Tumgik
Audio
Sons da quarentena
1 note · View note
Text
Vigilante do Beco
Castrador, vulgo João Paulo, caminha pelos becos do centro velho. Em meio à cracudos, mendigos e putas, ele parece só mais um lunático com sua calça legging, coturno, jaqueta jeans e uma máscara preta com buracos nos olhos que estão cobertos pelas lentes de seus óculos de sol. Exceto pela jaqueta, ele veste-se todo de preto.
Ao redor, sons dissonantes da cidade encontram-se e misturam-se no beco: buzinas, sirenes, algazarras distantes. Ele pára em certo ponto sem muito movimento, pega seus binóculos e começa a buscar crimes em potencial.
Através dos binóculos, Castrador observa o outro lado da avenida: um grupo de bêbados faz baderna, um deles vomita no asfalto sendo consolado pelo camarada de bebedeira; em outro ponto, moleques catarrentos fazem um campeonato de cuspe à distância no meio da avenida enquanto carros passam tirando fina. Castrador abaixa os binóculos e olha para o alto. Atraído por uma curiosidade libidinosa, ele muda seu foco para as janelas de um prédio, seu olhar binocular vaga por janelas escuras, algumas claras até encontrar-se com um homem na sacada que o encara fixa e desconcertantemente. Um tanto apavorado Castrador agacha-se e move-se para as sombras, busca um ponto diferente.
Embaixo do viaduto um casal parece discutir. Mas não parecem um casal, o homem é muito baixo e se veste como um "mano", a mulher alta e gorda, parece ter uns 15 anos a mais. Ainda assim lá estão eles, agarrando-se e se desagarrando. O homem tenta puxá-la, ela recusa, os dois ficam parados, ela pergunta algo, ele confirma com a cabeça e ela o puxa. Eles entram num beco.
Castrador abaixa seus binóculos e observa o nada por um momento. Então, guarda os binóculos e coloca-se a correr na direção para onde o casal se embrenhou.
Castrador move-se furtivamente em meio ao lixo, merda de gente e escombros, à medida que se aproxima, os sons de suspiros e beijos cheios de saliva ficam mais alto. Ele desvia-se de um buraco no chão onde corre o esgoto e esconde-se atrás de uma caçamba. Ao mover a cabeça, tem a visão quase perfeita do casal encostado na parede se pegando nas sombras.
Ele observa como o homem baixo aperta um dos seios à mostra da mulher, enquanto acaricia sua vagina por dentro da saia, a mulher com a cabeça encostada na parede suspira em êxtase.
Castrador, quase que automaticamente, move sua mão silenciosamente para dentro da calça e começa a se masturbar. Ele segue o ritmo da excitação do casa, sem conseguir desviar seu olhar.
O homem, então, interrompe a massagem na vagina da mulher, retira o pau pra fora, puxa a calcinha dela e começa a esfregar seu membro na cavidade. A mulher alterna entre gemer de prazer e falar "Não". O homem insiste, ela o empurra, ele responde com mais violência, colocando-a contra a parede. A Mulher diz, entre suspiros, "Põe a camisinha", o homem se faz de surdo e continua a tentar penetrá-la.
Vendo isso, o Castrador aumenta a intensidade de sua punheta.A mulher grita para o homem parar, ele tenta tampar a boca dela, ela morde a mão do homem e ele a esbofeteia no rosto. O Castrador não consegue mais parar, se masturba com a mesma violência que testemunha até que ejacula no momento em que a mulher começa a chorar ao ser penetrada sentindo o punho do homem afundado em sua boca.
Castrador observa desolado o próprio sêmen e leva as mãos à cabeça enquanto continua a ouvir os lamentos da mulher.
Esforçando-se para mudar sua determinação, o Castrador saca duas facas de seus bolsos e as aperta firmemente, faz um prece rápida, depois saca um celular. Ele liga câmera se filmando, sussurra "PowPow" para a câmera, inicia o streaming para um grupo de vigilantes amadores na deep web e tenta posicionar o celular na caçamba, enquanto segura as facas. 
Ao firmar o celular, ele prepara-se para salvar a vítima, pisa em falso caindo no buraco do esgoto. O eco de algo vital partindo-se em pedaços e um grito oco soam beco acima. O estuprador interrompe o ato no mesmo instante e sai correndo de calças arreadas, ele cai no chão, e levanta-se novamente e volta a correr. Cai novamente e começa a se rastejar. A mulher desliza na parede até repousar inerte entre os escombros, a merda, e o lixo do beco.
0 notes
Text
Ran - desventuras em 3 partes
Primeira parte
"Se uma chuva repentina o pegar desprevenido, não corra estupidamente pela estrada nem se proteja nas marquises das casas. De qualquer maneira, você se molhará. "
Ran não ficou surpreso por vir à sua mente, justo naquele momento, esse provérbio que ouvira ou lera há tanto tempo e que sempre o acompanhara, pois ali estava ele: estupidamente de costas no chão, com o ouvido zunindo pela queda que levara e a chuva caindo em sua cara.
- Já era pra tu, vagabundo!
Ele ouviu a voz marrenta do policial vindo de trás e fez um imenso esforço abdominal para levantar-se a fim de agarrar a escada de ferro pela qual tentara subir antes de escoregarrar. Mas foi só ouvir o clack! do revólver que decidiu que valeria mais à pena manter as mãos para o alto do que arriscar subir pela saída de emergência do prédio e fugir do beco onde estava encurralado.
- Isso... é assim que eu gosto.
O policial veio e deu uma cotovelada embaixo do pulmão de Ran, fazendo-o ficar sem ar e encolher-se de dor.
- Isso é por ter me feito correr todo esse caminho.
O segundo policial veio do outro lado jogando a luz da lanterna na cara de Ran. Ele ainda estava se recuperando da última pancada, quando o outro policial o golpeou na boca com seu coturno maciço. - Isso é por fazer a gente se molhar tanto. - 
O policial, rindo, iluminava a boca de Ran que agora estava com um dente a menos.
"Isso é por colocar droga no mesmo mundo onde to criando meus filhos", antecedeu mentalmente Ran, pois sabia que um dos golpes teria que ter esse motivo. Aguardou um novo chute de olhos fechados... E ele veio.
- Isso é por colocar droga no mesmo mundo onde to criando meus filhos! Foi na boca do estômago. Ran viu tudo escurecer e apagou.
Tudo foi ficando mais claro novamente e Ran percebeu que aquela noite terrível ainda não acabara. Viu cinco pés calçados de coturnos à sua frente, e um sexto pé biônico, enferrujado. A  água corrente da chuva lavava seu rosto, levando bitucas de cigarro, baratas mortas e o sangue que escorria de sua boca. Aquilo o fez lembrar-se de alguns versos de quando era criança.
Chuva no lagoa cada gota surge um mar
Porrada na cabeça chute na costela botinada no nariz
E um mar de sangue renovado era levado pela água suja do beco.
- Isso é por ter enganado o chefinho, dizendo que ia fazê parte da gangue. - É isso aí, ninguém fode com os Mamelucos, rapá...
Ran viu o pé metálico enferrujado mover-se e emitir um som estridente. Temeu que o último passo seia um pisão em sua cabeça, mas o pé parou rente ao seu nariz. O dono do pé biônico era Tizil, um dos integrantes dos Mamelucos. Era um sujeito baixinho, que não tirava seus óculos escuros e tinha dentes de metal. Ele abaixou-se, pegou Ran pelo pescoço e sussurou-lhe no ouvido:
- E o chefin mandou avisar: se tu continuar prejudicando nosso negócio… já sabe, né? Bye-bye praquela putinha e pro vesgo retardado!
Ran, que desde a surra dos policiais estivera passivo e quase indiferente, quase como Cristo expiando pelos pecados do mundo, naquele instante sentiu algo arder dentro de si, um princípio de ódio.
O baixinho o largou bruscamente no chão e saiu andando na chuva, emitindo aquele som de engrenagens mal calibradas. Ran manteve-se encostado no muro, observando os subalternos da gangue seguirem seu líder. Ele estava meio sentado meio deitado numa poça de água suja, com o gorro de sua blusa grudado na cabeça, sentindo-se encharcado de impotência.
Era uma bela manhã alaranjada em São Paulo, pois a Armada Distrital descobrira que a maneira mais fácil de matar as baratas gigantes que viviam nas matas depois da represa, era ateando fogo em tudo. Ran conseguia enxergar, no horizonte, às centenas de quilômetros, o vermelho espalhando-se e devorando todo o pouco verde que ainda restava e sentiu uma melancolia de tempos passados, o lar onde crescera estava em estado terminal. Ele foi até o arame que separava a terra da represa e observou por um momento a queimada, menos aflito do que esperava. A nuvem de fumaça, que vinha de longe, acrescentava uma nova camada cinzenta sob a cidade, e o cheiro de queimada formava uma curiosa amálgama com o odor de carniça típico da vizinhança.
Ran faminto, com o corpo todo dolorido, voltou a  marcar, com uma mão em cima da costela esquerda, e o gorro da blusa tampando mais ou menos seus hematomas no rosto. A rua, como sempre naquele pedaço próximo à represa, era vazia de gente e cheia de lixo. Via-se carcaças de carros queimados, restos de comida, circuitos, peças metálicas, excrementos de gente, bicho e sabe-se lá mais do quê. Ele ouviu moscas zunindo, e logo à sua frente havia um cadáver em decomposição de um cachorro com a língua para fora. Ele lembrou-se de seu próprio cachorro de quem fora separado assim que chegara naquela cidade podre.
Para Ran, era difícil acreditar que havia um lugar mais vilento, sujo e fétido que aquele, ainda que se ouvisse boatos sobre o Subterrâneo, onde se dizia que viviam centenas de milhares em pleno esgoto da cidade, muito abaixo das antigas linhas de metrô agora dominadas por criaturas bizarras. Quando seus pensamentos o levaram para um lugar de melancolia da infância, lembrando-se de seu cachorro e daquela região verde que agora era devastada pelo fogo, Ran entrou pelos becos e viu-se cercado de um maior movimento de gente. Estava de frente para o cortiço onde agora morava. Achou curioso que na escadaria do edifício havia várias peças de roupas velhas e alguns livros jogados. Tudo ali era lugar para se descartar coisas: a rua, as calçadas, as praças... A cidada era uma grande lixeira. Mas Milton, o dono do cortiço, nunca permitia que a escadaria de seu estabelecimento se tornasse um depósito de estrumes.
Subindo os degraus, e aproximando-se, foi que Ran notou, pálido, que aquelas roupas eram suas, e aqueles livros eram os seus preciosos e raríssimos gibis. 
- Eu avisei, não foi!
A voz vinha da sacada do quarto andar do cortiço. Milton nunca descia de lá, era como se o próprio prédio fosse seu corpo e a sacada sua boca.
- Mas que caralho, Seu Milton! Eu te disse que ia te pagar em três dias! - Bom...  
Vinha a voz lá de cima pausadamente, ele estava se empanturrando de alguma coisa, como sempe. A fome de Ran passou a torturá-lo, suas tripas pareciam espremer-se em dor, ao mesmo tempo que sentia a bile estimulando um vômito.   - É evidente... Que.... Não tendo contrato nenhum... Eu decido as coisas... E apareceu gente que pode pagar, então você tá fora.
- Eu achei que você fosse um homem de palavra!
- Eu sou... Falei que te... botaria pra fora se não pagasse os 3 meses de aluguel...
- E eu falei que pagaria os 3 meses em 3 dias!
Milton botou sua cabeça à mostra pela primeira vez. Estava mastigando uma coxa de frango.
- Então... - puxou a carne com seus dentes amarelos, Ran salivou - você tem aí? - Bom... Agora não, mas eu tinha ontém. Me roubaram! Milton sumiu novamente.
- Some daqui antes que eu chame meu leão de chácara!
Nesse instante, Ran ouviu o ranger do portão de ferro do cortiço, recuou instintivamente. Da fresta do portão saiu Godofredo. Ele devia ter um metro e meio, seus olhos negros e maliciosos contrastavam com a compleição parda de uma criança de uns doze anos. Ran, provavelmente, não ficaria intimidado com Godofredo não tivesse visto o próprio esmagar a cabeça de um homem adulto, com os impulsos elétricos  do braço biônico que escondia embaixo da blusa. O homem era um antigo inquilino que não pagara seus débitos.
- Tá bom, tá bom! Posso só pegar minhas coisas?
A criança sinalizou com a mão, permitindo que Ran se aproximasse. Novamente veio a voz do alto:
- Ei! Isso não quer dizer que estamos quites! Você ainda me deve os aluguéis! E se eu não puder te encontrar... Bem, eu tenho quem consiga...
Ran apanhou apenas um sobretudo velho e seus quadrinhos. Ele olhou novamente a criança-ciborgue e sentiu a náusea aumentar. Milton provavelmente o conseguiu pagando serviço de segurança à Matilha, uma das gangues menores da região (formada, principalmente, por crianças delinquentes), que brigava por espaço ali no extremo da Zona Sul, um território um pouco fora da influência da maior gangue daquela área, a Stormbringer. Ran terminou de apanhar seus pertences e pôs a mancar, perguntando-se quando seria sua próxima refeição, até que:
- Ei! - Gritou a voz do edifício - Você parece faminto, leva por conta da casa!
Acompanhada de uma risada de escárnio, a coxa de frango veio do céu, bateu na cabeça de Ran e caiu no chão. Só havia osso. Ran sentiu o princípio de ódio retornar, mas achou por bem pelo menos roer o osso para enganar o estômago, mas quando virou-se o osso já era disputado por três ou quatro mendigos. Ran olhou para Godofredo que permanecia em seu posto, impassível.
Ran se pôs a mancar longe da confusão.
3 notes · View notes
Text
Não há mais nada
Estamos meu pai e eu no campo de terra onde costumávamos levantar pipa, mas agora não há pipa, sou um adulto e, apesar disso, continuo batendo na altura da cintura dele, igual naquela época. E mesmo sabendo que é meu pai, nunca vejo seu rosto. Eu só vejo seu capacete de traje radioativo. Por anos separado de meu pai eu tive esse mesmo sonho.
Meu pai foi salvar o mundo, ele sempre foi um idealista e eu, um cínico. Ele um anarquista, eu um niilista. Ele queria salvar o mundo porque queria um futuro pra mim e eu nunca enxerguei nada senão distopia.
E agora, aqui, nesse hospital, mesmo no leito de morte do meu pai, ainda não posso abraçá-lo, mesmo agora ele tem que usar esse traje para que os outros não sejam contaminados. Mas isso não importa e ele está frágil demais para me impedir de tirar seu traje e sentirmos uma última vez o calor que causa a saudade.
5 notes · View notes
Text
os primeiros passos num vasto, vasto mundo
Numa época em que dizia-se que a Magia estava morta, Diminariel era como uma pérola no meio da lama. Não porque tivesse um talento natural para a coisa, mas porque seu "defeito" de nascença o deixava mais próximo dos Cosmos, ou era o que pensava consigo mesmo o velho Searomir, enquanto o jovem desenhava no chão do casebre de seu tio com os dedos sujos de carvão.
- Mas ele é só um retardado, não sabe arar a terra, e é fraco para segurar uma lâmina! - Disse o tio de Diminariel a Searomir, quando este ofereceu sua tutela ao menino. - Só vai te atrasar a vida, como atrasa a minha.
- Nada que uns tostões de cobre não resolvam? - respondera o velho maliciosamente, sacudindo um saco de moedas e apoiando-se em sua bengala.
Mesmo imaginando que o velho fosse um pervertido ou traficante de crianças, o tio de Diminariel aceitou a oferta sem fazer perguntas. Seria uma boca a menos para alimentar nos tempos de Outono nos quais a praga consumia as plantações de trigo. 
E assim, naquele final de tarde gelado, Diminariel deixou para trás a casa de sua infância e iniciou, ao lado do Mago Searomir suas aventuras pelo Vasto Mundo.
Searomir não era um velhinho sábio de barbas brancas com rosto sereno e benevolente. Era um velho dado à patuscada, com uma careca brilhante, manco, violento, rabugento, baixo, robusto, dotado de uma pele escura marcada tanto pelos hieróglifos de seu ofício quanto por cicatrizes de uma enigmática vida pregressa qual nunca dera brecha para falar a respeito. Para falar a verdade, Searomir parecia-se mais com algum dos temidos bárbaros das lendas do Leste Distante do que com um Sábio da Vertente Mística, tradicional do Norte do Mundo, a terra natal de Diminariel.
O menino que nunca pronunciara uma palavra até então naquele final de tarde, caminhando nos Campos arruinados de Lumera, ao lado de seu novo tutor, pronunciara com hesitação os primeiros sons articulados de sua vida:
- Fo...Me... - seguido de um longo ronco de seu estômago. 
Searomir achou graça. Moveu sua mão, ao que o menino instintivamente respondeu com uma posição defensiva. Provavelmente ele esperava uma pancada, como devia acontecer em seu lar anterior quando mostrava-se faminto. Mas Searomir, sentindo uma fagulha de pena por imaginar os horrores e privações que alguém tão jovem já passara, tocou o ombro da criança e puxou de sua bolsa um pão bolorento que fez salivar a boca do menino. Após um momento de hesitação, Diminariel, voltou a cabeça para cima, com aquele olhar que ao mesmo tempo que olhava não parecia enxergar, sorriu estupidamente e esticou suas mãos na direção do alimento.
- Não! - Searomir ergueu o pão para o alto, balançando negativamente a cabeça. - Primeiro, quero que me peça adequadamente.
O sorriso de Diminariel murchou e foi substituído por um olhar confuso.
- Vamos, moleque... Peça-me de maneira adequada que o pão será seu.
O menino, ainda confuso, ergueu os braços.
- Fo...Me...
- Não! Essa não é a maneira adequada de pedir um alimento, tente de novo.
Diminariel sentou-se nas folhas secas do chão e ficou olhando para os próprios dedões dos pés calçados com suas botas furadas.
- Vai ser assim então, moleque?
Searomir jogou sua bengala no chão e sentou-se um pouco distante de Diminariel. Seus dedos sujos de unhas longas partiram o pão bolorento ao meio. Searomir deu uma olhadela maliciosa ao menino e devorou metade do alimento. Diminariel, com os olhos vidrados, começou a engatinhar na direção de seu Mestre.
- Fo...Me...
Os olhos do garoto estavam completamente voltados ao pão entre dedos do Mago. Era um tipo de olhar fixo e ao mesmo tempo incerto que somente indivíduos daquela categoria exerciam quando escolhiam um objeto de sua obsessão. Dessa vez, Searomir não disse nada, permaneceu sentado e apenas olhou diretamente nos olhos perdidos de Diminariel. Ninguém nunca faria uma mente dispersa como a do garoto focar-se em seus próprios olhos, não era da natureza  daqueles tão próximos aos Cosmos perceber com nitidez as coisas concretas ao seu redor. Mas algo fez Diminariel tremer. Apesar de sua fome ser extrema a ponto de cada fibra do seu corpo desejar aquele pedaço de pão, de maneira que aquilo fosse a única coisa existente no universo naquele instante, apesar disso, alguma força desviou seu olhar do objeto de seu mais urgente anseio. Ele encontrou os olhos de uma besta.
Diminariel deixou de engatinhar e ainda com o olhar fixo nos olhos de morte de seu Mestre, recuou.
Houve silêncio, a tensão da atmosfera parecia palpável.
- Moleque... Consegue tomar o pão de mim? - Searomir esticou o braço e deixou o pão em cima das folhas secas, mais próximo de Diminariel do que dele mesmo.
Diminariel, sem nunca desviar o olhar assustado dos olhos de seu Mestre, balançou a cabeça negativamente.
- Exatamente. - Confirmou Searomir.
Mestre e pupilo permaneceram sentados no chão do bosque com o pedaço de pão bolorento entre eles. 
O Sol se pôs, a lua minguante e as estrelas revelaram-se no céu negro-púrpura, a penumbra dos morcegos cortaram os céus, as nuvens empurradas pelos ventos gélidos logo cobriram os astros, o pio de uma coruja distante ecoou do profundo desconhecido do bosque, os olhos amarelos das criaturas da noite aproximaram-se dentre as árvores, alguma alma distante cantarolou uma canção antiga que logo desvaneceu, formigas contornaram o pão sem tocá-lo, Mestre e pupilo já não enxergavam os detalhes de seus rostos, somente as formas de seus corpos, mas em momento nenhum, deixaram de olharem-se fixamente nos olhos.
Os primeiros raios de sol surgiram. Nenhum deles havia adormecido, nem mudado de posição. Passarinhos pousaram na careca de Searomir e no ombro de Diminariel que permaneceu imóvel e com o olhar fixo nas pupilas castanhas de seu Mestre. 
Assim foram os primeiros momentos da manhã até que um enorme ronco estomacal mudou novamente a atmosfera.
A face fria e absolutamente rígida de Searomir quebrou-se, ele pôs-se a gargalhar espantando o passarinho de sua careca. Diminariel, como que retirado bruscamente de uma hipnose começou a olhar em volta confuso e logo distraiu-se com o passarinho em seu ombro. Então, seu estômago roncou novamente, ele hesitou, olhou para seu Mestre.
- M-Mestre... Por favor... Me dá.... de comer... - Inclinou a cabeça, juntando as palmas das mãos.
Searomir enxugando as lágrimas provocadas pelo riso levantou-se e olhou para Diminariel.
- Lembre-se sempre dessa lição, moleque. Pois foi sua primeira no imenso campo das Artes Ocultas...
Searomir desenlaçou o nó de sua bolsa e tirou de lá um suculento pernil, pães não tão frescos, mas pelo menos não bolorentos, e uma garrafa de vinho. Diminariel sorriu com seu olhar disperso de quem olha mas não parece enxergar nada à sua frente. Ele sempre lembraria daquela como a refeição mais farta que tivera, e sempre lembraria daquela lição como o primeiro grande fundamento da Magia: quando você lida com forças que não pode subjugar, deve conhecer a linguagem correta para negociar.
3 notes · View notes
Text
A morte do cinema
Se Holden Caufield existisse ele já teria se matado ou teria matado um estudante de cinema, pois como Caufield, eu desprezo filmes e odeio estudantes de cinema tanto quanto odeio o cinema em si, e falo seriamente quando digo que não existe forma de “arte” mais emsimesmada e tão narcísica, pois não quer sua inquietação, quer sua passividade, mesmo quando finge que quer sua inquietação, através de recursos de linguagem ainda mais vaidosos que o naturalismo falso e estéril da hollywood dos anos 50. Ah, deus, eu Odeio o cinema, estudantes de cinema, cineastas, críticos de cinema, professores de cinema, os quero todos mortos, essa classe de gente que sauda um tipo de expressão que já nasceu morta, que sobrevive de mortos momentos, e semelhante a Dorian Gray suga sua energia da realidade com um tipo de necromancia arrogante: a maldição fotográfica. Pobres diabos irmãos Lumiére, mal sabiam o mal que colocaram no mundo. Infeliz Thomas Edson, morreu feliz em sua ignorância. Amaldiçoado bruxo das imagens Meliés que viajou para a Lua, sem sair de um galpão velho na França, e incutiu na cabeça de milhões a sedução da imagem. Eu odeio o cinema, minha obsessão, na sala escura, com sua tela gigantesca, seu som gigantesco, suas verdades mentirosas em 24 quadros por segundo que quando se encerram, permanecem em meu corpo e habitam no vórtice da minha imaginação. 
0 notes
Text
a felicidade só se rouba
Rodney Laughton Ballard, em sua primeira ronda noturna, sentiu um calafrio agradável. Era acostumado às noites frias em tavernas aquecidas pela companhia dos amigos e da bebida. Agora andava só no meio da noite, no nevoeiro de Londres, perdido em pensamentos sombrios e estimulantes. Ouviu uma carruagem aproximando-se e riu consigo mesmo ao pensar nas lendas que sua avó contava à beira da lareira, quando ele era menino.
A carruagem passou, ele esperava que estivesse vazia, ou que houvesse um esqueleto a conduzindo, quem sabe o próprio Mefisto? Mas não, o cocheiro era um senhorzinho simpático que o cumprimentou inclinando a cabeça. Rodney contornou toda a praça, iluminando as árvores com sua lanterna e chegou até o outro extremo. Em meio ao nevoeiro da Baker Street era possível enxergar somente a silhueta da estátua de Sherlock Holmes com seu cachimbo, vagamente iluminada por uma lamparina. Com a distância, a lamparinas na ruela tornavam-se vaga-lumes estáticos até que só se visse névoa e escuridão.
Rodney estava acendendo um cigarro quando ouviu, como tiros na noite, batidas opacas e ritmadas distantes que deixavam seu eco na amplitude do não visto. Ele começou a caminhar de encontro ao som que vinha de encontro a ele. Uma Dama de Negro pisava firmemente no chão com seu salto alto. Adornava sua cabeça um bonnet usado pelas damas da alta estirpe e um véu negro cobria-lhe a face. Ela levava em sua mão uma espécie de espelho luminoso.
O policial ficou um pouco ressentido, porque a fascinante Dama não deu-lhe nem um boa noite. Ele a viu sumir novamente no nevoeiro, mas ainda ouvia os ecos de seus saltos batendo no chão. Colocou-se a segui-la sem saber bem poquê. Mantinha uma distância considerável, sem que a enxergasse, para que ela não suspeitasse de ser seguida. Os sons cessaram. Rodney ficou parado com sua lanterna buscando qualquer ruído. Houve um grito e vidro quebrando-se.
Instintivamente ele pô-se a correr. Percebeu que o fogo de sua lanterna logo acabaria e a jogou na grama. Olhou à frente e viu-se cercado de becos.Era quase um labirinto, não sabia por onde ela poderia ter ido. A pista veio novamente pelo som. Ele foi seguindo a passos lentos um lamento curto e sofrido que ficava cada vez mais próximo. 
Quando chegou na esquina do beco viu a uma certa distância a Dama descendo e subindo, lamentando, lamentando e totalmente despida, expondo a branquidão de suas costas. Embaixo dela, apertando suas nádegas com mãos imundas, havia um mendigo, ou um batedor de carteiras da classe mais baixa, completamente repugnante, em trapos. Foi quando ele percebeu que os sons ouvidos antes não eram lamentos.
- Rodney! Oh, Rodney! Come here, nasty boy, fuck me in the ass! - Gritou a Dama.
O policial salivou e sentiu o volume de sua calça crescer.
- Fode meu cu, Rodinei!
O nevoeiro dissipou-se, as construções desabaram e a atmosfera vitoriana de Londres evaporou, tornando-se um quarto de hotel mais ou menos barato.
- Porra, assim você me brocha, Ju! Rodinei? A gente combinou que é Rodney. Rodney Laughton Ballard, lembra? Pronuncia certo, do jeito inglês!
- Cala boca Rodinei e come meu cu!
Era sempre assim. Pra ela tudo, pro Rodinei, nada. 
- Deixa ele lá, Juli. Eu como seu cuzinho, vem aqui, vem...
Pra ela tinha de haver toda uma superprodução da fantasia de um assalto seguido de estupro, passando-se em Londres no século XIX, mas a ele não era permitido nem o tesão de ouvir seu nome pronunciado em inglês, sem que fosse de um jeito debochado. A fantasia sexual era o único lugar onde era possível fazer exigências ridículas como aquela, e ainda assim, acontecia com raridade.
Enquanto sua esposa fodia com o não-mais-mendigo, ela pegou o que antes era o espelho luminoso  - e agora iphone - para filmar sua performance. Rodnei, totalmente brochado, saiu contrariado pelo corredor do hotel.
Eram 3 da manhã, as ruas vazias, mas não havia nevoeiro. Todas as luzes da cidade eram visíveis. Rodinei acendeu um cigarro e ouviu, como tiros na noite, batidas opacas e ritmadas. Ao ver a prostituta dona dos saltos que ecoavam na noite, Rodinei pensou em como a felicidade de sua esposa só era possível por meio do roubo de seu consentimento, e que ele só conseguiria a felicidade sexual dele se roubasse o corpo de alguém subjugando-o a chamá-lo "Rodney Laughton Ballard".
1 note · View note
Text
Ascensão
Meu irmão e eu sempre dormimos juntos, então não achei tão diferente a vida de casada perante Deus. A diferença, na verdade, é que depois de casarmos perante Deus ele passou a querer dormir mais junto de mim. Sempre que isso acontecia - e ele encostava muito em mim - mamãe dava um choque em meu irmão com o bastão (ela vigiava nosso sono),  castigo com qual a gente já era acostumado desde criança - e ele parava de se encostar, o que me deixava triste, porque era bom.
Outra coisa que mudou foram nossas roupas.  Os pijamas de casamento eram macacões cinzas que nos cobriam quase completamente, só deixando um buraco pro xixi - mas não pro cocô. Mas esses só usavámos uma vêz por mês “depois de passar o período vermelho”, como dizia mamãe. Nas outras noites, nos cobríamos com o macacão higiênico de sempre, que não deixava fresta nenhuma. 
Fora isso, era o de sempre. A gente rezava pra Deus toda manhã. Eu imaginava minhas orações colando no teto, porque rezava sem muita vontade e papai sempre dizia que se rezássemos sem fé nossas preces não chegariam ao céu. Toda noite e toda tarde líamos os escritos sagrados sobre transgressão e expiação, e como sempre, eu não entendia nada.
No viveiro das plantas, eu alimentava as minhocas mutantes gordinhas que davam  luz à outras minhocas para que quando crescessem as coméssemos. Mamãe sempre dizia quando centenas de minhoquinhas saíam de seus ovinhos: “Um dia você vai encher a terra igual esses bichinhos”. Papai, antes de morrer da doença do mundo lá fora, dizia que meu irmão e eu “plantaríamos as sementes da nova humanidade”.  Eu achava engraçado, imaginava a gente plantando ovinhos e em vez de nascerem minhoquinhas da terra, nasciam pessoas. 
Um dia aconteceu uma coisa muito estranha. Mamãe nos mandou vestir os pijamas de casamento, prendeu nossas mãos atrás de nossas costas com algemas e mandou que sentássemos um de frente para o outro em cima da cama. Ela apontou o calendário dizendo que aquele seria o dia mensal de “extrair as sementes para novas crianças”. Primeiro, as luzes mais fortes  e brancas se acenderam e senti doerem meus olhos, mal conseguíamos ficar com eles abertos. Mamãe mandou que meu irmão levantasse para que ela puxasse o orgão  dele para fora do buraco do pijama de casamento. Ele hesitou e levou um choque do bastão. Eu fiquei com pena dele, foi a primeira vez que vi os olhos dele lacrimejarem por causa do choque, ele devia estar com muita vergonha. Eu sei que eu estava. Meu irmão, então, levantou-se. Mamãe, com duas hastes no buraco do pijama puxou o orgão para fora. Aí, eu que levei o choque. “Nunca olhe, se não quiser morrer envenenada, já te disse isso!”
Como não acreditava mais em tudo, tudo que mamãe dizia, com a visão embaçada de meus olhos semi-cerrados, percebi que as hastes eram um dispositivo que tremia e fazia com que o orgão  de meu irmão crescesse. Quando ficou bem grande, mamãe mandou que ele aproximasse o orgão no buraco do meu pijama de casamento, onde ficava minha fenda. Não sei porquê, mas meu coração disparou igual quando meu irmão se encostava em mim de noite. Mamãe me lembrou de ficar de olhos fechados. Senti a respiração nervosa do meu irmão, o calor dele mais próximo, os joelhos dele foram pressionando a parte externa de minhas coxas, senti meus braços enrigerem-se sem querer, e as algemas machuram meus pulsos.  Fiquei com medo. Mas era um medo bom. Esperei um tempo com os olhos fechados e nada. Até que senti meu irmão se afastar e ouvi mamãe gritar: “Mas você é um inútil mesmo!”, abri os olhos e mamãe dava outro choque em meu irmão que estava todo se tremelicando de costas na cama, com suas mãos algemadas se remexendo inutilmente. 
E assim foi durante aquela semana. Todo dia tentávamos extrair as sementes , e sempre que meu irmão aproximava o orgão dele da minha fenda, com a visão embaçada, eu via-o passar de duro para amolecido.
“Temos que transgredir! Recorrer à transgressão por causa de seu irmão inútil!”
Almoçavámos com nossos garfos e facas um prato de minhocas e folhas na mesa da sala, enquanto mamãe gritava com meu irmão ao seu lado. Falava que teríamos que fazer a cerimônia de expiação para compensar a transgressão. “Esse impotente!”, mamãe gritava sobre ele ter que praticar a mácula para extarir e amarzenar as sementes e que mão de meu irmão se encheria de pelos, - o que me levou a pensar quepapai era muito maculado, porque era todo peludo - mas não sabia se Deus aceitaria a expiação, teria que consultar os livros de papai para saber como proceder com reverência.
Mamãe tagarelava e tagarelava, meu irmão ao seu lado de cabeça baixa mal tocava o prato. E eu comia mecanicamente, até que enfiei o garfo no prato e senti algo. Havia uma minhoca viva. Um dos dentes do garfo atravessou a cabeça da maior minhoca que havia no meu prato e ela ficou se remexendo. Eu a coloquei na boca, senti ela dançar na minha língua, beijar o meu céu-da-boca, senti o líquido do buraco que fiz nela vazar pelos meus dentes. Embaixo da minha língua parecia até que havia um mar de saliva. Eu mal tinha percebido meu movimento, era como se tivesse entrado em transe, mal notara que no outro instante  o mesmo garfo estava atravessado na garganta de mamãe. Voltei à consciência e senti as unhas dela rasgarem a pele do meu pulso, enquanto pressionei meu braço com mais intensidade, afundando, como num colchão, o garfo na garganta de mamãe . Sangue lhe escorria  pela boca e nariz, enquanto ela rinchava que nem um porco. E vi seus olhos oblíquos logo ficarem sem vida. Os dedos dela aliviaram a pressão sob meu pulso. Sentindo ainda, a minhhoquinha viva se remexendo na minha bochecha, suguei-a para dentro e a engoli.
Meu irmão, claro, estava horroziado. Teso na cadeira, sem reação, me olhando com uma cara de idiota. Eu fiquei o encarando, como que esperando uma reação, talvez um agradecimento. Mas ele chorou. Chorou desesperadamente. Aquilo me deixou enojada.
O deixei lá chorando e desci até a casa de máquinas, onde destravei a porta com usando os cânticos de Sião como senha e subi do subsolo da nossa casa para Sodoma.
1 note · View note
Text
A sabedoria de Saní
Era realmente um absurdo seis alunos serem expulsos porque incomodaram alguns vizinhos fazendo uma orgia num dos quartos do alojamento. Postura católica da diretoria do campus. Mas era razoável deflagrar uma greve por conta disso? Dizia-se que não, não era só isso, o reitor estava viajando na Lituânia enquanto o governador cortava verbas para o ensino público, isso demandava uma greve. Vão engordar o discurso moralista? Me sinto contemplado por sua fala! E não só isso, semana passada o governo anunciou redução do currículo em ciências humanas para o ensino médio, um ultraje. Vão contribuir, ainda que involuntariamente ao moralismo? Me sinto contemplada com sua fala! E não só isso, a Polícia de Choque invadiu uma ocupação três dias atrás, e sem mandado de busca, uns porcos! Vão ficar do lado dos moralistas? Isso também me contempla! Um coro levantava-se em efusão abafando as vozes contrárias à greve. E, não necessariamente contrárias à greve, mas a favor de definir com mais critério uma pauta, nada daquilo havia sido discutido antes. É um bom ponto! Não estamos debatendo como se deve! A efusão contrária ficou tão intensa quanto os favoráveis à greve. Mas, na verdade, durante toda essa ação performática, todos estavam atentos, com rabo de olho, a uma pessoa: Saní. Aguardavam todos a manifestação legítima, a sabedoria primal do índio. E no momento mais intenso da discussão, Saní com um graciosidade que somente os sábios originais da terra possuem, ergueu sua mão. A palavra está com o companheiro Saní, palavra com o companheiro Saní! Um silêncio religioso tomou conta do salão. Saní falou apenas cinco palavras: Precisamos lutar contra a opressão. Houve mais um silêncio reverente e então o lugar explodiu de emoções. Havia lágrimas tanto naqueles a favor quanto naqueles contra a greve, todos se abraçaram, aplaudiram e reverenciaram sabedoria indígena..
1 note · View note
Photo
Tumblr media
3K notes · View notes
Text
infinito
no infinito entre as estrelas
o buraco negro une tempo e espaço
um cocô gigante flutua no espaço sideral
o buraco negro une o passado e o futuro
pela presente extensão do cocô planetário
1 note · View note
Text
epiderme
Certa rua morta, cheia de buracos no asfalto, adentra numa mata. Lá é o final da cidade. Um lugar onde a urbanização e a natureza chocam-se criando um ambiente híbrido e dissonante com seus arbustos cercando galpões abandonados marcados pelo pixo.
Como ele queria impressioná-la por ser diferente dos demais garotos que ela conhecera, levou-a lá para um passeio. Contudo, não era só desejo de impressionar, era uma intenção genuína. Ele sabia que ela também almejava outras coisas, outros lugares, ela tinha seus ideais, suas utopias que a faziam brilhar de forma diferente numa multidão homogênea. Sabia que ela tinha uma sensibilidade para o inesperado. Na verdade, ela ansiava pelo inesperado como um barco à vela anseia pelo vento num mar parado. E sabia que ela apreciaria a beleza singular das fábricas em ruínas cobertas de musgo e ervas daninhas.
Ambos sentiram-se estranhamente pacíficos andando naqueles restos do que um dia foi um pólo industrial. Era um sentimento pacífico sem deixar de conter certa melancolia inerente à existência daquele espaço.
Enquanto eles caminhavam em silêncio, após a cópula e após já terem muito conversado, rido, e após a segunda e terceira cópulas, sentiram aquele típico aperto no peito. O aperto de que as coisas não duram, de que a totalidade de um momento é impossível de ser captada de outra forma senão pelo corpo pulsando vida. O aperto no peito de que talvez a memória não seja suficiente para reavivar um momento como o presente.
Ao ouvir os sons de grilos e pássaros, ela tentou imaginar como seria se as fábricas estivessem em pleno funcionamento. A resposta foi o vento. E os odores.
Quando começaram a discutir os cheiros daquele lugar foi que sentiram a brisa trazer um cheiro doce de alguma flor acompanhado de um leve odor desagradável. Caminhando contrariamente ao vento, eles foram adentrando mais na mata e deparam-se com um imenso gramado florido onde um corpo se putrefazia.
Era um homem jovem, estava nu. O tom de pele acinzentado contrastava com o verde que o cercava. Sua costela estava aberta e a carne já sem cor, estava coberta de larvas. O rosto, com olhos fechados, evocava uma calma, apesar do buraco em sua cabeça possuir uma fenda até um dos olhos. Flores pequenas haviam crescido pela extensão do cadáver e toda uma variedade de organismos já funcionavam vigorosamente sob o corpo sem vida. Havia moscas verdes que ora voavam por cima do homem, ora se arrastavam pelas feridas de sua carne, formigas transitavam em fila pelo rosto, algum besouro colhia pólen de uma flor que brotara do mamilo do cadáver e outros dois insetos, na região lombar da carne apodrecida pareciam estar num ritual de acasalamento.
Os dois jovens, perplexos, olhavam cada detalhe do corpo tapando seus narizes. O garoto não aguentou e vomitou. A garota o segurou por um instante e o levou até uma árvore. Permanecerem por alguns momentos em silêncio refletindo sobre a fragilidade de seus corpos.
A garota contemplou suas mãos, tentou visualizar além de seus tecidos, de seus ossos, de seus órgãos, do sangue que pulsava com o bombeamento cardíaco. Pensou nos nervos que saíam de seu cérebro e espalhavam-se por sua carne. Questionou se havia algo como uma alma. Se em uma camada mais profunda de seu corpo havia outro tipo de matéria mais refinada e intangível. Ou se alma era a junção do todo visível. O garoto pensava que não importava. Nada além da certeza de sua fragilidade importava tanto. Considerava tudo aquilo que aprendera e que não pudesse ser captado e compreendido pelos seus sentidos como inútil.
Ao notar uma abelha presa na fenda de uma madeira velha jogada no mato, a garota chamou o garoto para que também a visse. A cada batida de asas do pequeno ser, eles viam a vida dele esvaindo-se. Com o dedo indicador e o dedão, a garota a puxou com a maior delicadeza possível, finalmente libertando a abelha e logo sentiu o ferrão perfurando a pele de seu dedão. A abelha ficou imóvel e sem vida logo em seguida, tornando-se uma pequena carcaça murcha. Ao ouvir o breve grito dela, o garoto colocou o dedo ferido da menina em sua boca e deu uma pequena mordida. Ela riu.
O aperto no peito se intensificou ao notarem o céu escurecer. Era hora de voltar.  
2 notes · View notes
Text
céu estrelado
No deserto rochoso Lincoln passou as noites mais claras de sua vida. Era possível enxergar a olho nu planetas, constelações, o rastro de pontilhados brancos de nuvens moleculares que existiam no espaço há bilhões de anos.
“Uma infinidade de luzes de estrelas que não existem mais”, ele pensava distraído diante daquela imensidão.
Estava para completar seis meses de estadia no telescópio de maior alcance da terra. No dia seguinte viriam buscá-lo para que voltasse à civilização.
Deveria, então, prestar contas a seus superiores, ministrar palestras, preencher papéis, prestar contas à contabilidade, atualizar dados financeiros, preencher mais papéis, retornar à vida acadêmica, preencher mais papéis, sorrir para burocratas, dar tapinhas nas costas de gente que não gostava… E no mundo civilizado não havia ninguém para quem realmente voltar.
Sua vida num deserto com um telescópio gigante e um cachorro lhe bastava. Absorto nesses pensamentos, foi quando surgiu Haroldo, o malamute-do-alasca que fora sua única companhia durante seis meses.
Lincoln envolveu o cão com o braço beijando-lhe as orelhas, o focinho e acariciando seu pescoço. Haroldo demonstrava poucas emoções, era sempre silencioso, jamais Lincoln o ouvira latir, ele mantinha seus olhos de lobo entre a astúcia e a indiferença. Mas nesses momentos em que Lincoln acariciava seu pescoço felpudo, Haroldo sempre cedia algumas lambidas no nariz de seu dono.
No compartimento onde vivia com seu cão Haroldo, Lincoln resolveu comemorar sua última noite no telescópio com vinho e pizza. Apanhou duas pizzas congeladas no enorme freezer que ficava no subterrâneo e colocou-as no forno. Ligou o rádio que tocava rockabilly e iniciou seu computador para assistir a algum filme. Estava indeciso entre Twilight Zone dos anos 50 e algum filme do John Carpenter.
Suas malas estavam quase prontas, mas não podia deixar de remexer em uma delas de novo para buscar as últimas gramas de maconha. Ao enrolar o baseado Lincoln notou o olhar de Haroldo, o olhar de indiferença inocente.
“Cara, por isso que eu te amo, você é a única pessoa que não me julga não importa o que eu faça.”
Haroldo também merecia algum aperitivo e Lincoln lhe deu pizza e encheu sua vasilha com vinho, onde o cão foi bebericar imediatamente.
A rádio transitava entre rockabilly, blues-rock, garage rock, sempre uma escala musical ritmada em euforia. A embriaguez de Lincoln fazia-o não notar que o som da música era mais alto que o som do filme que assistia, era como se estivesse hipnotizado, mas mesmo assim, com todo esse ruído foi capaz de identificar o chiado do rádio no andar acima, onde estava o telescópio.
Cambaleante, Lincoln subiu e Haroldo ficou à sua espreita lá embaixo. Ao aproximar-se do rádio emissor de ruídos, ele questionava se já estava tão bêbado a ponto de ouvir sinais nunca antes captados. De repente, parecia tão perdido que esquecera como manusear os equipamentos.
Um uivo desesperado e ensurdecedor causou um sobressalto em Lincoln. Rapidamente desceu as escadas e Haroldo não estava mais lá.
Vidros quebraram-se.
Meio desnorteado, Lincoln não soube pra onde seguir. Sua cabeça começou a explodir de dor. Puxou o fio do aparelho de som e a música cessou. No compartimento onde ele estava as janelas estavam intactas, dirigiu-se até a cozinha e viu cacos e sangue espalhados no chão. Olhou para fora, e não enxergou nada além de rochas distantes. A noite clara do deserto não parecia mais tão clara.
Pegou 3 comprimidos engoliu-os e virou um copo de água. Lavou o rosto. Abriu uma pequena sala de despensa onde apanhou uma winchester e munição. O relógio indicava 3 da manhã. Lincoln correu para a garagem, onde havia um jipe.
O rádio do telescópio começou a emitir ruídos mais altos.
Lincoln deteve-se. Subiu novamente ao andar de cima. Não entendia aquelas ondas de rádio, não vinham do espaço, de satélites, mas também era impossível captar ondulações da terra. Por isso o telescópio situava-se ali, o deserto era uma redoma contra a poluição das ondas de rádio da terra.
Lincoln estava tremendo e suando frio. “Que merda é essa? O que há de errado?”
Em estado de pânico deslizou a escada novamente. Ao tocar os pés no andar de baixo viu todos os vidros partirem-se. O chão ficou instável, as paredes pareciam de papelão, tudo tremia. Lincoln teve a sensação de que seu cérebro partir-se-ia e seus olhos saltariam para fora. Ouviu ruídos de várias coisas quebrando-se e encolheu-se no chão. Com a impressão de que o teto desabaria sobre si rastejou-se até sair do compartimento.
“Que porra…”
Quando olhou para o deserto viu um clarão e as rochas semelhantes a esculturas naturais começaram a flutuar. Lincoln viu tantas rochas quanto via estrelas no céu, todas ascendiam rumo ao infinito. Lincoln sentiu o próprio corpo flutuar e perder-se no espaço sideral.
Então despertou no hospital.
Estava de volta à civilização. Ficou em coma durante algumas semanas e frequentemente vinha tendo pesadelos sobre sua última noite no telescópio. Lincoln sofreu o que os especialistas chamaram de crise "síndrome do deserto", quando um indivíduo passa por um longo período de isolamento acumulando ansiedades até o ponto delas explodirem física e mentalmente.
Ganhou aplausos, foi poupado de relatórios, de prestações de contas exaustivas e palestras. Mas sentia-se mais como um doente do que como um herói. Na verdade, não sentia mais ele mesmo.
Agora via a noite escura da cidade através da janela de seu apartamento, aquele mar de luzes dos prédios e a nuvem de poluição cobrindo o céu roxo. Nunca estivera tão deprimido.
Um uivo ensurdecedor cortou a madrugada. Lincoln ouvia esse uivo quase todas as noites, o psiquiatra alertou-o sobre o efeitos do trauma, o elemento amedrontador que a mente sempre evoca para preservar-se.
No entanto, dentro de si, Lincoln sabia que não era nada daquilo, pois de fato já não era ele mesmo, mas parte daquele organismo alienígena sonoro que penetrou sua psiquê por meio dos ruídos do rádio e enlouquecera seu cachorro.
Sentia-se cada vez menos um indivíduo. Sentia-se cada vez conectado aos cosmos.
1 note · View note
Text
Um pequeno delito
De qual lado você está? Do lado que protege bandidos ou do lado que quer um mundo melhor?
Pergunto isso, porque acabei de matar alguém. Então, de acordo com nosso senso moral, ético e legal sou um bandido. Tirei uma vida. Já era, acabou pra ele. Deixou de existir, enterrei todas as possibilidades futuras de um indivíduo a sete palmos do chão.
É claro, você pode me lembrar que no direito penal existe a jurisprudência, uma série de interpretações que leva em consideração o contexto do crime, as motivações, moldando os regulamentos de acordo com situação, etc.
Então meu contexto é o seguinte: vim da favela, cresci como todo moleque de quebrada, dividindo cômodo com 5 irmãos, passando o dia na rua, empinando pipa no campão ou na lage, fumando uns becks, levando batida da polícia, passando dificuldade num barraco podre, tendo que ajudar minha mãe desde cedo a completar a renda, porque o trampo de faxineira em 3 casas diferentes não bastava.
Larguei e voltei da escola umas 3 vezes. Não ligava muito pra nada além de pipa e futebol num campinho de terra batida zoado.
Fiquei nessa até uns 15 anos.
As coisas mudaram quando vi minha mãe vulnerável pela primeira vez na vida. Ela tinha arrumado um trabalho do outro lado da cidade, numa quebrada diferente, bairro meio industrial isolado. Normalmente ela pegava carona com a supervisora dela até o trem, mas naquele dia, não sei porque ela teve que ir a pé até a estação. Tinha que andar uma cara.
E no meio do caminho, durante a noite, naquelas ruas vazias chegaram dois nóias de bis. Desceram da moto apontaram a arma na cabeça dela, e já acostumada a isso, ela entregou tudo sem resistir.
Ela não resistiu ao assalto, uma mulher de 40 anos. E ainda assim os nóias deram uma coronhada na cabeça dela e a chutaram na costela. Deu fratura craniana e a ferida no lado infeccionou. Ela ficou meses na fila do SUS à beira da morte.
Aquele foi o ponto onde minha consciência mudou. Eu comecei a trabalhar em dobro e não larguei mais a escola.
O que larguei foram todas as más influências, me dediquei durante 3 anos de trabalho pra sair da quebrada e ir pra um bairro melhor. Eu tava determinado a contrariar as estatísticas. Comecei a estudar administração numa faculdade paga sem muito prestígio.
A maioria dos meus irmãos fez o mesmo, em graus diferentes de sucesso.
Me formei com as melhores notas, me destaquei, fiz contatos importantes e consegui entrar como estagiário num escritório importante do centro. Eu era tão dedicado e focado que eles, gente esnobe da classe alta, resolveram me efetivar.
Passei a ganhar bem pela primeira vez na vida. Finalmente pude dar pra minha mãe o conforto que ela merecia, conheci uma menina legal, bonita, de família boa. Noivamos. Nunca mais precisei voltar praquele passado hostil e sujo.
Mas a violência nos persegue nesse mundo.
Uma noite depois de ir tomar uma cervejas com alguns amigos, ao invés de pedir um táxi, resolvi andar um pouco, tomar um ar. Era um bairro bom, parecia cidade do interior, todo arborizado, casas bonitas. Mas logo vi na esquina um moleque franzino de moletom e touca. E já senti um frio na espinha. Ele devia estar louco de cola ou sei lá o que, devia ter uns 13 anos, preto que nem eu, mas tinha os olhos vermelhos e tava com uma arma na mão.
Veio gritando, aquela expressão, aquele jeito de falar, nunca vou esquecer aquela sensação, tinha algo de diabólico e ruim naquela maneira de ameaçar de gritar.
Ele levou minha carteira, tinha dinheiro, meus documentos, cartões, mas ele não me bateu que nem fizeram com minha mãe anos antes.
Não me bateu, mas a ferida desse sentimento de impotência diante de uma pistola apontada na sua cara é uma das piores coisas do mundo. Não consegui parar de pensar naquela noite, naqueles gritos, naquela humilhação, naquela sensação de insegurança. E de repente fui me dando conta como as pessoas que trabalham todo dia pra ganhar o seu e sustentar sua família estão à mercê da vontade de bandidos. . Simplesmente, pela vontade de um nóia qualquer o cara que faz tudo certo pode acabar com a cabeça explodida numa sarjeta.
Minha mãe disse pra não ficar guardando isso que só me causaria mal. Minha noiva dizia que era assim mesmo, que a gente tem que lidar com a violência e viver um dia após o outro.
Mas tomei minha decisão: eu faria algo pra garantir que pelo menos algumas pessoas pudessem viver um dia após o outro.
Através de uns contatos das antigas consegui um revólver.
Durante noites seguidas após o assalto, fiquei rondando de carro as ruas do bairro onde o moleque me assaltou. Descobri que ali perto havia umas ruelinhas sujas, uma favela pequena.
Ouvi uma algazarra de moleques no meio da rua, vinham descendo de bicicleta. Quando ouvi aquele tom de voz, aqueles gritos lembrei imediatamente da noite em que fui assaltado. Era ele. O sangue subiu minha cabeça junto com uma sensação enorme de satisfação. Haviam dois, o meu alvo estava na ponta, conduzi o carro em velocidade reduzida, os dois estavam distraídos e não dei nem tempo dele me olhar.
Foram duas balas bem na cabeça. Disparei e já pisei no acelerador.
Fiquei em choque. Fiquei eufórico. Fiquei aterrado. Será que alguém viu, porra? Fui o caminho todo de casa, distraído, quase bati o carro duas vezes. Tive que descer por um momento e me acalmar. Tinha um sentimento que não dava pra conter dentro do corpo. “Então é assim que você se sente quando faz justiça?” Pensava repetidamente. Aquela noite não consegui voltar pra casa, sabia que não ia dar pra dormir. Era sexta-feira, fui beber, fui andar, espairecer.
Na manhã seguinte cheguei em casa e imediatamente já senti o aconchego que só o lar traz. Minha mãe me recebeu com um sorriso, senti um cheiro agradável do almoço, porque minha noiva viria com a família dela naquele sábado. Quando entrei no meu quarto vi algo na mesa.
- Mãe que é esse envelope aqui?
- Ah! Você não vai acreditar. Chegou ontem de tardezinha. Lê pra você ver!
“Moço, primeiro quero te pedir desculpa pelo meu filho ter roubado de você. Essa não foi a criação que eu dei pra ele, eu ti juro! Quero que você saiba que assim que eu soube que ele tinha te roubado, eu li dei um cacete e fiz ele escrever também uma carta de desculpa. Nada justifica o que ele fez. Ele gastou parte do seu dinheiro mas fiz ele pegar de volta tudo. Ta tudo aí pode conferir.
Mil Perdões”
Eu fui muito errado eu to arrependido minha mãe ta sempre me avisando na minha oreia pra nao fazer esse tipo de coisa e eu nao gastei nada seus cartao tao tosdos ai seu rg tambem tinha seu endereço ai e queria pedir perdao eu nunca mais quero fazer isso e joguei fora a arma de brinquedo que usei aquele dia
desculpa espero que fique tudo bem
Minha mãe sorria, seus olhos lacrimejavam.
-  Ai, eu já li umas dez vezes e sempre me emociono.
Vi meus cartões e várias notas que estavam na minha carteira aquela noite em cima da mesa. Senti meu mundo desabar, o chão sumir e me afundei, me afundei numa escuridão sem volta.
2 notes · View notes
Text
olhos derretidos
os primeiros raios de luz bateram nos meus olhos, preencheram meu corpo vazio de calor e me fizeram vomitar energia pura.
0 notes
Text
a cavidade
No final da adolescência o jovem fantasia um futuro tão brilhante que vai ressoar em todos aqueles que o desprezaram ao longo de sua vida. As garotas que o rejeitaram ou ignoraram sua existência vão ser obrigadas a reconhecê-lo como alguém intrigante, radiante, fascinante. Elas lamentarão sua tolice juvenil e superficial. Os pseudo-astros de outras épocas que o olharam com indiferença vão agir como putinhas interessadas no cliente mais belo e rico. Vão dizer em suas conversas privadas “Esse cara é foda”, “Que sujeito impressionante”. 
Todos aqueles que o viram apenas como mais um, ou como ninguém, ou como alguém indigno de atenção vão ter consciência de seu ato estúpido e mesquinho, tamanho será o brilho futuro do jovem hoje quebrado e deprimido. Ele se reconhece como uma pedra preciosa em estado bruto. Ele se reconhece como um Rimbaud em potencial, como um marginalizado cheio de integridade na sua força subversiva.
E o que acontece? O que acontece, jovem? Você já não é mais tão jovem. Você já está naquela época da vida em que poderia pelo menos vislumbrar uma fração de seu futuro brilhante. Mas o mesmo buraco permanece dentro de você. Aquela mesma cavidade que fazia você chutar lixeiras na rua de madrugada e quebrar vidraças sem motivo nenhum.
A mesma cavidade que, se você parar pra olhar bem, está bem maior. Você foi somente se adaptando ao seu buraco. Concedendo ao buraco toda a sua energia disponível, alimentando-o com o que lhe resta pra sobrar apenas  autopiedade e cocaína.
É BRILHANTE! A luz do celular na madrugada com o saldo de dois reais na sua conta, você vai ter que pedir ajuda da sua tia de novo, porque você brigou com seus pais, seria muito humilhante voltar pra casa com o rabo entre as pernas.
0 notes
Text
turvo
o último cigarro. últimas moedas no bolso furado. olho-me no espelho e vejo minha cara deformada. dou risada. gargalho. à medida que os músculos da minha face contorcem-se num riso bizarro, sinto as dores de vasos sanguíneos estourados, o inchaço acima do olho começa a vazar pus, o corte na bochecha parece abrir-se mais.
mal lembro da surra que levei ou se o outro cara está pior. a ressaca me lembra que não faz muito tempo. 
ouço batidas no portão. já faz alguns minutos, o dono da pensão me quer fora. to com aluguel atrasado, e venho dando perdido nele há meses.
parece uma situação tensa, de violência, mas sinto as coisas acontecendo na tranquilidade de um jazz calmo. o seu damião entra com uma expressão de fúria aos berros, cuspindo o resto do almoço, atrás dele está o chaveiro com uma expressão sombria.
nesse ritmo envolvente, tiro damião pra dançar com meus olhos fechados. ao sentir minhas mãos abraçarem as dele e nossos corpos encontrarem-se, sua barriga protuberante se encosta na minha e ele me empurra, grita mais alguma coisa e sinto seu punho afundar meu estômago, tudo fica preto por um instante e busco o ar que me falta. 
é como se houvesse alguém fazendo um solo de piano no ritmo dançante do jazz.
não sei o que me deu.
cai a noite na cidade. as luzes são espectros de presenças ou ausências que não alcanço. acendo meu último cigarro que já está na metade. as moedas sumiram.
0 notes