu a roupa mais discreta que tinha no armário e foi com umas amigas para lá, para ver de perto. Quando foram embora para ele a deixar no cinema, a Mariana segiu-os e viu aquilo que queria, ele muito nervoso a pegar no pescoço da rapariga e trocarem um beijo atrapalhado. E depois outro.
No dia seguinte a Mariana espantou-nos ao descrever tudo o que os agentes e as imagens já tinham reportado, mas com uma voz mole e doce em vez do seu habitual tom profissional e objectivo. E em vez de se gabar com o monte de euros que tinha ganho na aposta, disse só ‘é para isto que existimos senhores, é mesmo para isto que estamos aqui’. E com um sorriso enorme na cara, como se tivesse sido ela a ser beijada, entrou para o seu gabinete.
Claro que já tinha os sapatos novos calçados.
A equipa estava extasiada. No final do dia fomos todos beber um copo, o Victor tentou novamente a sua sorte com a Mariana, com a mesma sorte de todas as outras vezes. E sou capaz de jurar que vi o Tózé trocar olhares com a estagiária. Quando cheguei a casa e me deitei no sofá, só tinha duas coisas na cabeça: Os sapatos novos da Mariana a realçar as suas longas pernas, e as suas palavras ‘é para isto que existimos senhores, é mesmo para isto que estamos aqui’.
4 — A casa na árvore
Relatório 12/09/2021 ao dia 10 e 11 de Setembro de 2021
Nome de Código: Casa na árvore
Equipa responsável
Mariana — Investigação
Victor — STME
António José — SEG
Leal — Agentes e operacionais
Roberto — IT
Graciete — Estagiária
Meios disponibilizados
Filmagens drone
Câmaras de videovigilância nos pontos com as coordenadas:
Sitio A — 37°29’35.4"N 8°41’12.4"W
Sitio B — 37°29’35.7"N 8°41'11.5"W
Sitio C — 37°29’37.5"N 8°41’11.8"W
Agentes infiltrados (bar)
Avaliação Geral
Potencial de Sucesso
Potencial de Risco
Potencial de esforço
Visão Geral
A++
C
C
A+
No período referente ao presente relatório, verificámos através dos meios acima descritos uma solidificação na relação dos singulares visados pela equipa destacada. Não só através de uma manifesta vontade em se ajuntarem por diversas vezes — as mais importantes abaixo descritas — como também através de expressivas trocas de afectos.
No dia 10, apesar das tentativas dos agentes infiltrados no bar, existiu alguma relutância no sujeito masculino em ingerir menos álcool, o que levou a algum desvio no decoro dos comportamentos do mesmo, sendo a catástrofe apenas evitada pela paciência da sujeita.
Destacamos também a facilidade com que a sujeita perdeu parte da sua roupa interior, apesar de dever ser anotada a insistência do sujeito, como demonstram as imagens — Anexos I e II ao presente documento — inicialmente captadas no Sitio C (coordenadas 37°29’37.5"N 8°41’11.8”W) e mais tarde comprovadas no Sitio A (37°29’35.4"N 8°41’12.4”W).
O Sitio A em questão, conforme constatado pelas imagens anexas, descreve-se como um elemento integrado num parque infantil, destinado por isso a actividades de crianças e jovens pré-adolescente e não construído como local dedicado a práticas de âmbito íntimo, pelo que a equipa de limpeza foi enviada ao local nessa mesma noite para uma correcta limpeza e higienização.
Os anexos III, IV, V e VI (MPA:R) são referentes às imagens captadas no Sitio B (37°29’35.7"N 8°41’11.5”W) onde se constata a falta de decoro e segurança de ambos os intervenientes, ao imergirem em águas frias os seus corpos (nus). Foram aplicados ao Sitio B os mesmos procedimentos que anteriormente foram aplicados ao Sitio A.
Ao dia 11, estando o sujeito manifestamente menos afectado que no dia anterior, gostaríamos de reportar (sem incidentes) os acontecimentos abaixo descritos:
Algum espanto por parte do sujeito assim que a rapariga apareceu para se arranjar para o evento em questão, com efeito colaterais na sua percepção de discursos articulados;
Os agentes infiltrados reportaram que ambos os sujeitos trocaram carícias durante o jantar, embora de forma mais discreta que na noite anterior, dissimulados pela toalha de mesa;
Posteriormente e com o avançar da festa, ambos se dirigiram ao Sitio B (37°29’35.7"N 8°41’11.5”W) onde se verificou (anexos VII e VII) um maior decoro por ambas as partes, mesmo sendo evidente o desejo comum.
Apesar de alguns factos acima descritos, vimos por este meio constatar que é de comum opinião a todo o departamento destacado que o caso em questão tem um enorme potencial de sucesso, dado a facilidade que existe na comunicação e vivência entre os dois singulares. Como tal, e enquanto responsável por esta operação, recomendo que a equipa se mantenha em actividade por tempo indeterminado, intervindo sempre que necessário e recorrendo aos meios ao seu dispor.
12 de Setembro de 2021
(Assinatura ilegível)
5 — Os golfinhos
Ainda não tinha acabado de beber o café quando o fax desatou a apitar e cuspiu uma folha que dizia apenas: ‘Missão em stand by. Todos os operacionais da missão devem aguardar silenciosamente novos procedimentos, sem excepção.’ Senti o coração gelar. Em 14 anos de casa já sei, perfeitamente, o que significa: fomos apanhados. Eles, ou alguém próximo deles, sabe que andamos a intervir. Ou fomos descuidados em algum momento ou pior, alguém aqui da equipa deu à língua. O meu primeiro pensamento vai para o Leal. E o segundo. E o terceiro também, A minha vontade é agrafar-lhe a língua à secretária, mas não posso dizer nada ainda. Temos de ter calma. A primeira coisa será comunicar as ordens à equipa, garantir que ninguém faz nada que comprometa a missão até chegar nova informação. O mais difícil vai ser segurar a Mariana. Desde a casa na árvore que anda nos píncaros, feliz e leve como nunca a vimos. Anda tão contente e descontraída que trocou os saltos e os vestidos com decote por uns tenis e umas calças de ganga e um tshirt branca justa. E confesso que secretamente nunca a desejei tanto.
- Malta, ordens superiores — disse agitando o papel na mão — ninguém faz nada até novas ordens. Desliguem os microfones, câmeras, satélites. Tudo fechado até eu dizer. E todos os agentes de rua de volta a base, por favor.
Saí da sala com um ‘E já!’ para não ver o debate parlamentar que se seguiria. A Mariana, como seria de adivinhar, seguiu-me.
- Tu lembras-te como é que isto começou?, perguntou desolada, a olhar para um vazio atrás de mim.
- Claro, foi quando ela lhe disse para a desafiar para irem trabalhar para a praia.
- Não. Isso foi quando nós achámos que se calhar podia dar certo. Antes disso, muito antes disso… Nós fomos destacados para esta missão quando o pobre rapaz tentou a sua sorte em cair nas boas graças dela numa jogada um bocado tola, onde resolveu doar parte dos lucros das vendas aos cavalos marinhos. Foi isso que fez acender a luz no quartel general, e foi isso que os fez juntar esta equipa. E se calhar, como tu não te lembras disso, eles também esqueceram.
- Mariana, eles não paravam tudo por se esquecerem. Eles não se esquecem dessas coisas.
- Então explica-me porquê.
- Ainda não sei de nada. Mesmo. Tudo o que sei foi que a missão está em standby até ordens em contrário. Acho mesmo que fomos apanhados, que eles nos descobriram de alguma maneira. O que não entendo é como…
- Achas que me toparam no Topo? E riu-se da repetição de palavras, mas sem grande satisfação.
- Estaria mais inclinado para o Leal ter bufado alguma coisa. Mas isso agora tem de ficar entre nós. Vamos aguardar por mais notícias e esclarecimentos. De qualquer das formas, se foi ele juro que lhe agrafo…
-Já sei. — E saiu do gabinete.
Almocei sozinho numa esplanada perto dos escritórios. Por cada casal que passava, pensava com angústia nos dois. Vinham-me à cabeça as imagens deles no sofá de casa dela, a namorar. Dos toques escondidos durante o casamento, e daquele momento em que ela se debruçou sobre o ombro dele para dizer ‘tu também estás muito bonito’, dos abraços com que se cumprimentavam onde parecia levarem o mundo todo dentro. Estou a ficar ligado a isto de uma forma muito mais pessoal do que é suposto, e se realmente tivermos sido descobertos só há uma solução: silenciá-los. E não vejo como orientar a equipa a elaborar esquemas para os separar, primeiro, e depois garantir que um dos dois, ou mesmo ambos, saiam do país. E normalmente são processos onde o quartel general exige rapidez e eficácia, uma a duas semanas e nenhum deles saberá tão cedo um do outro, nem vão entender bem porque terá tudo acabado. A pergunta que me assola é se realmente seria capaz disso. Sei que a Mariana não o faria, alguns dos restantes teriam alguma relutância e sem dúvida nenhuma que o Leal era o primeiro a fazer o que era preciso fazer. Mas e eu? Como coordenador da equipa, seria capaz de dar tal ordem? O melhor talvez seja demitir-me já do cargo. Paguei e sai dali para fora. Havia demasiados casais a passear, enamorados, à minha volta. (Lalalal)
Tinha todas estas dúvidas às voltas na cabeça quando cheguei ao escritório e vi uma folha no fax. ‘A sério? Mas quem é que ainda usa a merda do fax????’
Assunto: Casal 20323111202 — Transcrição de mensagens ao dia 14, 15, 16 e 17 de Setembro (resumo relativo às mensagens onde o SIS é mencionado)
14.09
Ela “Hj fomos contactados pelo sis no tal projeto dos golfinhos”
15.09
Ele “beijinhos daqui até aos mergulhos na piscina. ainda tenho os teus slow motion de coreografias da prancha.
quando o SIS me telefonar são as minhas provas”
16–09
Ele “E o sis?”
Ela “Vamos reunir com eles, mas não sei qdo”
Ele “O meu IBAN é PT50 0007 0000 0017 4151 7642 3”
Ela “Isto era para mim? 😂”
Ele “(Para os senhores do SIS)”
Ela “Ri-me alto”
17–09
Ela “🤫 não digas a ninguem” (a propósito de ter desobedecido a quarentena imposta, com a filha)
Ele “MAS OS SENHORES DO SIS VEEM!!!!”
Verificando as mensagens transcritas fornecidas pelo STME, a direcção considera de máxima urgência silenciar e afastar ambos os sujeitos, e dispensar a equipa para nova missão a designar.
A minha gargalhada deve-se ter ouvido no escritório todo. Palermas. Esta gente não existe. A primeira coisa que fiz foi chamar a Mariana e o Victor do STME e estendi-lhes o fax.
- Tu estás a gozar… — e começou a rir alto. Acho que não via a Mariana rir tanto desde aquela vez em que o Leal lhe disse em toda a sua fanfarrice, depois do jantar de Natal da companhia, que quer ela quisesse quer não, ia acabar a atestar o depósito na cama dele. Nós gelámos todos por dentro, mas após uns breves segundos de silêncio, a Mariana debruçava-se em gargalhadas. E assim foi o resto da noite, o Leal nem precisava de abrir a boca, bastava passar por ela para que por mais que tentasse conter o riso, as gargalhadas tomavam conta dela, agarrada à barriga, de lágrimas nos olhos e só conseguia murmurar ‘oh Leal…’ Continuou — Mas estes tipos confundiram-se todos (mais gargalhadas)… os putos estão a falar dos serviços secretos, não de nós! (risos descontrolados), mas nós queremos saber da China para alguma coisa???
Sentada, olha para mim ainda de lágrimas nos olhos e pergunta: ‘Mas como é que isto aconteceu?… Onde é que nós andámos alguma vez preocupados com golfinhos????’
Por mais que lhe explicasse que no primeiro relatório de todos, ainda antes de qualquer beijo ou abraço, estava escrito que um escuta no escritório do sujeito o tinha ouvido contar a uma colega de trabalho que estava na água sozinho a surfar e disse para si próprio — se hoje vir golfinhos é porque vou arranjar uma namorada… e passado uns minutos apareceram um monte deles!’e que o quartel general ao ler as mensagens agora, achou que os golfinhos tinham sido uma jogada nossa na altura, a Mariana não ouvia nada.
O Victor, incrédulo como nós, perguntou: ‘Então já podemos voltar todos a ligar os aparelhos?’
Pedi apenas 15 minutos para explicar tudo à direcção, mas que sim, que podiam ligar os aparelhos depois disso. Disquei os números (ridículo estes telefones antigos) e expliquei tudo aos tipos lá de cima, com muito tacto para não os envergonhar.
Eu sabia que a excitação era tanta que ninguém ia esperar tempo nenhum, por isso quando entrei na sala para dizer que tínhamos luz verde para continuar com a nossa missão, não me espantei muito por estarem todos de volta do Victor a ler a última mensagem dela a que tínhamos acesso: “Estou na varanda a apanhar estes últimos raios de sol do dia, a tentar ler o teu livro, mas não consigo parar de pensar nos teus braços ontem a noite, aqui….”
- E nós perdemos isso tudo… à conta de uns estúpidos de uns golfinhos. — Disse o Roberto. E todos concordámos.
6 — As gelatinas
Temos gozado bens os dias. Os miúdos andam bem e felizes como é suposto, ao rapaz vão lhe passando as atrapalhações, à rapariga os alarmes na cabeça.
Logo após o casamento, a Mariana teve uma ideia brilhante. Foi um plano simples e fácil de executar, como são normalmente os seus planos, e com um objectivo simples: era preciso impedir que eles estivessem juntos por um curto tempo, para que sentissem um bocadinho a falta um do outro,
Num instante, manipulámos os resultados das análises do pai da criança dela e foram assim obrigados a esperar uns dias para se abraçarem de novo, e mesmo assim num ambiente controlado, com a filha dela a dormir no andar de cima.
Foi engraçado vê-los num comportamento mais típico de teenagers, a namorarem no sofá, ele cheio de medo de ser apanhado pela filha dela, a ter de sair a meio da noite para sua casa.
O plano da Mariana funcionou na perfeição, e viu-se (e ouvimos também várias vezes) o casal aproximar-se e apaixonar-se mais e mais.
À parte deste momento, tem estado tudo relativamente calmo e a equipa não só anda tranquila mas também muito feliz com o sucesso que a missão leva até agora. Para quebrar a monotonia, temos gozado com os tipos do outro SIS. Por exemplo, a rapariga tem uma amiga no hospital numa outra cidade pelo que não a pode visitar, nem ajudar em muito mais do que mensagens e telefonemas. Então um destes dias elas estavam a conversa e a amiga disse que queria mais gelatina, que era pouca a que tinha mas que não lhe davam mais. Ora o outro SIS ainda é mais secreto que o nosso, pelas razões óbvias, e qualquer suspeita por parte dos visados coloca as missões em causa, com consequências muito mais graves do que aqui. E como sabemos que quer o nosso sujeito, quer ela, andam a brincar como se o outro SIS (e não nós, como a nossa direcção pensou) lhes lesse — que lê — as mensagens e ouvisse — que ouve — os telefonemas, assim que a amiga reclamou das gelatinas que não lhe davam, achámos que era o momento perfeito de intervir e gozar com os tipos dos serviços secretos.
Ainda a amiga não tinha acabado de reclamar da sobremesa extra que tanto queria, já o Leal estava ao telefone com o agente destacado no hospital e a providenciar a dita gelatina extra. Não precisámos de esperar muito para ver a mensagem dela para ele:
“Olha, lembra-me depois de te contar da minha amiga que está no hospital e de como o sis a ajudou”
Sorrimos vitoriosos e dispersámos para os nossos afazeres, apesar de tudo mais ou menos controlado, era preciso ter sempre atenção. Eu fui para o meu gabinete e fechei a porta, porque já sabia o que aí vinha. E só tive de esperar uns breves instantes para ouvir o telefone tocar.
- Sim António. Já sabia que me ia ligar o António, director do outro SIS, a reclamar da partida. Conheci o António na academia, uma vez que estes dois SIS partilham cadeiras e alguns treinos práticos. Apesar do seu ar e comportamento militar não jogar muito comigo, até nos demos relativamente bem. Poder-se-ia dizer que éramos amigos. Mas depois a Mariana entrou, um ano abaixo, e virou as nossas cabeças para o mesmo sítio (o decote dela). Deixámos de disputar notas ou mesas de bilhar para disputar a companhia dela. E quando a Mariana decidiu optar por ‘Introdução às Técnicas de Relacionamento’ em vez de ‘Introdução às Técnicas de Persuasão de Testemunhos’, o António soube que eu estaria para sempre mais perto dela, e desde então que me tem o mesmo respeito e amizade que tem um turco por um curdo.
- Meu grande filho da mãe!- continuou — isto foi obra tua de certeza! Importas-te de parar de te meter no nosso trabalho? Fica aí no teu canto a juntar pombinhos e deixas para nós as coisas sérias? Custa-te muito? — a tom da voz dele dava-me algum gozo e por isso mantinha-me em silêncio — Pá, eu sei que tu não conseguiste melhor, que te deves sentir frustado ao ter ido para uma merda de um serviço só por causa de um rabo de saias, mas eu não tenho culpa dessa merda! Podemos trabalhar em paz, ou vais continuar a meter o bedelho com essas infantilidades? Fazes ideia do que isto fez? Recebi um fax meu! um fax! quem é que ainda usa fax??? Um faz a dizer só: ‘Missão em stand by. Todos os operacionais da missão devem aguardar silenciosamente novos procedimentos, sem excepção.’ Os tipos da direcção devem achar que fomos apanhados à conta da tua brincadeira!
Conseguia imaginar o António a espumar da boca porque o tinha presenciado demasiadas vezes, sobretudo quando perdia no bilhar, ou nas noites de poker.
- Consigo ouvir-te a rir, meu cabrãozinho! Desmanchaste uma missão à conta de uma gelatina… achas normal???? E agora, diz-me lá, o que é que eu faço?
- Vai nadar com os golfinhos, diz que acalma.
E desliguei.
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daminhavidacuidastu · 4 years ago
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confimamento
Querida filha,
Foram 15 dias seguidos contigo. Nunca tínhamos estado tanto tempo juntos. Serrámos a cama de casal do pai ao meio e fizemos dela uma cama nova para ti. Aparafusámos a cama. Pintámos a parede verde do quarto de azul. Fomos aos CTT. Aparafusámos mais a cama. Passeámos a Poncha. Fomos ver as cabras e as ovelhas. Pintámos o resto do quarto de branco. Aparafusámos ainda mais a cama, porque o estrado caía. Fizemos um sofá para o terraço. Fomos outra vez ver as cabras. Vimos 236 episódios de Tal mãe tal filha, em brasileiro... Fomos outra vez aos CTT a desejar que não fosse o Sr Abilio a atender-nos, porque demora taaaaannnnnttoo…. Cortámos um colchão com a faca do pão, para fazer almofadas para o sofá do terraço. Fomos ao escritório buscar os rolos e tiveste medo do Filipe. Passeámos de bicicleta. Comemos Rana. Abraçámos a Poncha. Fizemos as nossas pizzas que ficaram melhores que as do Mr Pizza. Fizemos rolo de carne que não ficou melhor que o da mãe. Vimos o Edan o poderoso e tu riste alto como eu gosto de te ouvir rir. Prometemos que amanhã é que arrumavamos o terraço. Zanguei-me contigo com as toalhas molhadas na cama, a desarrumação do sofá, do quarto, da casa de banho. Abraçamo-nos logo depois. Riste comigo a provar a minha sopa e fizeste ‘Ahhhh… isto está tão bom’ antes de mim. Jogámos ao caça a bandeira, que não eram bandeiras mas princesas de lego. E às escondidas. Falámos do inter rail e dos disparates do pai e do tio Pedro, e tu riste alto outra vez. Fomos passear a poncha. Jogaste Animal Crossing. E minecraft. Perguntaste à senhora dos CTT se o correio rápido era azul porque é que o lento não era vermelho (e com razão)… Dançamos com o just dance. Fomos ao Lidl e comprámos pão. Sempre pão. E Rana… (acho que não consigo comer mais Rana até 2022).
Contei-te o que tinha ouvido no café, e tu riste tanto. - O sr pisou-me! (aos gritos) - Então mas você é que me mandou andar!!! - Mas não era para me pisar… - Epá, desculpe, não foi de propósito - MAS PISOU-ME!!!!! - MAS FOI VOCÊ QUE DISSE PARA EU AVANÇAR COM O CARRO!!!!!!
Passeámos de bicicleta até Belém pela Junqueira porque não gostas de ir junto ao rio. Continuámos a dizer que amanhã é que arrumamos o terraço. Passeaste a poncha sozinha porque eu tinha de cortar hexágonos. Fizémos sopa outra vez. Cortámos mais hexágonos. Ajudaste-me a empacotar. Fomos aos CTT e esquecemo-nos sempre da carta para a mãe (que foi hoje com esta). Jogámos outra vez ao caça a bandeira. Vimos mais Tal mãe tal filha. Jogámos com o balão, sempre com a Poncha a tentar comer o balão. Conversámos.
Eu disse que ia adorar o silêncio que ia ficar depois de saíres mas a verdade é que odeio. E estou já morto de saudades tuas. Foste embora e o terraço continua desarrumado, o estrado da tua cama continua a cair e as princesas do jogo que inventaste continuam aqui à espera que alguém as encontre.
Amo-te. E foi o melhor confinamento de sempre. Obrigado por tudo.
(Escrevi isto tudo no nosso diário cor de rosa. E depois passei para aqui porque nunca percebes a minha letra. Até já.)
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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árvore
Este é o meu sonho e não me canso de to dizer.
"Até sermos árvores."
O meu sonho é ficarmos juntos até sermos tão velhinhos, tão velhinhos, que eventualmente morríamos e deitavam (tu dirias jogavam, nessa tua maneira de falar que tanto gosto) as nossas cinzas num jardim qualquer bonito e grande, onde pais brincam com filhas, casais namoram e pessoas solitárias passeiam. Um jardim onde todos se esqueciam de uma manta para se sentarem porque estavam a contar com a relva, mas onde haveria um único espaço com relva, junto a um lago grande repleto de tartarugas e patos.
Até sermos árvores.
E da nossa morte bonita, uns netos e filhos e tudo isso, uma família inteira que teríamos construído então haveria de nos jogar no chão desse jardim. E das nossas cinzas nasceriam árvores grandes e bonitas e cheias de folhas verdes no verão, nuas no inverno e que no outono, como dizia uma frase que li um destes dias, ensinaria a todos o bonito que é às vezes deixas as coisas cair.
E que essas folhas, num agosto quente qualquer, fariam sombra sobre esse único espaço com relva, junto ao lago. E nessa mesma relva estaria um casal de namorados sentados num intervalo das suas atribuladas vidas, a namorar como fazem as pessoas que estão apaixonadas. Um casal que teria vindo do hospital - de rotina - e que desse hospital teriam decidido que o melhor, neste pequeno intervalo que tinham, era irem namorar para um jardim, na sombra da árvore que éramos nós. Imaginas o bonito que seria, num dia de sol quente nós os dois juntos a dar o fresco da nossa sombra a esse casal bonito, tão bonito juntos, que tinha decidido nesse dia namorar num jardim qualquer.
Nessa nossa sombra eles, menino e menina, dariam beijos apaixonados, trocariam colos, abraços, carinhos. Talvez um deles, ou os dois, tivesse de trabalhar entretanto com o outro no colo. Até poderiam ter, imagina tu, um semanário repleto de notícias que nunca seriam lidas. Um jornal inteiro que nunca seria sequer folheado porque naquele intervalo, naquele pequeno intervalo, a nossa sombra e os dois juntos eram mais importantes que todos os acontecimentos do mundo inteiro, juntos e empilhados.
E por entre essas nossas folhas muito verdes, a quebrar a sombra que lhes faríamos, passariam raios de sol para dançarem - como disseste uma vez - nos rostos deste casal para que eles vissem juntos e simultaneamente o bonito que eram assim, a namorar, como fazem duas pessoas que se amam. A namorar. Para que soubessem os dois ali, na luz que lhes concedíamos, o bonito que eram e que não poderiam, ou não deveriam, desperdiçar um amor daquele tamanho. Um amor tão maior que nós os dois juntos, meu amor, que seriamos já do tamanho de árvores muito grandes e frondosas. Porque um dia, a nossa família, que construímos eu e tu, tu e eu, nos tinha deitado (jogado) na relva de um jardim.
E o menino, que seria menino, no meio de toda a confusão das suas vidas conjuntas, no meio do medo que tinha dessas vidas conjuntas, mas (muito) cheio de amor pela menina que teria pela frente, havia de lhe dizer ao ouvido, a medo, porque os meninos são medricas mesmo quando se fazem se fortes: - Até sermos árvores.
E ela, a medo, sorriria e iria fazer-lhe uma festa na cara, aconchegar o menino no seu colo - acalmando-o - e haveria de dizer que sim com a cabeça, num sorriso muito bonito que só ela tinha.
E nós, meu amor, nessa forma de árvores que seríamos os dois então, havíamos de nos rir. E na relva onde estavam esses dois meninos sentados ouvir-se-ia o som das nossas gargalhadas em forma de um folhear que só a menina na relva ouviria porque o menino, esse, ouve muito mal e estaria apenas concentrado em que ela soubesse do seu sonho: que era estar com ela no seu colo uns dias, ou ao seu lado num passeio da rua a ver o rio noutros, entrelaçada nele enquanto faziam amor muitas vezes ou apartados porque se tinham zangado os dois (poucas vezes) com a certeza, ambos, que seria para se juntarem de seguida na cama... do seu sonho de estarem de coração juntos enquanto passavam o melhor dos momentos a dançar na cozinha sem som ou o pior dos momentos sentados no chão de qualquer sítio a comer chocolates de uma máquina de moedas, o seu sonho tão simples como acordar de manhã a olhar para esses olhos para onde olhava agora, debaixo da nossa sombra, até ser árvore.
E o menino, a medo, porque - repito - os meninos são medricas apesar de se fazerem fortes, havia de dizer à menina, na sombra que eu e tu, agora árvore, lhes fazíamos, que tinha um sonho e diria que esse sonho era estarem juntos
"Até sermos árvores."
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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urgência
urge o tempo. não um tempo real (nunca é), mas antes uma sensação de tempo. talvez urjam mais as certezas que o tempo propriamente dito, mas essas certezas viram apenas do tempo e da passagem desse tempo por ele.
isto pensava o rapaz sentado no café que à noite tinha jazz ao vivo tocado por marionetas que não se cansavam do tempo que urgia em passar.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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prender
Não te prendas àquilo que queres ouvir, mas ao que ouves realmente. Não te prendas ao que imaginas que amanhã vai acontecer, porque amanhã não vai acontecer nada de inesperado. Prende-te às pessoas, mas às pessoas que te prendem a elas. E não largues mais. Não te prendas aos medos, às angústias por ti criadas, ao que na tua cabeça dança.
Prende-te ao que realmente acontece e solta-te apenas do que realmente acontece. O resto são fantasias.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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rapaz chão
o rapaz sentou-se no café a escrever o que quer calar. uma rapariga, solta, olha-o de relance e pensa que ele aparenta pesar mais quinze quilos do que aparentar pesar. rapaz pesado. no entanto, não sendo esquelético, não é também o que chamamos um gordo. mas hoje, sentado no café, aparenta levar consigo um peso maior do que tem em si. talvez carregue (o leve não pode ser empregado aqui). talvez não carregue nada e sejam só as dores de crescer. de um amor longe que cresce sem parar.
não sabemos de nada. nem nós nem a rapariga que o olha de vez em quando. a medo, diz-lhe olá. com a boca muda a abrir e a fechar. ele lê-lhe os lábios e sorri a contragosto. o peso atirou-o para o chão de onde não tem forças para sair.
venceram-no o medo, a interrupção de felicidade, os apartares de corpos que se querem juntos. venceram-no o medo, o silêncio, o vazio. venceram-no os medos criados nele por passados próximos. é agora um rapaz medricas e pesado. e falta-lhe o sorriso para dizer olá.
rapaz chão.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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tranquilidade
Ouvir-se-ia: “gosto muito de ti, de estar contigo e em ti” no escuro de um quarto perfumado pelos seus corpos, os sons das palavras tão verdadeiras e comuns aos dois que nenhum deles saberia qual as proferiu e qual as ouviu.
seria um tempo de alguma tranquilidade. nos copos um do outro estabeleceriam-se ligações novas e polidas. ligações brilhantes.
‘gosto tanto de ti.’ ouvir-se-ia
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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corpos
sentia-se calmo e feliz. qualquer coisa que ia crescendo dentro e em conjunto. abraços apertados e um entrosamento feliz. o corpo dela encostada ao dele fazia dos dois corpos mais bonitos. o corpo dele encostado ao dela fazia dos dois corpos mais bonitos. andava na rua vestido de sorriso meio tolo.
os medos iam dando lugar a qualquer coisa que crescia dentro dele muito mais bonita. ele guardava muito bem tudo o que ela dizia e sentia e queria ter sempre muito cuidado com tudo, para não partir nada.
sentia-se tranquilo. 
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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dorido
“sentes as dores todas de ontem como se fossem hoje. por muito que procures refúgios, outras perspectivas, outros enquadramentos. as pessoas marcaram-te sempre e as tuas experiências fazem de ti quem tu és.”
isto dizia o rapaz calado, a pensar para dentro no piroso que tudo isto era, mas verdadeiro. ainda ia acrescentar ‘para o bom e para o mal’, mas nem ele próprio era capaz de ouvir essa expressão.
sentia-se dorido. como se as relações fossem enormes sessões de ginásio sem a satisfação do corpo a endorfirmar. dessa dor vinha medo, e desse medo cuidado.
“e eu não sei viver muito bem em cuidado... desculpa” diria ele ainda para dentro da cabeça. e quereria acrescentar “nem sei se isto é bom ou mau” mas tinha pavor a tal expressão.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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tolo
“não te faças de tolo que não és” dizia ela ao menino que continuava sentado no sofá sem entender metade do que ela dizia.
‘humm?’
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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ana
não digas o que sentes. cala e espera. guarda em ti o que vos pode afastar mesmo que acredites piamente que vos pode aproximar. sonha para dentro. diz só o essencial e necessário ao decorrer dos dias que não estão juntos. faz de conta que é assim mesmo
e possivelmente um dia poderás falar o que entenderes.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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Distância
A distância abandona o desejo. A ausência do outro, do nos, afasta vagarosamente a necessidade da pele, beijo, toque que conduz o desejo como água.
Num marasmo de palavras que se trocam existe a subtileza de se esconder e acalmar essa privação e alimentar um pouco mais o desejo que nasce em carne viva.
Aos poucos afastando-se do que é a verdadeira relação: eu toco no teu corpo todo e tu tocas no meu todo.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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Ha dias
Há dias mais pesados que outros. Sem qualquer razão aparente o dia torna-se pesado, sujo. Exerce-se sobre o meu corpo uma pressão atmosférica maior do que sobre a maioria dos corpos. Não há grandes soluções e resta-nos (a mim) esperar. Compreender e aceitar que o dia será assim.
Daqui a umas horas, de noite já, inerte na cama vou desejar apenas que amanhã não seja um dia.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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O Famoso Inspector F.O.R.D
Introdução
Francisco Oliveira de Rameiro e Silva, mais conhecido como inspector FORD, foi indubitavelmente um dos mais famosos e bem sucedidos detectives particulares de sempre. A perspicácia que demonstrou ao ilibidar a mulher de Sousa, no caso d’O Homem Que Se Suicidou Com Uma Embalagem de Leite, ou a rapidez com que resolveu o Estranho Caso do Homem que se Raptou a si Próprio – ambos referidos nestes apontamentos – não deixam dúvidas acerca da sua mente brilhante e dos seus eficazes métodos, ainda hoje estudados nas mais importantes escolas de detectives, bem como nas mais prestigiadas policias do mundo.
Apesar das certezas quanto às suas capacidades enquanto inspector, muitas dúvidas persistem quanto ao passado de Ford. Uns dizem que seria um agente da CIA, que após ter encontrado a sua mulher com um pinguim teria imigrado para Lisboa onde teria encontrado Eolinda, outros que era uma experiência levada acabo pelo MIT da qual teria resultado um homem com a beleza de Bela Lugosi, a inteligência de Claudia Schiffer, a perspicácia de Arnold Schwarzenegger e a subtileza de Silvestre Stallone, outros, mais cépticos, afirmam que seria apenas o Sr. Pereira, dono de uma papelaria na Estrada de Benfica, frustado por apenas vender bolas de futebol e afias, tendo desaparecido misteriosamente pouco depois do 25 de Abril e se transformado nesse homem que é um marco na história das investigações.
Estes apontamentos, retirados durante a inspecção do Estranho Caso da Mulher que Vestia Lingerie Cor de Laranja e que se salvaram milagrosamente graças a Eolinda, a sua fiel e ‘sempre pronta para mais uma’ (pág 14) assistente, vêm não só demonstrar o raro instinto e humanidade deste inspector, como também esclarecer muitas dessas dúvidas.
Capítulo Primeiro Carta Anónima sobre a Entidade do Inspector FORD
Caro Senhor
Verifiquei, não sem grande preocupação, que mais uma vez a questão da verdadeira identidade do insp. Ford é trazida à discussão a par com o relato das mais espectaculares investigações levadas a cabo por esse expoente máximo da congeminação cerebral ao serviço da justiça. Obrigado que estou por solene juramento, não posso nem quero revelar aquela que julgo ser a verdadeira identidade do insp. Ford. Mas afinal para quê procurar o nome da metamorfose, se o objecto do nosso interesse é o inspector e não a sua anterior existência? Não revelarei pois esse segredo que, a menos que de outro modo o exijam  os superiores interesses da Nação, levarei comigo para a tumba. Posso, no entanto, ajuda-lo com alguns dados que possuo sobre a totalidade dos casos, pois tenho em meu poder  diversos cadernos de apontamentos de Vitalino von Denvork. Permita-me que exponha a extrema importância de Vitalino von Denvork em todo este processo, e o modo como fiquei possuidor dos seus cadernos de apontamentos: Natural de Leixões, filho de um marinheiro alemão em escala no referido porto e de uma varina de Leça, foi, por correspondência, reconhecido como filho pelo marinheiro do qual tomou o nome de família. Devido à localização geográfica, de peculiar pronúncia,  e a uma particular competência para ganhar apostas envolvendo rapidez, quantidade e vinho tinto, fazia jus, nas tascas da Ribeira,  ao nobre apelido germânico  Bom de Emborque. Da ligação esporádica de Vitalino com uma desconhecida nasceu, registada como filha de mãe incógnita, Salete. Acabrunhada por ter que arrastar consigo a ignomínia, embora rara, de não ser reconhecida pela mãe, Salete enveredou pela carreira artística.
A pretexto de lhe mostrar a fotocópia já caducada de um B.I. pertencente a uma senhora que poderia, em determinadas circunstâncias, ser considerada vagamente parecida com aquela que teria tido uma filha parecida com ela, conheci Salete no Cabaré onde, com muito sucesso actuava sob o nome artístico de Tinita. Se por um lado não consegui deslindar o caso da maternidade de Tinita, e consequentemente ficou por castigar quem ignominiosamente se aproveitou do estado debilitado de Vitalino depois de retirar 23 segundos ao seu próprio record (mundial) dos cinco litros, por outro lado nasceu entre mim e Tinita uma profunda amizade, direi mesmo uma relação amorosa, que durou o mesmo tempo que as minhas economias. Guardo dessa época saudosas recordações, um extrato bancário escrito a vermelho e, importante para o assunto em apreço, os livros de apontamentos de Vitalino von Denvork.
Já dei conta do modo como os livros de apontamentos vieram parar às minhas mãos, falta provar a sua importância: Abandonado pela desconhecida, solteiro e com uma criança nos braços, Vitalino não teve outra alternativa senão entregar-se ao trabalho. Arranjou então emprego como aprendiz de tanoeiro numas caves de vinho do Porto, produto de que também era profundo conhecedor, e com grande sacrifício, sob o lema Investir Na Educação É Investir No Futuro, dedicava algumas noites por semana a aprender, com um vizinho benévolo e instruído, a escrever o  nome. Podemos ver, partir da folha 57 do primeiro livro, como  primeira letra da assinatura o B substituído por um belo V em cursivo. Já primeiro oficial de tanoeiro juntou-se com uma porteira e, como a porteira contratou uma senhora para limpar a escada do prédio, arranjaram maneira de dividir, Vitalino e a porteira, o lugar de recepcionistas do centro comercial A Nossa Independência em cuja Sobreloja, na sala 300 , estava sediada a Agência FORD. Vitalino, a falta de melhor para se entreter, passou a tomar nota de tudo quanto via e a porteira lhe contava, não só porque espionava a correspondência  do cacifo FORD 300 SL como porque falava muito com a filha da Preciosa, lá da Cantareira, e que era, como V.Exa. já terá adivinhado, a Eolinda.
Complementam e suportam estes cadernos, de forma incontornável, os relatos que se pretende agora dar a conhecer, fico à disposição de V.Exa. para o que se lhe ofereça oportuno e, atento, venerador e obrigado me assino
Um criado ao seu dispor
Assinatura ilegível
Capítulo Segundo Uma dança por Jessica
Os dois homens
Dois homens bailam em tronco nu a dança da morte, descalços num chão de lama seca. Como testemunhas, duas ratazanas que exploram o lixo e um vulto a contra luz numa janela. Olhos nos olhos, em gestos que ora ameaçam, atacam e defendem, sabem ambos que do beco apenas um sairá, que apenas um voltará a ver o rosto daquela que é disputada, a sentir-lhe o calor num colchão sem lençois, a pronunciar o seu nome entre dentes numa outra dança. Morgado, conhecido por Fininho (alcunha ultrapassada pelo seu amor ao cozido à portuguesa regado com, pelo menos, duas garrafas de tinto Biqueirão), ajudante de capataz quando calha, assíduo frequentador dos treinos do Casa Pia, onde jogou a ponta de lança um único jogo, de onde foi expulso para sempre depois de pontapetear nas partes baixas o árbitro auxiliar depois deste lhe ter anulado o golo de estreia por for a de jogo – e Tocas, ou Coelho (não de apelido mas antes pela quantidade de descendentes espalhados pela cidade), ou ainda Abafador, porque tem como segunda habilidade calar bocas com tendência para falar e fechar olhos que vêem demais, amigos de infância, frequentadores das noites de bola n’O Cantinho, onde invariavelmente e depois de muitas ‘mines’ terminam em brutais cenas de pancadaria.
Numa dessas noites, sob o pretexto de alguém ter ofendido a ‘santa mãezinha’ de Morgado, destruiram todo o café e seguiram, deambulantes, para a casa de Mã, angolana que chegou a casa pela mão de um tio e, depois de um breve romance com um senhor da alta amealhou o suficiente para abrir uma casa de espectáculos e variedades. Foi nesta casa que viram pela primeira vez actuar Jessica. É por este nome que lutam, pelas suas ancas que levantam os punhais toscos, estudando os gestos do adversário.
A mulher
Num outro beco, igualmente escuro, num quarto de um Segundo andar, Jessica não sabe por quem espera. Deitada num colchão nú, vestida com o que Deus lhe deu, entrelaça nos dedos um terço de Madeira e reza para que um deles chegue, ou mesmo os dois, e apague o calor de seu corpo. Unhas das mãos e dos pés meticulosamente arranjadas por Mã, dos tempos em que chegou a Lisboa como ajudante de pedicure, pintadas de lilás com brilhantes. ‘Moda em Paris, minha Linda, acredita que é a última moda em Paris.’
Jessica, actuante principal no espectáculo arranjado por Mã. Ou Eolinda, secretária puritana do famoso inspector Ford, mulher do norte.
O Vulto na janela
Enquanto os dois homens lutam, numa janela em cima um vulto testemunha a guerra e aguarda pelo vencedor. Brilham no escuro as navalhas ferindo os olhos de quem passa a correr por não querer ver, nem ouvir, nem cheirar a morte. O beco, vive no silêncio habitual de uma noite de quarta-feira, quebrado por um agudo silvo quando Morgado investe em força, Fininho num passe de tango dá-lhe a volta para lhe infligir o golpe final. Morgado tomba, e fecha os olhos no seu mais profundo sono. O sorriso estraga-lhe o ar duro de rufia e um anjo iluminado pela lua num quadro de Guernico surge no seu lugar.
Fininho, triunfante, afasta-se. De repente, o beco estreito e lamacento surge-lhe como um corredor interminável, o lugar onde nasceu e cresceu, a sua segunda casa, parece-lhe um local estranho e desconhecido. As escadas onde pela primeira vez sentiu o calor do peito de uma mulher, neste caso Sandra, que trocava favores sexuais por Bolas de Berlim, não são mais um local confortante, o prédio abandonado, onde tantas vezes se escondeu de quem o perseguia, ergue-se no céu tenebrosamente e pelo canto do olho Fininho vê em correrias os fantasmas de quem matou. Assustado, pela primeira vez na vida realmente assustado, fixa os olhos no fim deste corredor da morte, no cruzamento com a Avenida, iluminada apressa o passo e quando sente um arrepio percorrer a espinha, como se alguém lhe fizesse festas no pescoço, começa a correr e...
Jessica que Espera
Eolinda, ou Jessica, luta contra o sono. O calor do seu corpo foi-se esmorecendo conforme as horas avançaram. Agora, coberta com uma rede de lã tecida á mão com restos e pontas, sente-se só, de esperanças desfeitas, imaginando-se esquecida pelos dois amantes, ou trocada por outras.
Quem entrará no seu quarto dentro de breves instantes , já o sabemos, não será Morgado. Nem Fininho, que antes de chegar á avenida sentiu o frio de uma bala de prata entrar nas costas, entre a quarta e quinta costela.
O vulto já não se encontra na janela e Fininho jaz deitado de rosto na lama seca enquanto o sangue mancha o beco e Jessica, ou Eolinda, sentirá o calor de um outro corpo sedento do seu sem saber, nem perguntar 'Quem és tu?', acordando pela manhã com os raios de sol, tendo como única companhia o cheiro quente que inunda o quarto e uma beata de Sg Gigante no cinzeiro.
-Estou atrasada, pensa Eolinda. E vestindo-se à pressa sai para a rua com um sorriso de menina no rosto.
Carta de resposta ao segundo Capítulo
Exmo. Senhor
Li com muita atenção o cap. 2 do relato que faz V.Exa. das extraordinárias aventuras do Insp. Ford, e apresso-me a remeter algumas confirmações, assim como correcções, ao seu escrito. Move-me apenas o desejo de ver desmistificada a memória de FORD, corrigidos os inúmeros erros que pseudobiógrafos têm divulgado, o indecoroso aproveitamento que alguns têm feito da personalidade impar do insigne investigador.
Desde já uma pequena correcção: É pelo menos injusto apelidar de toscos punhais, ou talvez porque estava no beco muito escuro, duas das mais eficientes e belas naifas que alguma vez a noite lisboeta conheceu. A do Fininho era genuína de Toledo, até foi comprada quando ele acompanhou, em trabalho, uma excursão que o Prior da Mouraria organizou de camioneta a Lourdes. A do Coelho foi gamada a um marujo que não teve tempo de declinar a nacionalidade, mas também era de ponta-e-mola.
Conheci ambos no miserável tugúrio da Mã, já eles andavam pegados, quando de Tinita (eu chamava-lhe Tininha), a contorcionista, ainda eu tentava reaver parte da verba investida. Curioso como estas coisas são: Eu investia, ela desvestia. Eu monetária e fisicamente (por esta ordem), ela a minha conta e o corpo (pela mesma ordem). Mas continuando, conheci o Fininho numa bela manhã de Primavera, quando ele ainda "andava a meter os garfos" nos transportes públicos. A casa de Mã, para uns honesto local de divertimento e sã convivência, para outros infame espelunca e antro de perdição, abria só para a "suaré", como se dizia,  mas ao fim da manhã os clientes da casa já podiam entrar, até porque era então que decorriam os ensaios das artistas. Pois nessa manhã apresentou-se o Fininho ao balcão, à hora em que devia estar a dar desgostos aos utentes dos transportes públicos, todo bem barbeado, de ponto em branco, casaquinho de malha no braço e quele ar de bom rapaz que então tinha. O barman, que arrumava no balcão frigorífico a recente entrega de cerveja, cumprimentou bem-humurado: - Atão Fininho, não fazes népia? - E o Fininho: -Não posso, já estou muito conhecido! Atão apanhei o comboio p'rá Parede, p'ra vir a trabalhar até ó Caxodré, até levava este casaco de muleta e tudo. -Aqui explico aos seus leitores que a muleta não é exclusiva dos toureiros, também é qualquer coisa que esconda dos circunstantes a mão(garfo) do carteirista - E atão não é qu'incontro um mono que já m'incanou duas vezes e me  diss'assim Ó Fininho, veste o casaquinho que está fresco!, E eu tive que vir até Lisboa sem trabalhar, c'o mono a gozar comigo. Quer-se dizer, até foi um gajo porreiro, qu'ele sabia qu'eu não o tinha mancado e  era só eu meter os garfos que me podia dar logo a cana. Isto há dias...Dá cá uma bica."  Por estas alturas já andava o Fininho a pensar mudar de vida e considerava a possibilidade de se apoderar do remanescente do meu investimento na Tininha contorcionista. Já o Coelho, respeitadíssimo cliente das mais coceituadas casas de jogo clandestino, pai assumido de inúmera prole, de quem alguns diziam "pai de muitos filhos de putas, e maior que todos eles juntos", também por essa altura andava a ver se Tinita alinhava com ele num investimento garantido. Ficariam sócios duma das casas de jogo e asseguravam se não o futuro dele e dela, pelo menos o dele. O Fininho acusava o Coelho de se andar a fazer ao arame da Tininha "p'ra s'órientar", o Coelho, que o Fininho se andava a enfeitar ao capital mas só queria "gamar a rapariga", ambos estavam de acordo que "isso não se faz". No final tanto um como o outro o que queriam era aquelas que já tinham sido as minhas economias. Confirmo portanto que da antiga amizade entre o Coelho e o Fininho tinha nascido, por questões morais e de princípios, o mais profundo ódio. Ódio que culminou com a cena de naifada objecto do início do esclarecido Cap. 2 do não menos esclarecido relato dos casos do Insp. FORD. Desponta no entanto uma pequena dúvida no meu espírito: Estaremos nós a falar das mesmas pessoas? Será o "meu" Ford o mesmo Ford que é "seu"? Serão Tinita e Tininha a mesma pessoa? Será Mã, a eslava disfarçada de angolana, especialista em muamba da treta e em logros, a virgem mas não virginal Eolinda, e sendo-o, será virgem? Mas assim sendo como é que era dos conhecimentos da porteira?
Devo confessar, caro Senhor, que quanto mais a sua história avança mais eu me interrogo. Serão os cadernos de Vitalino, encontrados dentro de uma bilha na Leitaria A Gruta, ao lado do Restaurante Mar Morto, apócrifos? Terá sido o Sr. Morgado, que come pasteis de bacalhau como quem despacha um pires de  tremoços, o Fininho?
E o Coelho, de quem herdei a navalha e a obrigação, que eu chamo  Legado Pio, de pelo menos uma vez por semana ir em sua memória beber um Branco Velho na Tasca do Pardal, será o mesmo? E as interrogações atropelam-se no meu espírito: Quem é a porteira? Onde anda a Polícia? Quem era  inspector que encanou o Fininho? Que horas são? Quem é o Sr? Onde é o Autocarro? Quantos pelos tem o gato?
Aguardo o desenvolvimento da sua história e subscrevo-me
Muito atentamente
Capítulo Terceiro 'A Viúva de Branco' ou 'A Noiva de Preto' ou ainda 'Morgado - As Viúvas também se abatem'
“Podiam ter entrado por esta porta qualquer uma das 6 233 821 945 pessoas que habitam este planeta, uma infinidade de espécies diferentes de animais, até a minha mãe, Deus a tenha no céu, mas esta gaja???…”
Eolinda, mais disposta hoje que em qualquer outro dia, anuncia a chegada da Sra. Morgado e pergunta, na sua estridente voz, se pode mandar entrar.
-Não, quer dizer… sim, só um momento.
Enquanto Eolinda se afasta no seu vestido de verão azul, mais mulher, segura de si, bamboleante o suficiente para, num dia normal, deixar Ford completamente for a de si. Mas hoje não é um dia normal. A Sra Morgado está á sua porta, e advinha-se o vestido preto por trás do vidro fosco onde se lê as iniciais do seu nome completo. Enquanto acende um cigarro, nervoso, Ford grita ao intercomunicador – que na realidade é apenas um fio de nylon com duas caixas de iogurte em cada uma das suas extremidades – para que a Sra Morgado entre.
Mais tarde, Ford descreveria a cena como a mais terrível que alguma vez assistiu. Na leitaria A Gruta, rodeado dos clientes habituais, as suas palavras tornavam-se estranhas caretas nos rostos que as ouviam.
“Nunca vi nada assim. Aquela mulher, fiel esposa do Sr Morgado, entrou vestida no meu gabinete não de preto, como seria de esperar, mas de noiva. O homem dela tinha sido morto com dois tiros à queima roupa na noite anterior, e a Tininha veste-se de noiva para ir ao funeral do marido!
Imaginem, disse Ford, enquanto acendia o último dos SG Gigante, a Tininha, Titi para alguns, entrar-me pelo gabinete vestida de branco. Sentou-se, e, entre soluçoes e fungadas, disse: Eu sei, sr Inspector, eu sei... mas o meu Tutu fez-me prometer que no dia da sua chamada - disse chamada baixinho, mas notava-se a raiva nos seus brancos dentes ao pronunciar o destino do Morgado - eu me despediria dele como o cumprimentei. Você sabe, foi morto ontem, continou, mais calma, traçando as pernas longas, ajeitando os seus cabelos ruivos, afastando os caracois do rosto com um gesto de menina que acabou de fazer uma birra, de lábio inferior a apontar para o chão, pronta a voltar a chorar. Ofereci-lhe o meu lenço e pude ver, quando ela se debruçou para o aceitar, o seu peito bronzeado surgir por trás do decote. Vocês podem não acreditar, caros amigos, mas Sra Morgado, viúva, Tininha para os mais próximos, continua a ser um mulherão, um belo naco de carne. Tanto como no dia que entrou por aquela igreja, e apontou para a igreja que ficava mesmo à esquerda da esplanada, ao fundo do largo, onde Tininha entrou 15 anos antes, conduzida pelo padrinho - porque o pai nunca aceitou que ela casasse com Morgado - passando então a ser a Sra Morgado, com o nome novo no BI e tudo. Tinha sido uma festa de arromba. Casou já de esperanças, dizia-se, e a correr para não manchar a honra da família. O pai, tenente coronel da GNR de Cascais, nunca a perdouo e nem depois da morte do genro voltou a falar com a filha. A mãe, às escondidas do tenente, levava fraldas de pano ao neto e bolo de iogurte para os recém casados. O copo de água, todo oferecido pelo padrinho da noiva, o sr Mendes, talhante, que tudo arranjou em troca de uma pequena publicidade em todos os guarnanapos, pratos, e carro de noivos.
-Ora o sr inspector sabe que a polícia não vai fazer nada, mas eu quero vingança- e os seus olhos enchiam-se novamente de lágrimas - e vou vingar o meu Tutu, ou Fininho, ou Morgado, ou lá como lhe quiser chamar, e por isso aqui estão trezentos contos, para começar. Mais virão…
Ford, com os cotovelos apoiados estratégicamente para não manchar o fato castanho, demasiado quente para esta altura do ano, lançou um olhar sobre os presentes. À sua esquerda, o sr Silvino, dono do estabelecimento, fitava-lhe a boca com os seus olhos muito pequenos que mal se viam no fundo dos seus óculos, muito atento a todas as palavras que o inspector pronunciava. Atenção apenas interrompida quando tirava um lenço do bolso das calças e limpar o suor que lhe escorria pela testa. À direita de Ford, recostado na cadeira e acendendo cigarros com beatas ainda acesas daqueles que terminava, 'O Espanhol'. Contranbandista de caramelos e tabaco, enventualmente roupa e malas de senhora, directamente de Andorra La Vella para o Largo de S.Paulo, onde alimentava qualquer uma das casas comerciais do bairro. Sempre vestido de calças brancas e camisa de seda preta, 'o espanhol' usava o cabelo preto puxado para trás com brilhantina e tinha os hábitos e tiques de um gigolo italiano. Ouvia Ford com uma indiferença irritante e perturbadora, porque mal dissimulada. Todos os presentes sabiam do seu envolvimento com a Tininha, e quando Ford disse a 'Tininha, ou Titi para alguns' os olhos d'o espanhol fitaram o chão enquanto que o sr Silvino e a sra Adelaide o olharam com reprovação. Adelaide, esposa de Mendes, o talhante que patrocinou o casamento de Tininha, já conhecia o que Ford contava agora, e limitava-se a abanar a cabeça dizendo que sim, confirmando. Conhecia a história em três versões diferentes, e, cruzando-as, analisando as suas contradições e pontos em comum, era a única de todos os envolvidos que detinha a verdade. Mas guardava-a a sete chaves, e ouvia com o interesse profissional de uma cabeleireira. Num destes dias, Tininha, à vinda do gabinete do inspector, entrou no salão de beleza "A d'Ela Ide" e contou à sra Adelaide a sua versão dos acontecimentos. E nessa mesma manhã, também a fiel secretária de Ford tinha descrito o estado da sra Morgado. Restava agora a história de Ford para que das três versões se vislumbrasse a verdade.
Quando Ford continuou, os olhos voltaram a ver e ou ouvidos a ouvir. Alisou o cabelo com a palma da mão, arranjando a franja loira que lhe caía para os olhos, pediu mais uma imperial com um gesto de quem puxa um cordel invisível suspenso no ar e, limpando os óculos escuros com a gravata azul listada de branco, continuo:
-Aceitei o dinheiro sem olhar para dentro do envelope. Aquela mulher queria a morte do marido resolvida e soube com quem tinha de falar. A Tininha, já o sabemos, comia fora do prato dela, por outro lado o Morgado, ou Fininho, também não vivia sem pecar. Nenhum deles é um santo, mas como eu também não sou Deus, aceitei o caso. A vida ensinou-me a não julgar, a fechar os olhos quando não devo ver, a não ouvir mais do que devo e a mostrar-me sempre mais estúpido do que aquilo que realmente sou. Por isso, guardei o envelope na primeira gaveta da secretária, ao lado da Beatriz, a minha doce '45, Colt Lightweight Commander de cano cromado e cabo preto, fiel amiga e companheira, o meu anjo da guarda. Deixei o silêncio tomar conta da sala, acendi um cigarro e apenas voltei a falar quando a Tininha retomou os soluços. 'Dois meses', disse-lhe eu, 'em dois meses resolvo o caso ou devolvo-lhe o dinheiro. Entretanto, vou precisar da sua ajuda.' Ela ia assentindo com a cabeça, como uma criança que quer um doce e promete portar-se bem. 'Depois do funeral passo por sua casa para um breve interrogatório e vaculhar as coisas do seu marido. Ainda mora na esquina com o elevador?' O sim dela foi inaudível. Estava visivelmente incomodada e, por isso, deixei-a descansar. Disse-lhe que por agora ficavamos por aqui.
Agradeceu-me, ergueu-se da cadeira em esforço e apertou-me a mão como o fazem as senhoras de posição. Á saída, deixou escapar um obrigado muito longo, sem olhar para trás e voltou a enfiar o rosto no meu lenço, que levou consigo.
Reparei que debaixo do vestido branco e rendado a Sra Morgado vestia uma lingerie cor de laranja. Por isso, quando tirei da gaveta o caderno de capa preta onde habitualmente tomo notas, escrevi, na página seguinte ao 'Clube Dumas e Outras', 'O Caso da Mulher que Vestia Lingirie Cor de Laranja'. Coloquei a data, escrevi, tal como vos contei agora, o que se tinha passado e, enquanto acendia mais um cigarro e servia um gin, Bombai sem gelo ou água tónica, comecei a riscar os suspeitos mais evidentes. O Fininho, não podia ser, pois estava morto no mesmo beco. A viúva seria suspeita, mas o Morgado não tinha nada para lhe dar depois de morto. A Eolinda, por quem os dois amigos se bateram até à morte, sei eu muito bem que não foi. E assim por diante. Fiquei com uns quantos candidatos, que heróicamente tinham passado as pré-eliminatórias, e daqui para a frente entramos nos quartos de final e só ganha mesmo o melhor, sem direito a prolongamentos ou penaltys.
Ford calou-se, bebeu de um trago a cerveja que tinha na sua frente e, dizendo que sim com a cabeça, olhou os presentes. Todos eles se sentiam incomodados. O sorriso canino, misterioso e detentor da verdade do inspectorFord punha cada um deles como suspeito, e sentiam-se de antemão culpados. Esta era uma grande capacidade de Ford, fazer com que qualquer um se senti-se culpado, causar a angustia suficiente numa pessoa para que esta se desse logo como culpada. Bastava-lhe imaginar quem teria sido, apontar o dedo para ouvir um 'sim, fui eu, tem razão, leve-me já preso que sou eu o assassino.'
Manteve o silêncio e o sorriso leve mais uns momentos, depois levantou-se, pagou e saiu para a rua. Tinha começado a chover biblicamente, mas Ford enfrentou a chuva com um encolher de ombros e fez-se ao caminho, mãos nos bolsos, olhos no chão. Havia um morto e uma viúva que queria o marido vingado. E nada ou alguém iria impedir Ford de ajudar a pobre Tininha, ou de receber os mil e quinhentos contos prometidos.
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daminhavidacuidastu · 7 years ago
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Cap I
Exmo Sr Dr Adolfo Gama Forja,
Venho por este meio pedir a valiosa ajuda dos seus vastos conhecimentos no domínio da história de arte, mais em concreto da arte produzida em Itália no final do século XIV e em diante.
Sei bem que a nossa relação no passado não terá sido a mais cordial, designadamente na época em que nos cruzámos na reitoria da Universidade de Gênova, para onde fui convidado pelo meu grande amigo Paolo Comanducci a dirigir a investigação que vossa excelência abraçava então. Este acontecimento levou, naturalmente, ao desgaste de uma relação que até então eu gostava de apelidar como de 'desrespeito mútuo', muito pelas ideias dispares que tínhamos à data sobre qual a mais revolucionária temática na pintura holandesa - se a de naturezas mortas, posição que eu e os meus colegas da UG defendemos veementemente, ou a sua posição que é tão célebre como contestada.
No entanto, se esta posição de chefia que tomei sobre a sua pessoa e os seus estudos veio trazer algum lume para esta fogueira que era já a nossa relação, por outro lado veio confirmar que apesar de termos ideias completamente dispares em vários campos, tenho de reconhecer o seu génio e os seus vastos conhecimentos.
Assim, e sem me querer alongar muito em explicações, venho humildemente pedir a sua ajuda na resolução de um mistério que tem vindo a atormentar os meus pensamentos. Acontece que me chegou às mãos (não interessa por agora como) uma obra de autor desconhecido, em muito más condições, mas que por alguma razão suscitou o meu interesse. A qualidade e o valor da obra são inequívocos, como poderá ver pelo documento anexo. Mas várias dúvidas persistem quer em relação ao objecto retratado, quer ao seu autor.
Um amigo próximo, mas não grande entendido no assunto, sugeriu que o quadro é o retrato de um Condotieri duma das repúblicas italianas do "cinquecento", possivelmente o genro da Catarina D'Este, caído em desgraça. Concorda com esta teoria? será este um ponto de partida?
O que lhe pergunto agora é se terá o Dr tempo e disponibilidade para me orientar neste caso e trocar algumas ideias sobre o assunto. Aguardo uma resposta da sua parte, certo que é um tema que lhe interessa.
Com os melhores cumprimentos, Dr. Enrique d'Encerra
1. ref Adolf Furtwängler 2. ref Heinrich Schliemann
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