Tumgik
doisdestuff-blog · 8 years
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Pequeno conto político
Lembro-me da época da eleição. "E esse tal de Michel Temer?", perguntava eu ao amigo convicto e bem informado.
"Não", brandia ele, com o dedo em riste de quem tem todas as certezas asseguradas no coração, "Michel Temer é peça importante para o nosso - eu adorava esse pronome, devidamente possessivo, de quem veste a camisa da causa - projeto de governo. Peça importante, mas secundária. É o alicerce que a presidenta precisa para consolidar o mandato".
Eu achava estranho. É tão estranho alguém cuja convicção é tanta que é capaz de reduzir um ser humano à ideia do apêndice necessário. Era assim que Michel Temer aparecia na conversa, marionete, boneco de pano, como se todo mundo fosse dono dele e já delimitasse sua apequenada, mas necessária função, um homem-objeto.
Eu tentava quedar-me em silêncio, mas emitia algum muxoxo de desaprovação. Não era uma conversa que eu queria levar adiante, pois que a discussão política de mesa de bar é sempre retrato do porquê a política não pode nunca funcionar. Mas me era difícil esconder o incômodo: minha expressão facial sempre me vende, minha inquietude transborda.
Ele notava. Revirava o olho. Obviamente eu não entendia nada da política. Precisava me instruir.
E, como quem explica como as coisas são para um criança desinformada, me colocava a par da realidade da vida eleitoral: "veja bem, Michel Temer consolida a aliança com o PMDB, o que reforça o poder de Dilma. Ele é um pivô que favorece o mandado. Isso é uma estratégia inteligente do ponto de vista partidário, mas é fiel à Dilma e um homem que vai dar todas as condições para ela legitimar suas ações, vai trabalhar nos bastidores".
"Bastidores...". Não soava bom. Um homem político fiel, bem articulado, mas que se resignava aos bastidores, sem a libido do protagonismo, muito própria da maioria dos políticos.
Lembrei-me de um antigo livro escolar, lá da quarta série, "O vampiro que descobriu o Brasil". No final do livro, era revelado que vampiro-mor era o vice-presidente do país, acobertado pela sombra do vice-mandato para a qual ninguém tem olhos. O melhor disfarce para aquele homem era ser vice do cargo público mais importante do Estado.
Eu olhava para o lado. Mais adiante, havia uma mesa com garotas sorridentes. Será que elas estavam falando de política também? Olhava de volta para aquela minha amizade. A cerveja descendo-lhe a garganta em um sorve só, como quem brinda a própria astúcia. Na bastava ser de esquerda, tinha que ser boêmio também, o que mais ele faria para completar o esteriótipo?
Logo ficaria bêbado. Seria um problema. Ele, cujo coração de esquerda era inquestionável tinha a estranha mania de, embebedar-se, e começar a discutir com gente que considerava subalterna. Não era o primeiro assim que eu via. Esse amigo em particular tinha um tipo favorito para seu odioso investimento afetivo: garçons.
Frequentava os bares, mas os garçons eram seu prato principal. Enchia-lhes o saco, reclamava do serviço, do atendimento, ficava para além da conta, quando todos os funcionários, cansados, estavam ávidos para ir pra casa, e discutia minunciosamente a conta, reclamando independente se ela estivesse certa ou não. Tudo era um absurdo.
"Dissonância cognitiva", havia eu lido num livro sobre a capacidade humana de acreditar e fazer coisas completamente conflitivas. Era torcer, torcer para Michel Temer não sofrer do mesmo mal. O mesmo de que sofre a esquerda brasileira, que é festiva. O mesmo de que sofre a direita brasileira, que é aristocrática. O problema é que até vampiros são humanos, no final das contas.
O álcool continuava a subir no cérebro. Logo o assunto tomava o desvio libidinal mais rápido: Marcela Temer. Ela, que algum dia viria a ser a "bela, recatada e do lar". Marcela era mais unânime que Temer. Nem bem meu amigo foi citar seu nome, ouviu-se o nome dela também citado em outra mesa próxima. 
Coincidência que só reforçava o acerto cósmico das pretensões políticas. Meu amigo olhou para mim com o olhar de "eu não tô te dizendo?". Aquilo só podia ser um sinal do universo de que ele estava acertado em suas opiniões, a vida conspirava a favor do plano político.
Para minha surpresa, eram duas garotas namoradas que falavam de Marcela, como se quisessem também convidá-la para ser suas primeiras-damas num plano de governo mais intimista e direcionado à causa corpórea. Era interessante. Marcela tinha corpo. Temer não. Pelo menos para quem os conhecia.
Eu, na verdade, não conhecia Marcela Temer. Nem conhecia a cara do Michel Temer. Sabia tudo apenas de nome. Era o meu atestado de óbito. Não conhecer Marcela Temer era o título máximo da alienação política, e meu amigo deixou isso bem claro para mim. Ponderei, em silêncio, se ela era tão bonita assim, ou se era a bebida falando mais alto. A bebida talvez deixasse até Michel temer mais palatável.
Naquela noite, depois da típica e extensa discussão de fim de festa com os garçons, em que eu tive novamente o desprazer de me desculpar por outrem - mesma desculpa que eu me dou a mim mesmo quando penso em Temer presidente, me desculpando por todos que nele depositaram fé - fui para casa desconcertado comigo mesmo.
De onde vinha essa descrença fundamental que fundamentalmente me estrutura? Esse sentimento de que nenhuma dessas estruturas tem racionalmente sentido?
No fundo, era um sentimento contra a vida. A vida se garante no sentido, por mais irracional e simbólico que ele seja. Ela se perfaz na crença. Na promessa do amor, da felicidade, na promessa política, na promessa do consumo, na promessa religiosa, na promessa da vida além-da-vida. Promessas, que fazem a vida nunca ser a vida como se apresenta, mas a promessa da vida ideal.
Olhei para a janela. Não havia estrela. Apenas quadrados iluminados no horizonte de prédios. Em cada quadrado desses, inclusive os apagados, habitava o universo de alguém que conjecturava sobre uma realidade ideal. Achei estranho. Eu não conhecia ninguém, nenhum dos meus convivas. Via sempre prédios, nunca pessoas de carne e osso. Todavia, meu amigo, apenas um, um único indivíduo franzino, perante toda aquela totalidade, dava como certa a vitória.
Para me resguardar de minha inaptidão social e parecer um pouco menos desinformado, sentei-me diante do computador. Digitei "Marcela Temer" no Google. A imagem não me causou impacto. Não era tão bonita quanto eu imagina.
Pareceu-me, à época, demasiado "bela, recatada e do lar".
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doisdestuff-blog · 9 years
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Desconfio de gente talentosa
Se houvesse um São Tomé das Artes, ele seria eu. Se não pelo Tomé, pelo menos pelo São, o que, tratando-se de meio artístico, já é um feito considerável. Manter-se São no meio da arte é coisa que até São Tomé iria querer, fazendo jus à sua filosofia, ver para crer.
Uma das coisas, aliás, que eu mais creio ter visto no meio da arte é gente talentosa. Creio ter visto, mas nunca vi para crer, admito. Gênios com "J" maiúsculo nunca faltaram. Vi "gênios", aliás, com outra ou mais de uma letra capital, ou imantados, como é próprio dos gênios, de outro sinal, senão divino, quiçá semântico.
Vi gente talentosa com "T" maiúsculo, com "t" minúsculo, com "t" mudo, com dois "t's". Vi gente talentosa entre aspas, em negrito, com ponto e vírgula e reticências. Além da inata indisposição à ortografia padrão, outra característica própria dos gênios é o estofo. Estofo de gênio não sofre estafa, mas produz estafa mental em qualquer pobre mente que tente acompanhar o cabedal de referências perspicazes de que constitui a narrativa histórica da subjetividade da nobre figura. 
Os talentosos do cinema são versados em Woody Allen, Hithcock e alguns muitos cineastas off system. Costumam ser Oscar não, Cannes sim. Sabem, de cor e salteado, como que atores sociais que decoram a mente com frases de efeito, todas as questões estruturais que movem a tragédia/comédia grega, com seus respectivos nomes em grego clássico. Catarse não. Diriam κάϑαρσις, em pronuncia fluente. “Plano-sequência”, “plano americano”, “plano detalhe” são meros detalhes vernaculares, porque sua linguagem oficial é litúrgica. Pronunciariam em latim perfeito se precisasse, mas épicos, à exceção dos de Mel Gibson diretor, tendem ao inglês. E eles falam screenplay, ao invés de roteiro. 
Os talentosos da música leem partitura como quem lê caixa de cereal. Identificam o tom da sua voz - sempre desafinado. “Você fala em fá sustenido desafinado”, emitem a opinião. Incorporam o vinil como estrutura de discernimento musical: nunca lado "a", sempre lado "b". Se houvesse partitura demo da nona sinfonia, atestariam ser a versão que merece reconhecimento. O Beethoven underground antes de ser contrarrompido por um classicismo sinfônico que nada tem da verdadeira sinfonia clássica. Os talentosos de estofo da pintura, por sua vez, estão sempre com um livro debaixo do braço. Levam “vida e obra de Monet em imagens” pra fazer análise semiótica em casa. Pinturas rupestres não gozam da mesma atenção. Vida e obra do Neandertal coletor-caçador que pintou um zebu com os próprios dedos não. Primitivismo de Picasso, por sua vez, sim. Com polegar em riste, padrão Nero de qualidade.
Aos talentosos de estofo, somam-se os talentosos técnicos. Esses, além do jargão, detêm, de fato, a habilidade. Sabem os tipos de câmera, de lente, elevam o “bê-a-bá” do equipamento à quinta geração do “a-à-z”. Executam o solo de guitarra cuja razão de aceleração é de 15 notas por segundo à casa de guitarra ao quadrado com perfeita sincronia à gravação original. Poetas talentosos técnicos metrificam versos de cabeça, produzem versos alexandrinos quando bem-humorados. São mais dados às rimas complexas, embora não se recusem a ligar verbos no infinitivo terminado em "er" com "você", quando o pronome aperta. No mal-humor, contentam-se em externar sua insatisfação em redondilha menor, para serem curtos e grossos, ainda que com chave-de-ouro.
Fronte a esse desfile de entidades mitológicas com que convivia e/ou convivo, eu, mero São, pergunto-me - na avidez da crença própria dos santos - donde se esconde, então, suas igualmente divinas crias. Eu, mero santo do pau oco, a contemplar o Olimpo das artes, esperando inocentemente as belas estátuas helenísticas tenho dado de cara muito mais com museus de cera. Não de obras, mas de pessoas. Museus de cera de pessoas talentosas. Todas muito bem representadas como talentosas - até que suas faces e facetas queimem e derretam com a humana vermelhidão da vergonha improdutiva. 
“Só quero ver para crer”, justifico, simploriamente. Quero eu, São Tomé, crer que um dia poderei desfrutar de dons igualmente sobre-humanos e sublimes. Mas donde se esconde aquela nova icônica canção que o mais novo talentoso haveria de produzir, aquele filme revolucionário em linguagem e estilo, aquela peça teatral escrita, falada e atuada em português do século XVI? E, afinal, por que esses tantos talentosos não estavam a gozar, na plenitude do seu talento, da sua merecida fama e fortuna?
“Van Gogh”, brandem em uníssono.
Talentoso que é talentoso está preparado para não ser reconhecido no seu tempo. Para ser incompreendido. As respostas, todavia, vão além do arquétipo romântico, e desaguam na pisque de cada criatura que cria, ou supostamente deveria fazê-lo.
Conheci um menino muito talentoso para música. Tinha ouvido, aliás tinha O Ouvido. Não aquele ouvido que todo mundo tem. Seu único problema: Não tinha conflito. Não tinha o que dizer. Satisfazia-se em dizer o que os outros já tinha dito. Tornou-se cover. Tinha musicalidade, faltava-lhe só voz. E olha que nem era questão de timbre, mas de voz mesmo. Conheci gente que era o inverso. Tinha tantos conflitos internos que os conflitos ganhavam da disposição técnica. Os conflitos interiores impediam-na de produzir. Vivia no mundo da confusão mental que impede a tomada da ação que cristaliza-se num produto artístico.
Casos são casos, cada caso é um causo, e cada causo, quando é bom, causa. Mas, voltando à generalização, pois que eu não estou falando de “talento”, mas dos “talentosos”, com “j” de genialidade. O grande problema dos talentosos é que eles não podem produzir obra de arte. Talentoso só pode produzir obra-prima. Talentosos, nem mesmo os da pintura, podem manchar sua reputação com uma produção aquém dos padrões de sua pessoa. Talentoso tem projeto, obra não. Obra é coisa de classe inferior, de operário. Obra é coisa que pode ruir. Talentoso tem monumento. Se rui em concretude, permanece em espírito, edificante para todo o ad infinintum.
Outro dia, falava eu para uma amiga que talvez minha música predileta fosse “Enjoy the Silence”, do “Depeche Mode”. Nenhum verso da música tem mais de quatro palavras. O riff da guitarra deve ter, no máximo, quatro notas. Os acordes, talvez, sejam três. A batida é uma batida quase genérica de techno. Ainda assim, cada um desses elementos se articula com outro com tamanha interdependência, sem perder a intensidade e uma possibilidade de discernimento da sua autonomia, que o efeito atmosférico – a meu ver – é intenso, o que é beneficiado pela originalidade de extrema simplicidade criativa do clipe. A letra flui dentro da melodia que flui dentro da harmonia que flui dentro do vídeo. 
Não me surpreenderia saber que nenhum dos integrantes do Depeche Mode sabe ler partitura - e não estou defendendo isso como símbolo de criatividade, um antiacademicismo fora de época, mas sim como elemento de reflexão sobre a dialética saber-fazer. Conhecendo sua trajetória precedente, muito feijão com arroz, ou melhor, peixe com batatas, rolou para se chegar à “Enjoy the silence”. “I just can’t get enough” não é nenhuma pérola de originalidade em qualquer aspecto que seja, mas seria possível uma existir sem a outra? Atingir esse grau de simplicidade, ou de aparência de simplicidade, só com o esforço continuo da predisposição ao erro. E pior: ao erro público. Não aquele velado, que nunca toma forma expositiva e se coloca às críticas e eventuais apreciações. 
Desconfio dos talentosos e sua ideia de unicidade áurica atrelada a cada obra que porventura criem. Eu, São Tomé das Artes, desconfio dessa teologia monoteísta da prima-obra. Da trajetória artística imaculada. De panteões sagrados que não se contaminaram pelo erro, pela experimentação, pela falta de experiência, pela organicidade humana. Desconfio de quem fala muito jargão e cita muito obras alheias. Desconfio desses discípulos do “T” maiúsculo, da letra capital, da obra-prima, ainda gozando de uma visão científica unificadora de passado pré-quântico, que ficam tentando ou, pelo menos, alegando estarem trabalhando na verdade absoluta da sua Master Piece. Enquanto isso, eu e mais alguns benevolentes santos, com nossa paciência de jó e imperfeição humana, tentaremos manter nossa humilde produção ativa, aprimorando a técnica de plantio e de colheita a cada ano e enfrentando a sazonalidade e as mudanças climáticas do panorama artístico, para que o terreno da cultura – como convém à sua origem relativa ao cultivo – não se torne infértil ante a falta de merda para lhe adubar.
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doisdestuff-blog · 9 years
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TV: Você ainda se vê por ali?
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doisdestuff-blog · 9 years
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Para todos aqueles que sequestram e roubaram suas fantasias. 
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doisdestuff-blog · 9 years
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A fragilidade dos artistas na atualidade
9 anos. 9 anos no meio da arte. Isso é bodas de quê? Cerâmica. Muito propício. Casei com a arte aos 18. Eu realmente não sabia onde eu estava me metendo. E nem meti muito. Nosso relacionamento, como é próprio dos artistas, foi muito mais romântico, imagético, acadêmico, burocrático como um edital, do que qualquer outra coisa.
Passado todo esse tempo, que compreendeu, além do casório, as brigas, separações e todas as idas-e-vindas típicas que culminaram no nosso relacionamento aberto atual, sinto que é chegada a hora de assumir uma nova postura, menos artística, e mais libertina (engana-se quem pensa que o artista é livre, ainda mais na atualidade). Minha nova e libertina postura me deu, pela primeira vez, a chance kantinana do comprazimento desinteressado, ou a chance aristotélica da admiração.
Pude finalmente me distanciar para apreciar a obra, sem estar envolvido com ela. Que obra apreciei? O quadro da própria arte, seu formalismo comportamental, sua rigidez de jargão, sua lida com a matéria-prima humana, que é o artista e, por consequência, a lida desse com sua pertença. Fui antropólogo anacrônico, observei a mim mesmo, na época que ali estava, absorto por cada novo projeto, pelo cara-crachá da arte, portfólio, texto, currículo - gira a roda da fortuna - nova produção.
Observei meus colegas de profissão da perspectiva do antropólogo que observa os aborígenes, seus ritos, modus operandi, discursos. O quadro é péssimo. Do meio dessa abstração que é o meio da arte, me surgiu o arquétipo: a fragilidade do artista contemporâneo. Logo nós, que deveríamos, antes de tudo, ser livres e criativos, presos na armadilha metodológica do criar para se validar, dentro do validado de antemão como arte, engolfados pela engrenagem do sistema, querendo, a todo custo, reafirmar nossa potência, no fundo impotentes com nosso mísero pincelzinho na mão. Comecei a me perguntar de onde vinha essa nossa servidão voluntária ao sistema da arte.
É, como dá para antever, uma pergunta quase retórica. Por um lado, a servidão do artista contemporâneo é um reflexo de um modelo de servidão muito maior que atinge todos os níveis sociais. Por outro, é característica da sua natureza artística. A servidão do artista é o que verdadeiramente dá razão de ser à sua obra; ou ao seu fazer: a servidão do artista é proveniente exatamente da sua necessidade de reconhecimento expositivo. Todavia, o que poderia ser uma força dada à rebeldia, uma necessidade explosiva de trazer à tona uma produção, por causa do seu caráter crítico, inovador, em verdade se dirime na subserviência cega do artista aos editais, galerias e etc., ávido para integrar o núcleo. A dialética senhor-escravo que se mostra na arte segue a seguinte lógica: o meio da arte, estapafurdiamente, não precisa do artista, o artista que precisa entrar no meio. E o artista se tornar escravo da tentativa de fazer parte do que deveria ser, inerentemente, seu metiê. 
Esse modelo escravocrata é o signo da neurose da arte do nosso tempo. Ele reduz novamente o artista ao artesão, torna-o proletário da arte – e o que é pior: trabalhando sem receber. São operários de um sistema que não precisa deles, pois que é tanta a arte produzida que se pode fazer seleção atrás de seleção. É um modelo que, contudo, se serve da fragilidade do artista, mas não determina essa fragilidade. Meu objetivo com esse texto é justamente apontar alguns tópicos que eu considero determinantes na fragilidade do artista no cenário atual, seja fragilidade psíquica, seja criativa, seja expositiva, etc. Vamos lá:
- Lugar ao sol. Todo artista que eu conheço tem essa ideia. A ideia de que, alguma hora, ele estará num lugar ao sol. Que ele vai fazer alguma exposição épica e que, a partir daí, a carreira dele vai deslanchar. Ele sonha com algum galerista de renome que vai pegá-lo para criar. Todo artista sonha com essa servidão, a servidão que lhe cairá no dia que ele for aceito pelo mercado da arte. Freud uma vez disse que o artista é um frustrado, introvertido, que cria não por criar, mas sonhando que sua criação lhe traga fama, fortuna e afeto. Na grande maioria dos casos, eu concordo com ele – e me incluí nessa cota por um bom tempo. Sinto que o sonho dos meus amigos artistas é quase esse reconhecimento infantil. Quando o pessoal vai olhá-lo com admiração e dizer na mídia que ele é muito inteligente e as obras dele são muito perspicazes. Ele quer ganhar tapinhas nas costas. Tolice. O lugar ao sol é para poucos e muitos que chegam lá se queimam até o terceiro grau. No geral, uma exposição que você faz é uma exposição a ser esquecida no dia seguinte e, a partir do momento que você conquista a notoriedade pública, você é condenado à repetição infinita do modelo de obra que finalmente foi aceito. Se libertar desse paradigma talvez seja o maior passo que o artista possa dar para ter maior tranquilidade e autonomia criativa. 
- Discurso vazio. Na época do Renascimento, a transição das guildas em escolas de arte legou ao artista o título de intelectual. De fato, com o iluminismo, esse posto foi realçado. A necessidade de embasar a arte no pensamento racional levou os artistas a assumirem posturas científicas, com o estudo da anatomia para melhorar a figuração, o estudo da matemática como aporte ao estudo composicional e de perspectiva e mesmo na experimentação de material – Leonardo Da Vinci criou uma técnica própria de têmpera para pintar a última ceia (não deu muito certo. Ela se deteriora com facilidade – mas criou). O homem cientista era também filósofo, do que se extraí inúmeros postulados que dão conta do estudo e do papel das artes. Hoje em dia, o artista é um imbecil em termos intelectuais. Muitas vezes entra muito novo na faculdade, não obtém nenhuma instrução (às vezes nem tem interesse) em filosofia e ainda têm a responsabilidade de produzir algo que discuta o mundo em que vive. Como? Ele próprio não sabe o que ele quer dizer. Ele próprio não tem filosofia própria. O sonho dele é dizer algo que seja bem-visto quando muitas vezes o artista – comprometido intelectualmente – vai ter que dizer o mal-visto. O resultado: obras que ficam na esfera superficial da beleza sensível, da sacada legal, acompanhadas pelo estofo vazio dos jargões da área. O artista hoje trabalha com questão: questão da morte, questão das mazelas sociais, questão das putas. Que questão? Como você problematiza isso e quais são suas opiniões sobre esse assunto? Pergunte isso ao artista e ele vai se esconder, atrás do texto do curador ou atrás da ideia da arte como enigma. Como o artista não conhece sequer das teorias estéticas que compõem a hiperestrutura da arte, ele não sabe a ascendência do seu posicionamento enquanto o artista. A ideia da arte como enigma provém, por exemplo, de Adorno e tem um sentido dentro da sua teoria estética, relacionando à possibilidade de abertura do pensamento para além do reducionismo da razão instrumental. O artista iletrado da atualidade não sabe disso, mas convive com a influência da doxa. Torna-se, platonicamente, cópia da ideia de artista e diz antes de saber o que quer dizer.
-  Submissão produtiva. Reflexo do discurso vazio, o artista que não sabe o que quer dizer, não sabe também para quem quer dizer, nem como quer dizer. Logo, torna-se peça manipulável dentro do sistema. Na década de 1960, houve um movimento dos Artistas Conceituais para tirar a teoria e potência das artes das mãos de curadores e instituições (como é próprio da dialética da arte, posteriormente obras e artistas desse movimento foram incorporados pelo meio crítico e institucional), hoje em dia, os artistas querem fazer, além da arte aceita, a arte premiada por aquele ou outro salão. A ânsia pelo reconhecimento quase paterno institucional gerou dois sintomas: Primeiro: Fazer obras que atendam os gostos dos salões. O artista busca saber o que está em moda, o que está sendo bem-visto pelo meio e produzir algo especialmente para ser aceito. Segundo: O artista se torna o proletário que não é assalariado, nem se organiza em classe. O labor dele é direcionado a ser aceito por este ou outro edital, numa competição infinda que torna mais evidente o quanto que sua produção é descartável. Submisso às exigências dos editais, de ineditismo, de categoria, de forma, de tema, o artista converte-se novamente no artesão da guilda, com uma diferença primordial: Não organizado em classe, ele compete com seu próprio colega de formação. Todo edital que eu participo, eu estou, em verdade, competindo com muitos amigos de formação. Seria mais esperto se a gente pensasse em algo conjuntamente? Seria. Mas quem disse que a artista é esperto? E, assim, a gente trabalha, na nossa individualidade, extremamente fragilizados pelos núcleos de poder da cultura, mas ainda obsessivamente loucos, neuróticos para tomar um pedacinho que seja desse meio.
- Individualismo. Vocês estão notando que um tópico que eu falei leva a outro? Esse é o melhor, o nosso individualismo. Eu olho para os meus colegas artistas e, muitas vezes, vejo um tanto de bebês chorões. Não chorem. Eu também sou um bebê chorão de vez em quando. Mas vamos lá. Hegel disse anos atrás, quando ele falou da morte da arte, é que a tendência post mortem, zumbinística da coisa, era a crescente autonomia e individualismo do artista. Isso se mostra muito veemente na nossa sociedade atual. Houve uma época em que a arte ainda gozava de movimentos, manifestos, correntes artísticas, hoje o mais próximo que chegamos é a sombra dos coletivos. Há uma diferença de potência, inclusive, semântica. Pois bem. Reflexo total do individualismo e imediatismo contemporâneo, o artista quer o lugar ao sol, padece do discurso vazio e trabalha arduamente a fim de vencer seus companheiros de classe no mais novo edital. É quase um BBB. Profissão: modelo, atriz e artista. O individualismo se encarna nessa miopia relacional que, ao invés de trabalhar com a união faz a força para vencer o sistema, se submete ao sistema e luta contra o próximo. No fundo, isso diz da fragilidade egóica do artista. Trabalhar em grupo é difícil, exige deixar o nome em segundo lugar e colocar uma ideia em comum em primeiro. A necessidade, todavia, dos 15 minutos de fama, a la Andy Wahrol, do transformar o nome em grife, impende que o artista veja com bons olhos uma ideia de ter um projeto comum, a longo prazo com outrem, em que ele não seja a peça que mais sobressai. Melhor continuar tentando passar no próximo edital, ele pensa. Nem percebe que os editais gozam da sua cara e o manipulam justamente porque sabem, consciente ou inconscientemente, do seu desejo narcísico. Sabem que ele quer ter seu nome aceito e, por isso, lhe oferecem a oportunidade, como que fosse de ouro, de participar do processo seletivo. Ele, ávido e cego pelo seu individualismo, põe-se à competição. Se fosse possível, derrubaria até seus colegas de formação. Toda vez que é aceito, é descartado, ano que vem nem pode competir de novo no mesmo edital. Quando não é aceito, sorri amarelo para o colega que foi. A força que os dois poderiam ter juntos morta pelo ciúme e competitividade de ambos, para deleite institucional. 
- Falta de visão empresarial. A ideia geral é que a arte é de esquerda e, portanto, não se contamina com essa ideia neoliberalista de capital. Ao mesmo tempo que a arte é de esquerda, todos os meus amigos artistas são doidinhos pela fama e fortuna freudianamente explicada lá em cima. A cisão interna entre essas duas tendências talvez seja a mais sintomática perda de força do artista. Torna-o uma barata tonta. Ele, cuja criatividade deveria ser fonte de inovação, nunca pensa nele mesmo como possível instituição, mas no sonho de ser aceito pela instituição alheia. Na sua mente, existe Bienal, Masp, galeria, museu, catálogo, etc. Não existe outra alternativa. A alternativa dele empreender em outra fonte, outra forma é virtualmente impossível. A falta de visão empresarial o impede de ver até alternativa para arte: pode existir arte além do meio da arte? Ele não pensa nessa arte. Ele já está fraco. A ideia de querer o lugar ao sol só o faz enxergar essa possibilidade no meio que a viseira de cavalo o fez ver, o seu discurso vazio tirou a potência do pensamento, da criação que transcende, ele sabe menos o que quer dizer e sequer consegue refletir a fundo sobre o meio em que está inserido. Sem saber o que dizer ou sem ter o que dizer, restou-lhe a submissão produtiva e labora por ela na expectativa de alguma aprovação – suas obras completamente descartáveis por essa mercado de venda de artistas (para cada um que está no Rumos Itau, existem 1000 sem rumo que poderia facilmente preencher sua vaga, caso faltasse), seu individualismo não lhe permitiu criar a força do juntar-se por uma causa com outros iguais, e sua falta de visão empresarial não lhe permitiu que esse causa estivesse na frente do seu nome e na frente do modelo com que se acostumou de arte. No fundo, o artista não quer a responsabilidade da consistência que exige o projeto empresarial, o ir além que demanda um passo determinado, consciente, que rompa fronteiras, mas que necessita também do investimento - físico, financeiro, patrimonial - e do risco. Ele quer aquilo mesmo, o lugar ao sol, passando num edital, com alguma obra descartável, planejada especificamente para aquele edital, dizendo um discurso vazio nas entrevistas e abertura e, de preferência, que o nome dele seja único, e fique grandão no catálogo, ao lado de todos aqueles outros que, como ele, tem pouca ou nenhuma chance de verdadeiramente fazer história na arte.
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doisdestuff-blog · 9 years
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Quando caí pela pedra do preconceito
Certa feita, estava eu andando na rua quando, enfim, tropecei num preconceito e caí de cara - tinha uma pedra no meio do meu caminho, Drummond. Não era um preconceito meu. Era um preconceito que alguém tinha deixado ali para pegar algum bobo, que andasse desocupado, ou ocupado demais para pensar que alguém poderia lhe infringir a pegadinha.
A queda, contudo, gerou uma fratura exposta... Na alma. Nunca mais me recuperei. Passei a andar com medo pelas ruas, medo de ser calçado novamente por algum preconceito que insurgisse. Um preconceito sequer meu, deixado ali maleficamente por outro a fim de me prejudicar, obliterando a espontaneidade do seu caminho. Passei a andar olhando para o chão, em passos em falso, procurando os portos seguros e convencionais onde me apoiar para não cair na desfeita, no despautério. Eu, que caminhava antes livre, de cabeça erguida, passei a temer tanto machucar-me, quanto a humilhação pública do tombo pelo preconceito.
A inocência perdida não volta. Mas há dias em que eu sinto falta. Sinto falta do desfile que era andar pela rua, de peito aberto. Sinto falta de um amigo que não era negro, branco, pardo, índio...,  era meu amigo e tinha um nome, com o qual também não me importava, pois que era o apelido que denotava a proximidade. Sinto falta da menina que eu gostava e que gostava de mim, com quem aproveitava abobadamente a vida, sem que as ideias do machismo, do feminismo, da psicologia evolutiva, dos PUA, da métrica relacional, da liquidez moderna, do tempo de duração do orgasmo, das 5 formas ideias de fazer sexo, do o quê que as mulheres querem e o quê que os homens querem tornasse a relação uma rixa burocrática de entrecruzamento de conceitos, métodos e não me toques que, infelizmente, não condizem à ideia do tocar o outro, própria de uma relação. Sinto falta da época em que eu não pensava nos gays, porque, para mim, não tinha nada demais em ser gay. Sinto falta de ver com curiosidade e até admiração as diferentes crenças religiosas dos meus convivas, antes que a religião se tornasse um abismo totalitário de autoafirmação e combate ao pensamento diferenciado.
Sinto falta, principalmente, da autonomia individual de não generalizar ninguém por qualquer grupo a que possa pertencer, por opção ou por biotipo, antes emancipar sua unicidade pelo afeto, pela sintonia, pelo momento. E sim, sinto falta da zueira, de quando a zueira era zueira, pois que todos os envolvidos sabiam-se amistosos e apreciavam o poder catártico do humor. Conheço muitos Judeus mestres em fazer piada sobre Judeus, vejo no standup americano negros zuando negros e brancos zuando brancos e vice-e-versa e sei que, naquele nicho, mais do que humor, aquelas pessoas estão combatendo o conservadorismo da maneira mais difícil possível e pelas frentes mais improváveis e feridas mais profundas. Usam da questão racial como aporte para ir além, para discutir mazelas humanas muito mais viscerais. Ao invés de sufocar a questão para parecerem politicamente corretos, tocam na ferida, expondo-a para que possa, talvez, dali, haver um movimento dialético que conduza à sua superação e purgação. Isso com a obrigação ainda da comédia, sem cair na ofensa inócua, mas apontando para a reflexão inspirada. 
Desde que caí pela pedra do preconceito, essa pedra ficou comigo para carregá-la, tristemente, como um peso na consciência, um medo absurdo de estar sendo preconceituoso com alguém. Um medo que não me cabe, pois que sei que, fundamentalmente, nunca fui preconceituoso. O trauma me fez, inclusive, guardar a pedra também a título de arma. Ao primeiro que me tacasse uma pedra, tacaria a minha de volta, parafraseando de maneira herética - como é próprio da contemporaneidade, o mito do "quem nunca pecou, que atire a primeira pedra".  
E sabe qual a pior moral dessa história? Esse peso só ficou comigo por efetiva preocupação com o bem-estar do próximo, efetivo temor em não condenar ou prejulgar ninguém. É o mais tolo de tudo. Afinal de contas, onde já se viu alguém que é realmente preconceituoso ter preocupação em estar sendo preconceituoso? Desse preconceito, de que quem tem preconceito não se importa em ser preconceituoso, nem eu, no auge da minha cautela bípede, me furto de cair. 
https://www.youtube.com/watch?v=JzAPyn4Ujpw
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Ele não queria ser um menino de carne e osso, como Pinóquio, seu desejo era mais modesto: apenas um coração mais realista. 
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Em defesa de uma maior liberdade subjetiva
Eu sou artista. Como tal, minha matéria de trabalho é a criatividade. E, portanto, se tem uma coisa que eu defendo é a subjetividade. Não apenas a minha, mas a subjetividade do próximo. É estranho defender a subjetividade, não? Algo tão inerente a todo e qualquer indivíduo. Mas é isso mesmo. Não significa sequer compactuar com os produtos da subjetividade alheia. Significa, antes de tudo, defender a potência criativa possível na subjetividade de cada um. Parafraseando Voltaire, posso não gostar de nada que você crie, mas defenderei e ainda incentivarei até a morte a sua liberdade e vontade criativa autônoma. 
Por esse motivo, eu tenho uma política pessoal contra muito do que, particularmente, eu acho que limita, oprime, mutila, dirime e, mais do que tudo, guia a subjetividade alheia. Sem dúvida, não dá para ser radical. Não há criação sem referências. Um escritor precisa, antes de tudo, de ler. Mentira, precisa, antes de tudo, de conhecer o seu vernáculo - ler pode ser uma forma de se chegar a isso. Mas acredito que não seja necessário material direto. Ler uma bula de remédio ao invés de um livro pode ser tão ou mais significativo para o processo criativo. Num sentido mais amplo, convém, inclusive, pensar na ideia de ler a realidade convival, interpretar sensivelmente códigos quase indiscerníveis nas relações da vida - essa apercepção, essa leitura de fragmentos, de códigos passadiços, quase invisíveis, costuma se revelar a verdadeira matéria-prima dos escritores e artistas, antes do que qualquer outro livro, ou obra.  E é, de fato, isso que eu quero falar: um criador para mim, precisa, antes de tudo, de espaço elaboração.
Quando digo espaço, não falo do espaço físico. Acho que ele precisa de um espaço mental, um ateliê abstrato, através do qual ele pode dialogar consigo mesmo, refletir sobre os elementos com que lida. Um espaço de respiro, de reorganização. A minha ideia de opressão da subjetividade passa por aí. Hoje em dia, são milhões de séries televisivas ao mesmo tempo, milhares de filmes no cinema ao mesmo tempo, milhares de elementos disputando uma espaço na sua subjetividade e, por consequência, da sua vida. Um frenesi que não permite respiro, não dá chace à lufada criativa, à interpretação.
Eu sou do tipo quase extremo. Não assisto série alguma de televisão, não vejo novelas, nem programas. Não acompanho carreiras de bandas. Gostei de Super-Heróis até os 12 anos, parei com Pokemón na segunda temporada, nunca vi um episódio de Naruto, acho Star Wars um saco. Uma referência, para mim, é muito. Um poema de Drummond bem lido é material de reflexão por dias. Não precisa de mais. Uma frase impactante torna desnecessário um livro inteiro, ou um filme. Ademais, gosto mesmo que meu espaço abstrato tenha uma liberdade grande para ser isso mesmo que ele é: um espaço abstrato. Posso passar um dia inteiro observando um gato e imitando suas poses e, para mim, vai ser mais produtivo do que ver qualquer produção supostamente cultural.
Parece um paradoxo, pois que eu trabalho justamente com essas coisas: filmes, quadrinhos, livros, poemas. Não é. Eu trabalho com isso porque a produção alheia não me é suficiente. Porque eu sinto falta da individualidade da criatividade, da ação do indivíduo - no caso, da minha ação. Sinto falta da inconformidade, e não da mímese apressada da indústria da cultura. E essa cruzada pessoal estendo ao próximo por questão de fé. Peço-lhe, portanto, encarecidamente: mostre-me um poema seu (por pior que seja), mas não mostre uma foto sua junto a um poema fake da Clarice. Mostre-me uma ideia sua, mas não me fale do final de Lost (pra você ver como estou desatualizado das séries). Mostre-me, pelo amor de Deus, uma música sua, mas não sua banda cover. Diga-me seus sonhos - de preferência os mais obtusos, mas não me diga sonhos toscamente derivados do engenho dos irmãos Lumière, tão já avançada e tardiamente plastificados e seriais.
É difícil. Mas é minha módica defesa à libertação criativa, ao respiro. Mais do que tudo, à vida para além de uma síntese muito reducionista da ideia de cultura. Cultura, a meu ver, é o engenho simbólico, é a possibilidade de reflexão, é a ruptura com a serialidade, é a potência única do criar. Não a papinha da indústria cultural, que você consome como se fosse um Miojo artístico. Cultura é você, no ápice do questionar e dar à luz à forma de si mesmo a partir de tudo que lhe chega. É, enfim, a arte de tornar sua subjetividade subjetiva, de apropria-se pleno do processo de subjetivação. Sim. É uma defesa mais apaixonada, do que talvez realista. Sentar e ver uma série é simples e gostoso. E não é todo mundo que quer ser um criador. Mas sou inconformado, um rebelde por natureza. 
Além do que, é uma preocupação efetiva que eu tenho. A vida é única demais para se gastar sendo um agente passivo de um processo que descaradamente lega sua subjetividade ao segundo plano. Ninguém da Disney, ninguém da Warner, ninguém da Marvel, da DC quer saber o que você pensa, exceto no que tange ao consumo dos seus produtos. É pouco demais para o que eu acredito, quase anarquicamente, que qualquer um possa ser. E eu ainda sonho. Eu sonho ainda com aquela criança que vai me mostrar os desenhos dos amigos imaginários que ela mesma criou, espontaneamente, quase que captados do vácuo do ar, ao invés daquela que quer ter o relógio do Ben 10, ou daquela outra que quer ser/ter a princesa do Frozen.
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