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Está frio, pois sou uma mulher na geladeira
Desde muito pequena, sempre estive introduzida às mídias cinematográficas de mistérios onde sempre se iniciava com alguém desaparecido ou até mesmo aparecido, porém morto. Geralmente esse “alguém” eram personagens femininas, o que de certa forma era bastante intrigante para mim, uma garota curiosa. Perguntas como “Por que mulheres? Qual o peso disso para a trama? Faria diferença se fosse um homem no lugar?” fazia eu comparar o que eu estava vendo com todos esses questionamentos e eu me encontrava confusa, nenhum filme ou série que eu me colocasse para assistir nunca me davam essas respostas, o que me deixava inquieta e bastante enfurecida por não saber o motivo específico para que uma trama com uma mulher desaparecida ou assassinada fosse tão cativante.
Claro que isso entra muito numa visão criminal, mas existe um outro caminho que é explicável essa situação. Uma visão social sobre essas obras que abordam o termo Women in Refrigerator é bastante ampla e incômoda. O uso recorrente de mulheres como vítimas nas narrativas não é apenas um recurso de roteiro aleatório, mas sim um reflexo de uma estrutura social que há muito tempo associa o corpo feminino à vulnerabilidade, à passividade e à tragédia. Quando me dei conta disso, percebi que a inquietação que eu sentia enquanto assistia esses filmes não era à toa. Havia algo ali escondido sob o véu do mistério e da estética sombria, que dizia mais sobre a forma como a sociedade enxerga as mulheres do que sobre o próprio enredo.
A mulher morta, a mulher desaparecida, as mulheres silenciadas estavam sempre ali, no centro da história, mas paradoxalmente, ausentes. Suas vidas antes do desaparecimento raramente importavam. Seus desejos, suas falas, suas complexidades humanas, tudo isso era substituído por uma espécie de mitologia da vítima perfeita. E isso me fez entender que essas narrativas não só nos acostumam com a violência, como muitas vezes a embelezam.
Essa consciência me levou a explorar o conceito por trás do termo Women in Refrigerator, criado originalmente por Gail Simone para descrever a forma recorrente como personagens femininas são mortas ou sofrem alguma outra violência nas narrativas apenas para servir ao desenvolvimento emocional ou à motivação dos protagonistas masculinos. Ainda que esse termo tenha nascido nos quadrinhos, ele se aplica perfeitamente à cinematografia moderna
e especialmente aos thrillers e dramas policiais que povoaram minha infância e adolescência. Ao observarmos essas obras com mais cuidado, percebemos um padrão: a violência contra mulheres não é apenas retratada como um problema social, mas muitas vezes romantizada ou estetizada de forma perigosa. A garota morta, com seus cabelos espalhados na grama e uma trilha sonora melancólica ao fundo, vira ícone. Ela deixa de ser uma personagem e passa a ser um símbolo de tragédia, de pureza corrompida, de mistério. Mas raramente é uma pessoa.
Vivemos em uma sociedade que ainda normaliza o medo e a violência como parte do cotidiano feminino. O desaparecimento de uma mulher causa alvoroço narrativo porque, infelizmente, é verossímil demais. E quando o cinema ou a televisão utilizam essa realidade como entretenimento, sem responsabilidade ou profundidade, contribuem para uma banalização do trauma feminino. O que era para ser uma denúncia se transforma em espetáculo. Um dos exemplos mais emblemáticos e talvez um dos mais influentes dessa estética da mulher morta como motor da narrativa é Laura Palmer, de Twin Peaks, criada por David Lynch e Mark Frost. Quando o corpo de Laura, embrulhado em plástico é encontrado na abertura do primeiro episódio, todo o enredo da série se desdobra a partir dessa imagem icônica. Mas o mais curioso é que embora ela esteja no centro da trama, Laura é uma presença fantasmal sempre falada, raramente vista em vida. É nesse ponto que Twin Peaks funciona como um exemplo paradoxal. Por um lado, ela reforça o tropo clássico da "garota morta que impulsiona a investigação". Por outro, subverte esse mesmo tropo ao mostrar, aos poucos, como a comunidade inteira participou da construção e da destruição de Laura. A série nos faz sentir o vazio da sua ausência, mas também o incômodo de termos conhecido tão pouco sobre ela enquanto ainda estava viva. Laura não é apenas uma vítima, ela é um símbolo de tudo que se esconde sob a superfície da normalidade suburbana, o que é retratado, por exemplo, em seu livro "O diário secreto de Laura Palmer” escrito por Jennifer Lynch, filha de David Lynch que nos mostra o ponto de vista da personagem e como ela se sentia sendo consumida pela sua vida caótica. Essa mesma romantização é o que tantas vezes me causava desconforto ao assistir filmes de mistério. A figura da jovem assassinada, bela e trágica, era repetida à exaustão mas raramente suas histórias iam além da dor. Laura Palmer, então me ajudou a perceber que o problema não é simplesmente que essas histórias existam, mas como elas são contadas. Se a mulher morta serve apenas como um dispositivo narrativo, ela é reduzida a objeto. Mas quando sua voz ecoa, mesmo na ausência, há possibilidade de transformação de enredo.
A inquietação que eu sentia quando era mais nova, sem saber ao certo por que aquelas histórias me incomodavam, hoje se transformou em consciência crítica. Entendi que aquilo que me fascinava era também o que me feria. E que esse fascínio, compartilhado por tantos, precisa ser revisto, não para que deixemos de contar essas histórias, mas para que comecemos, finalmente, a contá-las direito.
Porque a verdadeira pergunta nunca foi apenas "Quem matou Laura Palmer?", mas sim: Quem conta sua história? E por quê?
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Snoopy and Twin Peaks
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