Tumgik
guiadenudes · 4 years
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Reflexões: contemplar na era do scroll infinito
Esse é o primeiro post na categoria “reflexões”; especulações e vivências relacionadas ao universo dos nudes. Todas as pinturas do post são reproduções de obras do Magritte. Espero que gostem :)
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E então fez-se a luz. Brilhando contra o rosto do vivente no breu da noite, a tela do celular exibe a imagem de um corpo. Nesse momento, um corpo habita dois espaços ao mesmo tempo. O fim, o meio e a origem. O corpo está quando tiramos a foto, agora, e na mente de quem o contempla lá, no futuro. Quem passa horas tentando tirar o nude perfeito sabe. No momento da captura, as emoções de quem a vê talvez já existam em uma projeção de expectativas para quem tira a foto. A escolha do que se enquadra. É o futuro e o passado habitando o presente, trigêmeos. Ou um ménage. E a gente sempre preocupado em explicar as coisas pelas leis da física - ah, as mundanidades. 
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Penso nessas coisas bestas quando entro em estados de contemplação. Coisa nova, nem tão nova assim. A contemplação me escapou depois que a vida de adulta me engoliu. Mesmo nos momentos de ócio, existe um video no background, uma série da Netflix, um podcast para ouvir lavando a louça. Me abstenho da atividade de realmente fazer nada. Salvo aqueles 20 minutos de meditação diários, construídos à custo de muitos meses, onde ainda sim ocupa-se da atividade de meditar. Que não é o mesmo que ócio, ócio de verdade. Focar, desfocar, relaxar e encontrar a paz interior continuam sendo sempre uma busca. Um exercício mesmo quando o único foco é respirar. O isolamento social me trouxe de volta os estados de contemplação genuínos, aqueles que vem sem o esforço. Deitar no chão de barriga para cima e ficar olhando o teto. Deixar a mente desenrolar solta, sem aquela ânsia de lembrar de algo que não foi feito ou sofrer por algo que se tem procrastinado. Numa dessas, olhei para um passado nem tão distante e pensei no ato de tirar fotos de mim mesma, de criar gifs animados em preto e branco, a imagem dos meus seios balançando e porque caralhos aquilo me pareceu interessante para mandar para alguém. “Olha, pensei em você e fiz esse gif”.  
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No último domingo eu entrei nesse estado contemplativo algumas vezes. É difícil não se preocupar, não pensar na louça lavada para guardar, mas é mais fácil relaxar com a louça lavada. A gente se vira e descobre o caminho. As coisas nunca estão cem por cento perfeitas como a gente imagina, mas suspeito que a perfeição mora na aceitação - e isso fazia a contemplação ser mais fácil quando eu era mais nova. Não era a ausência dos boletos, como eu sempre pensei, mas arrisco dizer que tem algo a ver com aceitar o presente tal como ele é aqui e agora. Parece bem estranho pensar em uma adolescente satisfeita com a vida, mas a questão não é exatamente satisfação; é a consciência sobre aproveitar o momento, estar presente de verdade. Na minha contemplação de domingo eu deixei a mente vagar pela ideia de retratos e imagens, artistas que eu gosto. Eu não foquei nisso, só aconteceu. Fiquei pensando neles ao invés de procurar as imagens no Google, ou artigos e críticas cabeçudos sobre as peças. E percebi que tenho uma memória muito viva das obras do Magritte, um belga pós-impressionista, surrealista, já morto há muito tempo, cuja obra mais conhecida é um cachimbo com uma mensagem dizendo que aquilo não é um cachimbo.  Ceci n’est pas une pipe. Mas a obra dele que mais me intriga é o ‘La réproduction interdite’, “Reprodução proibida”, onde um homem contempla seu reflexo de costas em um espelho. Não deu outra, eu sentei na minha cama, abri a câmera do celular e comecei a brincar com a ideia.
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Nada de grandioso aconteceu, mas eu me diverti. E geralmente é assim que eu me sinto mais viva, mais ativa. O produto final da atividade - a imagem - não é o motivo de eu me engajar nela. Mas o caminho para realizá-la vale a pena. Se descobrir, tentar conectar elementos externos do mundo lá fora com que se passa aqui dentro, no coração e na mente. Quem passa horas tentando tirar o nude perfeito sabe.
Você já tirou um momento para contemplar a existência hoje?
A folga do pensamento dá um respiro à criatividade. E assim fazemos a luz.
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