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𝒄𝒐𝒍𝒅 𝒎𝒆𝒎𝒐𝒓𝒊𝒆𝒔.
— Moça? Moça? — As palavras foram aos poucos ganhando som até trazer Dunyasha de volta para a realidade ao qual estava tentando escapar. Seu olhar hipnotizante e vazio ganhou o propósito de encontrar o dono da voz. Piscou uma ou duas vezes até finalmente ver um garoto em sua pré-adolescência à sua frente, este quase debruçado por cima da bancada que separava ela do resto dos humanos que perambulavam pela biblioteca.
A biblioteca que tanto se apegou desde o momento em que chegou na cidade, o local ainda de pé por pura vontade dos poucos que habitavam em volta dela e usavam o lugar para se encontrar e ter um momento de lazer em meio ao caos de Crosby. Duny trouxe consigo da Rússia a sua vontade de sempre ler livros e se educar. Se voluntariou para trabalhar naquele local até realmente começar a ganhar seu pouco dinheiro humano.
— O que deseja? — Perguntou. Seu tom era suave e quase infantil, era como uma ferramenta de defesa usar este tom com pessoas, talvez seu rosto não apresentasse a “inocência” que os humanos procuravam, por isso apelava ao tom de voz suave para demonstrar ser uma pessoa de boa postura e leveza.
— Esse livro está rasgado. — O garoto disse ao colocar o pequeno livro infantil no balcão, seus dedos finos apontando para o pequeno rasgo no canto da folha, seu olhar curioso buscando uma resposta no olhar de Duny, como se esperasse que ela lhe dissesse a solução para aquele problema. A russa olhou para o garoto por longos segundos tentando entender o motivo dos humanos procurarem defeito em tudo.
Pegou o livro infantil em sua mão e folheou suavemente, usava uma luva delicada da cor preta que alcançava seus cotovelos, o pano suavemente deslizava no papel colorido enquanto procurava por sugestões em sua mente que favorecessem o humano que estava à sua frente. Ela não entendia porquê humanos desse mundo buscavam imperfeições em todos os lugares.
Em seu mundo, achar um livro que ainda fosse legível era quase raro. Lembrar de todas as vezes que procurou por livros em locais questionáveis a fez sorrir suavemente, era algo que se orgulhava de ter feito, buscar todo seu conhecimento era como recolher medalhas de honra no meio de uma guerra. Era tão gratificante encontrar, fazia com que a leitura fosse dez vezes melhor.
Realmente, seu mundo era tão diferente e nostálgico de se lembrar, mas não sentia falta dele em si, apenas das pessoas que encontrou no caminho. Claro, sua mente tentava não seguir essas memórias, era como se sua própria consciência estivesse tentando se distanciar de toda a dor e trauma que passou, como se quisesse deixar aquela vida para trás e salvá-la de uma tortura constante.
— As imperfeições não fere a história que carrega. Ainda pode ler. — Dunya disse para o garoto ao devolver o pequeno livro. Percebeu que o menino parecia confuso com suas palavras, mas não levou isso para o coração, já entendia que aquele mundo era um tanto inferior quando o assunto era usar o cérebro. Notou o garoto voltar para a sessão de livros infantis e suspirou arrumando seu casaco extra largo que caía do ombro.
O agudo som da porta enferrujada se abrindo chamou sua atenção quando uma senhora entrou no prédio, ela era baixinha e resmungava sobre alguns flocos de neve que ousaram cair em seus cabelos grisalhos.
Duny sorriu. Aquele sorriso carregava uma história e muitas dores, era como se uma caixinha se abrisse na mansão de memórias dentro de sua mente. Essa caixa tinha um toque gelado, um cheiro de comida enlatada e muita neve. Era como se lembrava dos momentos em que tinha que se arrastar na neve ao lado de Mikhail na grande Rússia, se lembrava das vezes que pensou em enfiar a cara dele na neve ou explodir seus braços, pois ele conseguia a irritar quando o assunto era o frio, mas ela não gostava tanto de passar pelo frio exaustivo, Mikhail era o único frio que ela tolerava.
Ela não entendia muito bem o que aconteceu ou como ele desapareceu, mas a última coisa que lembrava era cair em um abismo escuro e doloroso. Não soube ao certo como conseguiu escapar também, suas memórias sobre aquele acontecimento pareciam estar lacradas em algum canto de sua mente ao qual não conseguia alcançar, talvez fosse para seu próprio bem não lembrar da dor.
— Está tudo bem, querida? — A voz da senhora ecoou fazendo Duny voltar a sua realidade novamente, seus olhos ardiam e ela piscou algumas vezes sentindo uma lágrima solitária escorrer para sua bochecha, sua luva secando rapidamente aquela evidência de sua vulnerabilidade.
— Estou, senhora. É só o frio, não gosto… Me traz memórias. — Duny disse com um tom mais baixo ao sentar-se na cadeira da recepção. Era como esconder aquela dor que ainda existia em seu coração, a incerteza de não saber o fim, de não saber o que aconteceu, isso a machucava mais que qualquer tiro ou facada que levou.
Seu olhar melancólico encontrou o da velha humana, um suspiro cansado escapando de seus lábios cheios, sabia que não iria encontrar respostas ali. A meia-humana sorriu um pouco tentando deixar o assunto de lado e a velha pareceu entender, já que direcionou a conversa para outro tópico.
— Venho nesse fim de mundo quase todos os dias e nunca vi suas mãos. Você é daquelas pessoas germofóbicas que não gosta de tocar em nada? — A velha perguntou curiosa, suas mãos enrugadas tocando no balcão em frente a Dunyasha, fazendo-a rapidamente recolher suas mãos do balcão e desviar o olhar para outro ponto da biblioteca.
— Germo- Não! Eu só não gosto de tocar humanos! — Duny respondeu com um tom mais alto e confuso, suas sobrancelhas se juntando ao tentar encontrar sentido para as palavras da velha humana. Era estranho ter que se explicar para humanos, eles eram bastante curiosos, odiava isso.
— E você é o que? Não toca ninguém não, menina? Não tem um namoradinho pra tocar? Isso é frescura. — A velha retrucou parecendo um tanto ofendida, fazendo Dunyasha arregalar os olhos levemente. O medo de fazer um humano pensar que ela era um inimigo estava enraizado em sua mente desde que chegou naquele local, pois estava cansada de correr e não queria fugir quando finalmente arrumou um lugar para descansar.
Antes que ela pudesse responder, a senhora caminhou para as estantes de livros deixando-a sozinha. Duny passou suas mãos pelos seus fios quase brancos e descansou seus cotovelos no balcão de madeira.
“Não, senhora! Eu não sou humana! Eu consigo ouvir a porra do seu coração, eu consigo ver todas as veias de seu corpo, todos seus órgãos agarrados no acumulo de gordura que a senhora tem. Eu poderia explodir a porra da sua cabeça se eu quisesse, sabia? Mas eu sou uma boa pessoa, eu estou tentando ser uma boa pessoa. Você não iria querer encostar em pessoas também se soubesse o que eu sei com apenas um toque. Humanos idiotas.”
— Onde estão os livros sobre a guerra?
A voz grave a pegou de surpresa fazendo-a voltar à realidade e parar de responder a senhora mentalmente. Dunyasha manteve o contato visual com o homem, parecia que ele queria desafiar algo com aquele olhar duro, era como se tentasse intimidar qualquer um que passasse na sua frente, conhecia bem pessoas assim. Pelos hematomas que podia visualizar, também sabia que havia lutado nos últimos dias, o que era compreensível quando se tratava de um lugar como Crosby.
Duny apenas sorriu e apontou para o letreiro logo ao lado dele, indicando onde ficavam os gêneros de livros. Ela queria muito responder algo como “Se você entrou em uma biblioteca, você sabe ler. Então leia o aviso.” Mas sua paz importava muito mais que um humano qualquer, e isso ela aprendeu desde o momento que pisou em Liverpool.
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