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Escrevedando
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Pensamentos voam livremente, de mente em mente, quando transformados em palavras.
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escrevedando · 2 years ago
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As cortinas batiam na parede por causa do vento que soprava pela janela arreganhada. Ela sentiu o vento frio nos braços, que estavam fora do cobertor
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escrevedando · 3 years ago
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O último maço
   Os saltos das botas batendo no chão faziam eco nos corredores aquela hora da manhã. Havia um sossego constante no prédio em que Luiza morava, mas as manhãs eram especialmente silenciosas, e qualquer barulho soava alto demais. Enquanto subia as escadas, viu uma mulher de uns 50 anos saindo de um dos apartamentos com vestido florido na altura dos joelhos, sandália de salto redondo e bíblia na mão. As mulheres se olharam e, por um breve momento, trocaram um sorriso. Ambas tinham ideias bem claras sobre os estilos de vida uma da outra, embora quase nunca se cruzassem nos corredores. A mais jovem sabia que o cabelo desgrenhado e a maquiagem borrada confirmavam qualquer dúvida que a vizinha pudesse ter sobre sua noite anterior. A bíblia que a mais velha carregava também fazia Luiza confirmar algumas hipóteses formuladas sobre a vizinha ao longo dos meses. Tec-tec, tec-tec: dois saltos barulhentos orquestrando música no prédio antigo. Duas mulheres indo em direções opostas - no prédio e na vida.    O cheiro de cigarro na sala foi a primeira coisa que Luiza sentiu quando abriu a porta do apartamento. Tirou as botas barulhentas e as jogou no tapete da porta de entrada, junto com um par de tênis imundos que viviam naquele canto. Se tem uma coisa que aprendeu depois que saiu da casa dos pais é que não se entra de sapato da rua dentro de casa - ou de apartamento. Chão sujo é um pesadelo pra quem é obsessivo com limpeza ou fã de andar descalço, e ela era as duas coisas.    Porta aberta, bolsa no sofá. O cheiro de fumaça ficou mais forte quando ela trancou a porta da sala. “Merda! Esqueci de deixar a janela aberta de novo.”. Desabotoou a calça jeans e se dirigiu para uma estante de madeira em que deixava suas louças. Escolheu um dos copos de cristal, que ganhara alguns anos antes de um amigo que já não via há algum tempo. Sentiu saudades do amigo. Como já quebrara a maioria dos copos do conjunto, Luiza guardava os sobreviventes para ocasiões especiais, mas pareceu mais fácil pegar um deles naquele momento. O copo escolhido estava coberto de poeira pela falta de uso, mas ela não tinha energia ou vontade suficientes para lavá-lo. Sem pensar muito, despejou, no vidro delicado, água de uma garrafa que ficou destampada na mesa a noite toda. A água estava morna e deixou um gosto engraçado na boca. Ela riu, sabendo que o gosto engraçado provavelmente nada tinha a ver com a água ou com o copo empoeirado. “É o preço que se paga por acordar e não escovar os dentes”, pensou enquanto dava mais uma golada. Embora houvesse quatro cadeiras dispostas ao redor da mesa de jantar, Luiza sentava-se sempre na mesma: a que dava de frente para a parede decorada com quadros de mulheres. As linhas nas pinturas eram disformes, e as proporções estavam erradas em todas elas. Não havia rosto ou corpo de mulher daquele jeito, mas achava fascinante como as linhas e as cores se juntavam para transmitir corpos e rostos femininos. Todos os dias, tirava um tempo para olhar os quadros e sempre pensava que não tem coisa mais bem feita que mulher. Encarou as pinturas por alguns instantes. Tirou a calça já desabotoada e o sutiã. “Agora, sim, a vida é boa!”.    A água do copo acabou, mas a vontade de acender um cigarro não acabava nunca. Por mais que quisesse e fizesse tratos consigo mesma todas as semanas, Luiza já não conseguia parar de fumar. Rendeu-se a mais um de seus tantos vícios adquiridos e acendeu um cigarro sem pensar em se levantar para pegar o cinzeiro, “Tá tudo bem, cinzas no copo chique.”. Enquanto olhava para frente, flashes da noite anterior iam e vinham em sua cabeça. Ela sentia um cheiro de cerveja e cigarro impregnado nos cabelos e nas roupas, misturado com o que, para ela, era um claro cheiro de sexo mal feito. Com o tempo, foi aprendendo a diferenciar cheiro de sexo bom e de sexo ruim. Também foi aprendendo a gostar dos dois. Gostava da lembrança que ficava depois de transar com estranhos. Esquecia de quase todos os nomes e conversas depois de algum tempo, mas sempre se lembrava do sexo. Mais um trago no cigarro, mais um flash: “será que tem coisa melhor que mão de homem deslizando pelas minhas costas?”. Sabia que tinha. Luiza quase nunca repetia os caras, mas, sempre que saía com um cara novo, levava junto os anteriores. Suas transas nunca eram entre dois; era sempre ela e mais umas dezenas de homens. Não sentia nada em especial por nenhum deles, mas gostava de revisitar todos quando adicionava mais um a sua coleção.    Outro trago, outro flash. Ela não era a maior fã do sexo em si, mas amava algumas coisas específicas sobre essas relações casuais. Amava o fato de que sabia jogar muito bem esse jogo de conquista. Amava poder criar para si uma personagem e interpretá-la até o fim nesses encontros. Divertia-se às custas de homens com crise de meia idade precoce e inegavelmente se orgulhava disso. Amava também o jeito como olhavam para ela quando tirava a roupa. É engraçado pensar que já teve pavor daquele olhar em outros tempos, mas agora sentia satisfação em ver homem olhando-a com fome. A verdade é que a garota levou muito tempo para entender a complexidade do que sentia quando os homens olhavam para ela. Conheceu, aos 11 anos, com bolsa em formato de cachorrinho, minissaia e camiseta da Lilica Repilica, algumas faces do olhar de desejo masculino. Esse olhar fez com que entendesse, muito cedo, que menina não deve usar certas roupas, principalmente quando sai sozinha, e que tem ruas que não se deve passar nem acompanhada das amigas. Aceitou, ali, seu lugar no mundo; as mulheres sabem bem o que é ser um pedaço de carne pendurado na vitrine de um açougue. Infelizmente, as meninas também. Com alguns anos e algumas decepções na conta, foi aprendendo a olhar pros homens igual. Aprendeu não só a gostar desse olhar de fome, mas a instigá-lo. Com frequência, deixava-se ser devorada por alguns homens; no fundo, só porque sabia que era ela quem se alimentava deles.    O cachorro do vizinho latiu, Luiza olhou pela janela do lado da mesa. Viu um casal se despedindo com beijinho, “mais alguém do prédio deve estar com cheiro de sexo”. Torceu para que fosse o do bem feito. Deu uma última olhada para o cigarro na mão direita, deslizou a esquerda pelo cabelo embaraçado e jurou nunca mais sair de casa pra transar. Odiava dormir com gente na sua cama, mas odiava ainda mais dormir com gente em cama que não era sua. Às vezes se questionava se realmente gostava de homens, ou se os odiava, porque tinha algum prazer em tratá-los como objetos descartáveis. Aos poucos, acostumou-se com a ideia de que gostava de alguns e odiava quase todos. Não era nada pessoal, só achava as mulheres melhores em muitos sentidos. Achava a maior injustiça do mundo se sentir atraída por mulheres de tantas formas diferentes, mas não romântica ou sexualmente - mesmo tendo se esforçado para tal algumas vezes. Tinha certeza de que respeitaria parceiras muito mais. Foi com esse sentimento ambivalente em relação ao masculino que manter relações impessoais se tornou sua especialidade.    Tinha muito que fazer no domingo, mas muito pouca vontade. Colocou “Amor e sexo” para tocar. Para ela, as músicas da Rita Lee eram verdadeiras obras de arte. Deslizou a tela pelas conversas no celular e decidiu que respondia depois. Desativava as notificações de todos os aplicativos, porque responder mensagem é um negócio muito chato. Abriu o Instagram e olhou pras notificações no canto direito da tela: 19+. Seus amigos diziam que ela tinha fetiche em ignorar mensagens, e meio que tinha mesmo. Não gostava da dinâmica de bate e volta que acontecia nas redes sociais, mas, mesmo assim, respondia interações atrasadas a cada três dias. Torcia para que as outras pessoas demorassem outros três para responder de volta, mas quase sempre respondiam em alguns minutos. Achou melhor aproveitar o horário, afinal, que tipo de pessoa está acordada domingo às 7h da manhã pra devolver mensagem? Respondeu uma meia dúzia de comentários elogiosos no direct, tecidos sobre a selfie que tirou antes do encontro da noite anterior. Tinha muita preguiça da interação online, mas a validação é o que mantinha a máquina funcionando. Percebeu que, de modo geral, também tinha muita preguiça das conversas ao vivo. As pessoas gostam muito de falar, e ela gostava de ouvir pouca gente.    O cigarro e a música acabaram, os flashes se foram junto. De tão vazias, até as memórias com esses homens tinham prazo de validade curtíssimo. Essas noites (ou tardes, ou manhãs, a depender do ânimo e da disposição de Luiza) deixavam em sua boca aquele gosto de comer salada sem tempero. Quem vai pensar na salada sem tempero que comeu na janta por mais que dois dias? Inviável. Calculou que Fábio tenha durado uns 30 minutos em seu imaginário. Um longo tempo para um desempenho mediano.    Embora soubesse que o celular estava a um palmo de distância de sua mão direita, preferiu checar o pulso esquerdo. Queria saber as horas. Às vezes, passava tanto tempo dentro da sua cabeça que o céu mudava de cor, e ela seguia inerte e imersa em seus pensamentos. Já perdeu tardes inteiras assim. E noites… Muitas noites. Domingo, 7 horas e 23 minutos. Mais uma semana começando, mais expectativas de que destravasse e o processo criativo voltasse a ser mais leve. Poucas coisas te davam tanta saudade quanto escrever com fluidez; já tinha um tempo que traçar linhas e despejar cores no papel te faziam sentir viva, enquanto digitar frases no computador matavam seu humor. Não interessava, sempre soube que o prazer costuma passar longe das obrigações. O foda mesmo era ter uma obrigação que demandasse originalidade e produção inédita, pagando 2 mil por mês. Decidiu que não queria pensar nessa merda agora, melhor lidar amanhã. Falando em amanhã, segunda era dia de parar de fumar. “Acabando este maço, eu paro.”, disse para si mesma, fazendo mais uma jura dessas que sabia que não cumpriria.
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