Tumgik
estestrechos · 2 years
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Compreendi algo importante hoje. Curar-me desse combate não é somente um gesto de metamorfose autocentrada. É um gesto político. Meu corpo se tornou um território onde cirurgiãs ocidentais dialogam com ursos siberianos. Ou melhor, tentam estabelecer um diálogo. As relações que se tecem no seio desse pequeno país que se tornou o meu corpo são frágeis, delicadas. É um país vulcânico, tudo pode mudar a qualquer momento. Nosso trabalho, o dela, o meu, e o dessa coisa indefinível que o urso depositou no fundo do meu corpo, consiste, de agora em diante, em "manter a comunicação". Digo que permanecer viva tanto diante do urso quanto diante "daquilo que virá" neste mundo é aceitar a retomada na forma de uma transformação estrutural. A unicidade que nos fascina aparece enfim como aquilo que ela é, um engodo. A forma se reconstrói segundo um esquema que lhe é próprio, mas com elementos que são, todos eles, exógenos.
Nastassja Martin
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estestrechos · 2 years
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A caminho do centro da cidade, estava tão inteiramente só com seu terrível erro que sentiu necessidade do estranho calor e bondade que acompanhavam o som familiar e suave de uma voz falando no meio da noite. No intervalo de umas poucas horas, ele tinha a impressão de conhecer Faber a vida inteira. Montag sabia agora que havia nele duas pessoas; que ele era, acima de tudo, o Montag que não sabia nada, que nem sequer sabia que era um tolo, mas apenas desconfiava. E sabia que ele era também o velho que conversava com ele e falava com ele enquanto o trem era sugado de um extremo para o outro da cidade noturna num único e longo suspiro nauseante de movimento. Nos dias que viriam, e nas noites em que não havia lua, e noites em que havia uma lua muito brilhante iluminando a terra, o velho continuaria com essa e aquela conversa, gota a gota, pedra a pedra, floco a floco de neve. Sua mente afinal melhoraria e ele não seria mais Montag, dizia-lhe este velho, assegurava-lhe, prometia-lhe. Ele seria Montag-mais-Faber, fogo mais água e, um dia, depois de tudo misturado e acalmado e trabalhado em silêncio, não haveria fogo nem água, mas vinho. A partir de duas coisas distintas e opostas, uma terceira. E um dia ele olharia para trás para o tolo e identificaria o tolo. Já agora ele podia sentir o começo da longa viagem, o desligamento, o afastamento da pessoa que ele havia sido.
Ray Bradbury
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estestrechos · 2 years
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Na linhagem de monstros nascidos de Fórcis e Ceto, o lugar de honra é reservado às serpentes. Os sons estridentes emitidos pela goela das górgonas ou modulados pelas mandíbulas ligeiras são exatamente os mesmos das serpentes rangendo e batendo os dentes em uníssono. A serpente, o cão e o cavalo são as três espécies de animais cujas forma e voz entram mais especialmente na composição do "monstruoso". Enquanto a "voz brônzea" de Cérbero (khalkeóphōnos) ressoa nas moradas de Hades, as erínias, quando Ésquilo as compara às górgonas, emitem grunhidos e rosnados estridentes (oigmós, muganiòs oxús); elas rosnam (múzō), como "rosna" nos Infernos o longo gemido dos homens supliciados; elas "soltam a voz como um cão", diz o poeta trágico, e o termo empregado (klaggaínō) lembra a klaggḗ dos mortos na Odisseia, como o gemido estridente (eriklágktēs) das górgonas e de suas serpentes. O cavalo, pela maneira de se comportar e pelos sons que emite, também pode representar a presença inquietante de uma Potência dos Infernos manifestando-se sob a forma animal. Ao nervosismo, à tendência a desembestar de repente em consequência de um terror súbito, como o terror provocado pela Potência demoníaca de Taráxipo, o Terror dos cavalos (tò tôn híppōn deîma), a agitar-se e tornar-se bravio a ponto de devorar carne humana, a estremecer, babar e transpirar uma espuma branca, devemos acrescentar o relincho, o barulho dos cascos pateando a terra, o ranger surdo dos dentes (brugmós) e o ruído sinistro dos freios entre as mandíbulas, provocando terror ao chamar a morte. No vocabulário equestre, gorgós tem significado quase técnico. Para o cavalo, gorgoûmai significa bater os cascos com impaciência. Xenofonte observa, em A arte equestre, que é terrível olhar para o cavalo nervoso, impetuoso (gorgós ideîn); que suas ventas dilatadas o fazem gorgóteros; que, quando se juntam em manadas, os cavalos parecem mais ardentes e fogosos (gorgôtatoi) por causa das pateadas, dos bufidos e dos relinchos multiplicados pelo grande número. —Jean-Pierre Vernant
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estestrechos · 2 years
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Os sinos da igreja localizada tão convenientemente perto da casa do sr. Utterson deram as seis horas, e ele continuava às voltas com o problema que antes só o havia sensibilizado sob o aspecto intelectual, mas que agora também engajara, para não dizer escravizara, sua imaginação; e, enquanto se agitava na pesada escuridão da noite e do quarto protegido por cortinas, a história do sr. Enfield passou em sua mente numa sequência de imagens iluminadas. Tomou consciência da enorme sucessão de lampiões na cidade adormecida; depois, da figura de um homem andando ligeiro e de uma criança correndo ao voltar da casa de um médico; os dois se esbarram e então o espírito maligno pisoteia a menina, seguindo adiante sem se importar com seus gritos. Ou visualizava um quarto na casa luxuosa onde seu amigo dormia a sono solto, sonhando e sorrindo; então se abre a porta do quarto, o cortinado da cama é afastado, acordando a pessoa que dormia — e lá está a seu lado uma figura a quem ele concedera muito poder, e mesmo àquelas altas horas o médico precisava se levantar e fazer o que lhe era exigido. A figura nessas duas cenas assombrou o advogado durante toda a noite; e, se cochilou uma ou outra vez, foi para vê-la esgueirar-se ainda mais furtiva em meio às casas silenciosas ou se mover mais e mais rápido, vertiginosamente, através dos múltiplos labirintos da cidade iluminada por lampiões, pisoteando uma criança em cada esquina e a deixando aos gritos. E, mesmo então, a figura não tinha um rosto pelo qual pudesse identificá-la; mesmo em sonhos, não possuía uma face, ou ela o confundia e se derretia diante de seus olhos; e foi assim que brotou e eclodiu na mente do advogado a curiosidade peculiarmente intensa, quase excessiva, de contemplar as feições do verdadeiro sr. Hyde. Imaginou que, caso pudesse por uma vez pousar os olhos nele, o mistério se tornaria menos denso e quiçá se extinguiria de todo, como costuma ocorrer com as coisas obscuras quando bem examinadas. Ele poderia encontrar uma razão para a estranha preferência ou servidão (como quer que a chamemos) de seu amigo, até mesmo para as surpreendentes cláusulas do testamento. E, pelo menos, seria um rosto digno de ver: o rosto de um homem sem um pingo de piedade, um rosto que bastou aparecer para gerar, na mente impressionável de Enfield, um sentimento de ódio imorredouro.
Robert Louis Stevenson
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estestrechos · 3 years
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— Mas eu falo, sim — gritou Flann. Eu falo porque tu não quer entender e não quer ver, e fica fugindo que nem um padreco, porque temos que resolver isso entre nós, no fundo e de uma vez por todas, tanto faz o resultado, tem que ser fundo, tanto faz o resultado, entende? Porque não dá pra continuar desse jeito! Tu nasceu na cabana junto comigo, e tu é fruto do Wiglaf e da Mahaute, como eu e os outro, mas tu também não é, tu é como se tivesse saído dum ovo de cuco, e é diferente da gente, no corpo e na vida, uma coisa insuportável de diferente, sabe lá o Diabo o que é, e tu se deu ao luxo de ser um tipo diferente, uma coisa mais fina, mais alta... Como se tu não soubesse! Mas tu é atrevido a ponto de saber, sim, e atrevido a ponto de ainda ser simpático com a gente! Se tu fosse abusado com a gente, isso seria muito menos atrevido! Tu é o filho divino do abade, que te pegou fedelho e te tirou da cabana, e porque é metido te levou pro mosteiro com seis anos, te ensinou as letra e as ciência e a fala limpa dos padreco, mas tu sempre vai ter com a gente lá e faz a gente ver que tu não quer que se perceba... Tu fala que nem nós, mas com a tua boca fina, o que não dá pra aguentar, porque só dá pra falar como gente pobre com boca de pobre, e se tu faz isso com a boca fina, é escárnio! Tu é um escárnio, no corpo e na vida, porque tu bagunça o mundo e confunde as diferença. Se tu fosse um irmão de reza magrelo, fininho, um religioso meio mulherzinha, sem coragem nem peito pra nada, então um sujeito direito podia dizer: "Bom, tu é fino e eu sou forte, assim são as coisa, não te bato, e que tua fraqueza seja sagrada!". Mas de algum lugar tu rouba ousadia e tu é bom no esporte, que nem eu, tão bom quanto eu, que sou forte mesmo, mas tu é forte pela fineza... Isso não dá pra um sujeito direito aguentar, e por isso te falo: precisamos resolver isso entre nós, sem jogo e sério de verdade, aqui e agora, com os punho livre, no fundo e no extremo... É pra isso que te desafio com palavra e com chute, e tu não tem como escapar! — Não, de fato não posso — disse Grigorss, e ficou com aquele seu belo rosto, pálido-escuro, sério, o lábio superior um pouco fechado sobre o inferior. — Então queres que nós, sozinhos, sem testemunhas nem juiz, façamos uma luta com os punhos, necessariamente e indo ao extremo, até que um de nós não consiga mais lutar? — Sim, é isso que eu quero — gritou Flann, e arrancou o casaco. — Então te prepara, te prepara, te prepara, pra que eu não comece a te bater antes de tu estar pronto, porque mal posso esperar e quero me ver livre de tudo que é dever de preservar a tua maldita fineza, seu ladrão de força! Vou te estraçalhar, vou te deixar a fuça roxa, vou te afundar o estômago, vou te destruir o baço, então te prepara, pra que eu prepare a tua destruição!
Thomas Mann
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estestrechos · 3 years
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— Moço, me dá um cigarro? A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças. O importuno pedinte insistia: — Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro? Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei: — Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. — Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar. Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente: — Você não dá é porque não tem, não é, moço? O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato, somente o coelhinho falava. Contava-se acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava. Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho — acrescentei. — Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta: — Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco. Dizendo isto, transformou-se numa girafa. — À noite — prosseguiu — serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável? Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.
Murilo Rubião
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estestrechos · 3 years
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Na estrada de Niigata para Tóquio, vi uma boa quantidade de carros com bicicletas presas no teto, voltando da prova. As pessoas dentro deles eram todas bronzeadas e fortes — o típico físico de triatleta. Após nossa despretensiosa prova em um domingo de outono, estávamos todos a caminho de nossos lares, de volta a nossas vidas comuns. E com a próxima prova em mente, cada um de nós, em casa, vai muito provavelmente retomar com calma o treino usual. Ainda que, visto de fora, ou de uma perspectiva mais distanciada, esse tipo de vida pareça sem sentido ou fútil, ou até extremamente ineficiente, isso não me incomoda. Talvez isso seja uma atitude sem sentido comparável, como eu já disse antes, a derramar água em uma panela velha com um furo no fundo, mas pelo menos o empenho que você dedica a ela permanece. Se é ou não bom para alguma coisa, se parece algo bacana ou nem um pouco, em última análise o que é mais importante é o que você não pode ver, mas pode sentir em seu íntimo. Para conseguir captar alguma coisa de valor, às vezes você tem de realizar atos aparentemente ineficientes. Mas mesmo atividades que parecem infrutíferas não necessariamente terminam sendo. Essa é a impressão que tenho, como alguém que sentiu isso, que vivenciou. Não faço ideia se posso manter esse ciclo de atividades ineficientes para sempre. Mas tenho feito isso tão persistentemente por tanto tempo, e sem ficar terrivelmente cheio de fazê-lo, que acho que vou continuar fazendo enquanto puder. A corrida de longa distância (mais ou menos, para o bem ou para o mal) me moldou como a pessoa que hoje sou, e tenho esperança de que ela continue a ser uma parte de minha vida pelo maior tempo possível. Ficarei feliz se a corrida e eu pudermos envelhecer juntos. Pode não parecer haver muita lógica nisso, mas foi a vida que escolhi para mim. Não que, a essa altura tardia, eu tenha outras opções. Esses pensamentos passaram por minha cabeça enquanto eu estava no carro depois do triatlo, indo para casa.
Haruki Murakami
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estestrechos · 3 years
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Ainda são poucas as repartições públicas e empresas privadas que utilizam o computador para armazenar dados. É caro e trabalhoso. Mas as organizações religiosas que atuam em nível nacional certamente possuem recursos para implantá-los. Ushikawa não sabe quase nada de computadores, mas está ciente de que estão se tornando ferramentas imprescindíveis para armazenar informações. Frequentar a Biblioteca Nacional da Dieta e ficar o dia inteiro procurando informações em microfilmes de jornais e anuários será coisa do passado. O mundo se tornará um sangrento campo de batalha entre o gerente de computação e o hacker. Não. O termo correto não é exatamente sangrento. Apesar de, no campo de batalha, sempre se derramar um pouco de sangue. Mas, neste caso, o sangue não tem cheiro. Um mundo estranho. Ushikawa preferia um mundo em que a existência de cheiros e da dor fossem perceptíveis. Ainda que, em determinadas situações, elas se tornem insuportáveis. Mas um tipo como Ushikawa, sem dúvida, muito em breve se tornaria obsoleto. Mesmo ciente disso, Ushikawa não era pessimista. Ele sabia que possuía uma intuição inata. Graças ao seu órgão olfativo especial, ele era capaz de discernir os vários odores à sua volta e, através da dor que sentia na pele, compreender o rumo dos acontecimentos. Uma tarefa que o computador jamais conseguiria realizar. Uma capacidade que não permite ser quantificada ou sistematizada. O trabalho do hacker consistirá em obter informações acessando habilmente um computador rigorosamente protegido. Mas somente o ser humano, de carne e osso, estará apto a decidir que tipo de informação e quais, dentre várias, são realmente relevantes.
Haruki Murakami
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estestrechos · 3 years
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Tengo conteve a respiração e, apertando as têmporas com os dedos, tentou ir mais fundo em suas lembranças, seguindo o tênue fio da consciência, que poderia se romper a qualquer momento. É isso. Ali havia uma lua. Ainda faltava muito para o anoitecer, mas ali havia uma lua. Uma lua com três quartos do tamanho da lua cheia. Tengo ficou admirado de ver nitidamente uma lua tão grande em pleno dia. Disso ele se lembrava. Aquela rocha cinza e insensível parecia estar pendurada com uma linha transparente e pairava na parte baixa do céu, como se não soubesse onde seria o seu lugar. Havia nela algo que lhe conferia um aspecto artificial. Olhando-a de relance parecia uma lua falsa, teatral. Mas, obviamente, a lua era de verdade. É claro que era. Ninguém em sã consciência se daria ao trabalho de pendurar uma lua falsa num céu de verdade. De repente, percebeu que Aomame não estava mais fitando seus olhos. O olhar dela se voltara para a mesma direção do de Tengo. Assim como ele, ela também olhava a lua que pairava em pleno dia, segurando firmemente sua mão e com uma expressão séria no rosto. Tengo fitou novamente os olhos dela e notou que não tinham a mesma limpidez anterior. Aquela extraordinária limpidez fora momentânea. No entanto, naquele olhar Tengo viu algo duro e cristalino. Um olhar fascinante, mas que ao mesmo tempo trazia uma severidade que lembrava o rigor de uma geada. Tengo não conseguiu assimilar o significado daquilo. Finalmente, aquela menina parecia ter tomado uma decisão. Soltou a mão de Tengo e, dando meia-volta, saiu rapidamente da sala sem dizer uma única palavra. Sem sequer voltar-se para trás, ela o deixou num profundo vazio.
Haruki Murakami
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estestrechos · 3 years
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A matemática era um meio eficaz de fuga para Tengo. Ao se refugiar no mundo das expressões numéricas, ele conseguia escapar dessa incômoda jaula chamada realidade. Desde pequeno, descobriu que bastava mudar o interruptor mental para facilmente se transportar para esse outro mundo. E descobriu que, nesse universo de ilimitadas coordenadas, ele tinha total liberdade para explorá-lo, desde que tivesse a disposição de andar de um lado para o outro. Ele caminhava por corredores sinuosos de um edifício gigante, abrindo as portas numeradas, uma a uma. Ao se deparar com um novo cenário, os vestígios desagradáveis do mundo real se dissipavam por completo. Para Tengo, o mundo regido pelas expressões matemáticas era um ambiente íntegro e seguro para se esconder. Ele conhecia a geografia desse mundo mais que ninguém, e era capaz de escolher com precisão o percurso correto. Ninguém conseguia alcançá-lo. Enquanto estivesse no mundo de lá, ele podia ignorar as regras e esquecer o fardo imposto pelo mundo real. Se para Tengo a matemática era um grandioso edifício fantástico, o mundo das histórias de Dickens era uma densa floresta encantada. A matemática o conduzia aos céus; já a floresta era algo que se expandia silenciosamente diante de seus olhos. Como uma raiz robusta, fincava-se nas profundezas da terra. Um local sem mapas e sem portas numeradas. Durante o primário e o ginásio, Tengo mergulhou de cabeça na matemática. O que mais o fascinava era a clareza e o sentimento de liberdade, coisas imprescindíveis em sua vida. Mas, ao atingir a puberdade, começou a ter um sentimento crescente de que aquilo era insuficiente. Enquanto estava no mundo da matemática, nada de errado acontecia. Tudo era conforme o previsto. Nada poderia obstruir-lhe o caminho. No entanto, ao se distanciar desse mundo e retornar ao mundo real — não podia deixar de voltar —, Tengo novamente se via dentro dessa lamentável jaula de sempre. A situação continuava a mesma, sem nenhuma melhora. Aliás, pelo contrário, a impressão era de que as algemas lhe pesavam mais. Sendo assim, para que servia a matemática? Seria apenas um subterfúgio para fugir temporariamente deste mundo? Ou ela apenas servia para piorar ainda mais a situação do mundo real? À medida que essas dúvidas aumentavam, Tengo resolveu se distanciar da matemática. Assim, a floresta de histórias passou a exercer uma atração ainda mais intensa sobre ele. É claro que ler histórias também não deixava de ser um tipo de fuga, pois, ao fechar as páginas do livro, era preciso voltar ao mundo real. No entanto, certo dia, Tengo percebeu que o retorno do mundo das histórias não era tão frustrante quanto o do mundo da matemática. Mas por quê? Pensou seriamente e chegou à seguinte conclusão: na floresta de histórias, independentemente de elucidar as intrínsecas relações entre os fatos, não há como obter uma resposta clara. Esse era o ponto que a distinguia da matemática. A finalidade da narrativa, em linhas gerais, é desenvolver um problema colocando-o sob outro parâmetro. Conforme a maneira de se expressar e o sentido dessa colocação, a própria história é que vai sugerir algumas respostas possíveis. Era com essas sugestões em mãos que Tengo voltava para o mundo real. Era como se trouxesse consigo um pedaço de papel com palavras mágicas a serem decifradas. Às vezes essas palavras eram incoerentes e, de imediato, não serviam para nada. Mas, mesmo assim, elas continham uma possibilidade. A de um dia conseguir desvendá-las. Era justamente essa possibilidade, vinda de seu âmago, que lhe aquecia o coração.
Haruki Murakami
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estestrechos · 3 years
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25 de maio Vejo, na revista alemã Burda, um anúncio das porcelanas de Delft, com o seguinte texto, em meio a uma seleção de jarros e outras peças elegantes: “Não olhe antes o fundo do objeto. Evite reações estereotipadas de admiração ou confiança. Os produtos de Delft se impõem pela sua beleza e qualidade”. Curiosamente, repete esse anúncio o que afirma o teórico romano Bruno Molisani, em estudo sobre poema de Hugo (Escrito na vidraça de uma janela flamenga). Molisani, aí, dá por demonstrada, há muito tempo, “a vantagem, para o analista, de não levar em conta o nome do autor, o que impede reações estereotipadas de admiração ou confiança”. Creio então necessário perguntar — levando ainda em conta o que me dizia A. B. — se não errarei em desprezar um conceito igualmente firmado nos estudos literários e na publicidade da faiança de Delft, ocupando-me de Julia Marquezim Enone (melhor, do seu livro), eu, que não só sabia e sei o seu nome, como ouço-o repetir-se tantas vezes em mim, dado que fomos amantes. Não estará o meu depoimento desde já condenado à parcialidade, ao malogro, tendo eu de incidir, devido à minha antiga condição, em “reações estereotipadas de admiração ou confiança”? 26 de maio Posso indagar ainda: assente que o autor não existe, teria eu sido amante de ninguém?
Osman Lins
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estestrechos · 4 years
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O templário leu, então, o seguinte: Eu, Wamba, filho de Witless, bôbo de Cedric de Rotherwood, chamado o Saxônio, nascido pobre e livre; e eu, Gurth, filho de Beowulph, guardador de porcos… — Enlouqueceste? — exclamou Front-de-Boeuf, interrompendo a leitura. — Por São Lucas! — respondeu o templário. — Tudo isso está aqui escrito! E continuou a leitura: …eu, Gurth, filho de Beowulph, guardador de porcos do dito Cedric, acompanhados de nossos aliados e confederados, que fazem causa comum conosco nesta contenda, isto é, o bravo cavaleiro até agora conhecido como Le Noir Faineant, e o valente yeoman Robert Locksley, cognominado Rachador de Varas, a vós, Reginald Front-de-Boeuf, e a todos os vossos aliados e cúmplices, quaisquer que sejam, fazemos saber o seguinte: como vós, sem motivo plausível e sem declaração de guerra, injusta e violentamente, vos apoderastes da pessoa de nosso amo e senhor, o referido Cedric; bem assim como da pessoa de uma nobre dama, de elevada estirpe, Lady Rowena de Hargottstandstede; e de um homem também de nascimento nobre e livre, Athelstane de Coningsburgh; e ainda da pessoa de certos homens livres, seus cnichts; assim como de certos guardas e escravos seus; e de um certo judeu chamado Isaac de York, juntamente com a sua filha, a judia, e certos cavalos e mulas — pessoas nobres essas que, com os seus guardas, escravos, cavalos, mulas, judeu e judia acima mencionados, estavam todas em paz com sua majestade, viajando por uma estrada real; impomos e exigimos que as nobres pessoas referidas, isto é, Cedric de Rotherwood, Rowena de Hargottstandstede e Athelstane de Coningsburgh, com os seus guardas, escravos, cavalos e mulas e o judeu e a judia já mencionados, juntamente com todos os seus bens e pertences nos sejam entregues, a nós ou a quem encarregarmos de os receber, uma hora depois da recepção desta, sem nenhum dano físico ou em seus bens e pertences. Deixando isto de ser cumprido, nós vos fazemos saber que sereis por nós julgados como bandidos e traidores, e que nos lançaremos sôbre vós em batalha, assédio, ou de qualquer outra maneira, empenhando-nos por todos os meios em vos molestar e destruir. Pelo que, rogamos a Deus que vos tenha em sua santa guarda. Assinada por nós na véspera de São Withold, debaixo do grande carvalho de Hart-hill Walk, e escrita pelo santo capelão, servo de Deus, de Nossa Senhora e de São Dunstan, na Capela de Copmanhurst. [...] Sir Reginald Front-de-Boeuf e os nobres cavaleiros, seus aliados e companheiros, não recebem desafios das mãos de servos, escravos ou proscritos. Se a pessoa que se faz chamar Cavaleiro Negro tem realmente direito às honras da cavalaria, deve muito bem saber que se degrada em companhia da gente que o cerca, e que não tem credenciais para pedir contas dos seus atos a homens da nossa hierarquia. Quanto aos prisioneiros que fizemos, pedimo-vos, por caridade cristã, que lhes envieis um sacerdote para ouvir a sua confissão e reconciliá-los com Deus, pois é nossa intenção inabalável executá-los esta manhã mesmo, antes do meio-dia, de modo que as suas cabeças sejam colocadas sôbre as nossas muralhas, para que todos saibam do pouco ou nenhum caso que fazemos dos que se propuseram socorrê-los. Portanto, como vos dissemos acima, pedimo-vos que lhes mandeis um padre para os reconciliar com Deus, que é o único serviço terreno que lhes podeis prestar. Essa carta foi entregue ao escudeiro, que a levou ao mensageiro que aguardava fora a resposta ao desafio. O yeoman, tendo cumprido assim a sua missão, voltou ao quartel-general dos aliados, estabelecido, nessa ocasião, debaixo de um venerável carvalho, três tiros de flecha distante do castelo. Lá, Wamba e Gurth, em companhia do Cavaleiro Negro, de Locksley e do jovial eremita, esperavam com impaciência a resposta do cartel. A pouca distância achavam-se reunidos muitos bravos yeomen, cujos trajes campestres e semblantes afeitos às intempéries revelavam a natureza dos seus afazeres. Mais de duzentos já ali se encontravam, e outros ainda chegavam a todo momento. Os que êles reconheciam como chefes, distinguiam-se apenas dos demais por uma pena prêsa ao gorro; o vestuário, as armas e o equipamento que traziam eram em tudo iguais aos dos outros. Além dêsses grupos, uma outra fôrça, menos regular e mais mal armada, composta de camponeses saxônios das aldeias vizinhas e de servos e escravos dos extensos domínios de Cedric, já havia também chegado, para auxiliar a libertação do seu amo. Poucos, dentre êles, possuíam mais do que as suas rústicas armas de trabalho, que se convertiam, às vêzes, em instrumentos de guerra. Traziam, principalmente, foices, enxadas, pás e outras peças de agricultura, pois os normandos, adotando a política habitual dos conquistadores, não permitiam que os saxônios vencidos usassem armas. Êsse bando, pois, não era muito de recear por parte dos sitiados, mas aumentava consideràvelmente, pelo número e pelo vigor dos seus componentes, a fôrça dos sitiantes, animando, ao mesmo tempo, os que se achavam empenhados em tão justa causa. Foram os chefes desse pequeno e heterogêneo exército que receberam a carta do templário. —Walter Scott
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estestrechos · 4 years
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O pai de Zaki não sabia de sua existência, e nem a irmã. O consulado de Angola não havia conseguido entrar em contato com eles até então. A vida, para Donamingo, tinha de ser apenas o que se passava em sua frente: a presença curta do filho, que ela tentava expandir para durar na ausência. Guilen e Muxima eram ausências longínquas demais, remotas, presentes em uma memória muda, apenas, e no entanto por trás dos gestos, por trás de cada gesto daquela mulher negra, alta, forte, mas tão menor que si mesma. Ela tinha um medo constante de que viessem lhe dizer a qualquer momento que ele havia morrido. Cada instante era incrustado desta terrível possibilidade e, se acontecesse de Zaki não aguentar, ela não teria nem como saber de imediato. Cada som a sobressaltava, cada instante de sono era uma conquista provisória da exaustão, toda ela se voltava para os barulhos em volta que pareciam poder anunciar a qualquer momento a morte de seu filho. Não conseguia comer. O tempo parecia feito de uma matéria espessa por onde transitavam os sons, todos ameaçadores. Quando estava diante dele, no entanto, o tempo se dissolvia. Ela cantava, ela o tocava, ele estava vivo e ela também. Zaki vingou. Depois dos eternos três meses, ainda mirrado, frágil, amolecido, como se todo o seu tônus estivesse fora dele, em sua mãe, ele saiu da incubadora e, depois, do hospital. Sua nova casa era dentro dos braços de Donamingo, um calor de verdade, embalado pelo som constante de sua voz — dentro da prisão, na ala das puérperas do CHSP.
Natalia Timerman
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estestrechos · 7 years
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Jamais nos satisfazemos com o retrato daqueles que conhecemos. Por isso sempre tive pena do retratista. Raramente exigimos de alguém o impossível; mas não deixamos de fazê-lo quando se trata do pintor. Dele se espera que apreenda em sua obra a relação do retratado com as pessoas, bem como suas inclinações e aversões; não deve representar apenas o modo como ele mesmo vê uma pessoa, mas o modo como cada um de nós a compreende. Não me surpreende ver que esse tipo de artista paulatinamente se endurece, tornando-se indiferente e caprichoso. Esse detalhe seria irrelevante se não nos impusesse a renúncia ao retrato de pessoas tão preciosas e queridas. Verdadeiramente a coleção do arquiteto, com suas armas e velhos utensílios soterrados com o corpo, sob montes de terra e blocos de pedra, mostra-nos o quão inúteis são as precauções que o homem toma para preservar sua personalidade após a morte. Como somos contraditórios! O arquiteto confessa ter aberto ele mesmo esses túmulos de nossos antepassados, e, contudo, continua a se ocupar de monumentos para as novas gerações. Por que tomamos o assunto tão a sério? Deve durar para sempre tudo aquilo que fazemos? Acaso não nos vestimos pela manhã para, de noite, novamente nos despirmos? Não viajamos para um dia regressar? E por que não deveríamos almejar o descanso junto aos nossos, ainda que o seja por um século apenas? Quando contemplamos tantas lápides fundidas à terra, gastas pelas pisadas dos fiéis no interior da igreja, e as próprias igrejas derruídas e tombadas sobre as sepulturas, podemos imaginar o além-morte como uma segunda vida a que acedemos apenas por meio do retrato e da inscrição, uma vida em que nos demoramos mais do que na vida realmente viva. Mas também esse retrato, essa segunda existência, cedo ou tarde desaparece. Assim como o faz em relação aos homens, também em relação às tumbas o tempo não abdica de seus direitos.
Johann Wolfgang von Goethe
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estestrechos · 7 years
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Bento deixou o cantador. Era noite. Uma ou outra casa do Açu tinha luz acesa. A noite escura. A loja do coronel Clarimundo estava aberta, e na porta do major Cleto havia gente na conversa. Teve medo de passar por lá, de ser visto. O olhar dos outros lhe fazia mal. Todos o odiavam. Os fanáticos tinham pegado o tenente Maurício, mesmo na terra em que ele estivera castigando os seus. Os urubus que comiam os bois mortos de Bentão tinham comido o tenente Maurício e a força. Ele, Bento, devia era estar com o povo da Pedra. Mas Dioclécio não tinha visto um milagre sequer. O santo embebedara o povo com as promessas, com a felicidade de todos, com a igualdade do mundo. Podia ser como da outra vez. E o sangue dos sertanejos derramado na caatinga. E tudo ficaria na mesma desgraça. Não podia acreditar. Aí Bento sofria mais. E no seu quarto pensava então no fim de tudo. Teria que morrer. Teria que se acabar. Domício era do santo, só do santo. Ele nem tinha mais a mãe, que o punha acima de tudo. O padre Amâncio se acabava. Maximina iria com d. Eufrásia, e o mundo vazio para ele. Não dispunha de força para pensar no mundo, que não fosse a Pedra Bonita e o Açu. O mundo era aquilo, cercado de ódio, de vingança, de sangue, de cangaço, de sofrimento. D. Fausta procurara o seu corpo, quisera-o, se pusera em cima dele. A cara dela com aquele jeito na boca nunca mais se fora da sua memória. Devia ter voltado para a mulher. O major não morreria. As mulheres da rua da Palha se foram. Deram risadas, mangaram dele. Domício fora a maior coisa de sua vida. Nas noites de medo, acordava-o, batia nos punhos de sua rede: "Bentinho, tu não estás ouvindo?" Era o canto da cabocla nua que o irmão ouvia, vindo dos confins para tentá-lo. Dioclécio voltara e perdera tudo para ele. O grande homem era igual aos outros. Para ele, Antônio Bento, não havia jeito. E o outro mundo? O que havia no outro mundo? Não acreditava e acreditava ao mesmo tempo. E Bento não dormia. Vinha com aquela ânsia há dias, sofrendo as influências mais desconcertadas. Ia para Aparício, voltava para Domício, ficava com o padre Amâncio. Não havia lugar que lhe desse pouso. O Deus do santo visível, agindo, curando, arrebatando Domício e sua mãe. E o Deus do sacrário quieto, escondido no vinho e no pão do catecismo. Ele queria era uma força que dominasse a força de sua agonia, que enchesse o seu coração com a sua presença. Até Dioclécio não existia mais. Fora-se na manhã do outro dia e não lhe deixara nenhuma saudade. Bento era só e odiado, cercado de ódios. Joca Barbeiro, o escrivão Paiva, o major Cleto, todos queriam segurá-lo, mandar para o Recife o irmão de Aparício, do beato Domício, para que todos lá vissem um monstro da Pedra. Todo aquele Açu para ele merecia a sorte do tenente Maurício. Se o povo da Pedra descesse, rolasse sobre todos, esmagasse tudo, a igreja, a casa de d. Fausta, o sobrado, a tamarineira, fizesse tudo em poeira! Tudo destruído, acabado. Só assim ele poderia liquidar aquela ânsia que não o largava. Só a morte, só morrendo, acabando com ele, destruindo-se. O padre Amâncio quase não saía mais da rede. Bento ia vê-lo, e de vivo ainda no seu padrinho só havia os olhos azuis.
José Lins do Rego
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estestrechos · 8 years
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As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a sequência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas.
Italo Calvino
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estestrechos · 8 years
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A Artista Viajando Incognita
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