Don't wanna be here? Send us removal request.
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mesmo após mais de trezentos anos, haeri ainda carregava um sonho. não era grande, nem cheio de esperança como os dos outros — era silencioso, quase sem forma, e talvez por isso mesmo tão persistente. ela não podia desejá-lo abertamente. o fato de saber que provavelmente nunca o alcançaria era o que o tornava mais doloroso. as palavras dele — sobre andar entre pesadelos — atravessaram haeri como uma faca afiada demais para ser ignorada. ela não o encarou imediatamente. ❝ você provavelmente está certo ❞ respondeu como se não quisesse que o mundo a ouvisse confessar aquilo. dormir havia se tornado um campo de batalha outra vez. sempre que fechava os olhos, monstros que jamais haviam sido registrados vinham dançar em sua mente, rir na sua cara, e arrastar corpos dos semideuses cuja almas ela recolhera para longe. às vezes, ela acordava sem saber se realmente foi um sonho ou mais um dia de trabalho. de vez em quando, se perguntava o que tinha feito para merecer tamanha desconsideração do deus do sono. foi quando ele tirou a pena dos cabelos que ela o olhou. a surpresa em seu rosto era discreta, sobrancelhas levemente erguidas, lábios entreabertos. ❝ pra mim? ❞ a pergunta escapou antes que ela pudesse controlar. embora receber um presente de um desconhecido fosse estranho, era rude recusar, por isso estendeu a mão, pegou a pena com cuidado e a girou entre os dedos. ❝ você acha que vai funcionar mesmo com seu pai provavelmente me odiando? ❞ ela olhou de volta pra ele, os olhos ainda marcados por uma curiosidade inquieta.
Apesar do jeito habitualmente preguiçoso, a mente daquele semideus era sempre muito ligeira e afiada. Por isso as reações corporais - mesmo que mínimas- da mulher não lhe passaram despercebidas: o tom de voz, a hesitação e o olhar curioso - que Baek lhe devolvia na mesma medida. Sem contar suas palavras, que lhe soavam tristemente sinceras. "É, mas... não seria ruim, disso tenho certeza. Não conheço ninguém que tenha um sonho ruim para si mesmo." Podia só explicar que usaram técnicas para evitar rotas mais complexas, mas conseguia presentir o sentimento negativo dela em relação a tudo aquilo. "Mas ok." Baixou a mão com o tapa olhos. "Acho que não dá mesmo para vender sonhos à alguém que já andou entre pesadelos." Completou, sendo sua vez de baixar a voz, e o olhar logo perdendo o foco novamente... Porém, voltou! Aquela conversa toda parecia uma ervilha se metendo debaixo do seu colchão, pronta para incomodá-lo e impedir seu descanso durante a noite. "Mas você parece que faria bom uso de uma ótima noite de sono. Então..." Os dez dedos foram se enfiar na cabeleira escura, fuçando entre os fios, bagunçando-os, quase como se coçando a cabeça, mas na verdade buscavam por algo. Baek parou de procurar e finalmente tirou uma pequena pena de entre os fios grossos. E foi o que deu a ela desta vez. "É do meu travesseiro." Os olhos se abriram um pouco mais, esperando que ela entendesse sem que ele tivesse que explicar. "Não vou te vender. Vou te dar."
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quando a voz suave soou, ela levou um tempo para processar. suas palavras soavam gentis demais, e aquilo sempre a deixava desconfiada. não por malícia, mas porque gentileza era coisa rara entre os vivos que ela conheceu — e, às vezes, mais ainda entre os mortos. a fala sobre gladiadores antes do almoço a fez arquear uma sobrancelha. era uma descrição precisa demais. ❝ vocês se lembram de serem pessoas… interessante ❞ não havia ironia. só um certo distanciamento. haeri não se lembrava da última vez em que se sentiu... gente. quando não era só uma extensão do trabalho que fazia. um braço da morte. uma sombra funcional. ela desviou o olhar, incerta se conseguia sustentar o calor daquele sorriso. então, tentou preencher o espaço com algo que não soasse tão estranho quanto ela se sentia. ❝ não entendo muito bem a magia disso ❞ seus olhos retornaram à garota, curiosos, cautelosos. ❝ mas acho que a maioria concorda com a senhorita… então acho que o festival está cumprindo seu papel ❞
Bonnie estava agachada cuidadosamente, como uma gata elegante que decidiu brincar sem descer do salto, amarrando o colar de contas que acabara de montar. Algumas miçangas escorregaram dos seus dedos enluvados, e ela soltou um “Oops” baixinho antes de rir. Quando ouviu a voz próxima, levantou os olhos curiosa e encontrou Haeri. A estranheza no rosto da mulher era tão clara que Bonnie quase quis colocar uma flor no cabelo dela só pra ver se suavizava a expressão.
“— Ah, é um festival da união,” respondeu com a voz suave e um sorrisinho caloroso, como se estivesse revelando um pequeno segredo bonito. “— A ideia é fazer a gente lembrar que, apesar das espadas, das visões sombrias e dos treinos de gladiadores antes do almoço, ainda somos pessoas. Pessoas que podem colar miçangas em fio e pintar com os dedos sem motivo aparente.”
Ela se levantou com delicadeza e ajeitou a saia do seu vestido, se aproximando mais um passo, como quem queria convidar sem invadir. “— Pode parecer bobo, eu sei. Eu também achei, no começo. Mas tem algo de mágico em ver gente do acampamento inteiro rindo junto, mesmo que seja de um desastre com tinta neon. E, sinceramente...” Ela piscou seus olhos, com um sorriso divertido estampado no rosto. “— Se tudo isso for só uma desculpa pra comer marshmallow eu acho que é um belo propósito, não?”
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haeri fechou os olhos por um segundo. inspirou fundo, tentando se ancorar. quando os abriu novamente, havia um rapaz ao seu lado. ele parecia ter surgido do nada — ou talvez ela só estivesse distraída demais para notar sua aproximação. o encarou em silêncio por alguns segundos. ele tinha um sorriso bonito, isso era um problema. pessoas muito bonitas costumavam morrer das piores formas, pelo menos nas lembranças dela. desviou o olhar para o festival, onde luzes dançavam e vozes se misturavam como se o mundo não estivesse à beira de colapso. ela respondeu antes mesmo de pensar: ❝ parece... bobo ❞ e era o que parecia mesmo. como assistir a um filme antigo e mal dublado, onde tudo era exagerado, colorido e irreal. haeri se sentia deslocada, como se estivesse fora do corpo. mas havia algo na presença dele que a deixava inquieta. uma energia que fazia seus olhos quererem voltar para ele, mesmo que ela resistisse. ❝ como isso pode fazer bem pra alma? ❞ a pergunta escapou antes que pudesse segurá-la. e então ela cedeu, o encarando de verdade. os traços dele eram suaves, mas havia algo mais. uma aura que chamava atenção sem esforço, como se fosse filho de algum deus do amor. ela mordeu o interior da bochecha, incerta se queria responder. ❝ eu não sei o que fazer ❞ disse, a voz saindo mais baixa, mais honesta vulnerável do que deveria. ❝ tem muita coisa acontecendo e eu não sei como deveria agir ❞
Nate ouviu a frase ao passar por perto e, como bom pretor, desviou seu caminho sem pensar duas vezes. Com um meio sorriso no rosto e o tom de voz sereno, mas envolvente, ele parou ao lado dela, os braços cruzados de maneira relaxada. “— Sabe, geralmente quando alguém solta uma dessas em voz alta, é um convite pra conversa.” Disse, com um brilho divertido no olhar. “— E eu sou péssimo em recusar convites. Acho falta de educação.” Ele observou o rosto da mulher por um momento, notando o contraste entre ela e o caos festivo ao redor. Havia algo nela que não se encaixava e talvez por isso mesmo tivesse chamado sua atenção. “— O propósito? Bom, tecnicamente é integração, celebração, união dos Acampamentos, essas coisas que a gente coloca nos discursos. Mas, se quer a verdade... É só uma desculpa pra fazer bagunça com tinta e espetinhos de carne. Faz bem pra alma.” Ele deu de ombros, ainda com aquele ar encantador. “— E você? Tem algo que quer fazer? Além de descobrir o propósito da vida numa barraca de oficina artesanal?”
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haeri ainda estava se acostumando com a ideia de que não era, de fato, um fantasma. era fácil esquecer pelo o modo como sua presença passava despercebida por quase todos — a não ser, é claro, quando vinha buscar suas almas. nesses momentos, era impossível ignorá-la. fora deles, sentia como se não estivesse ali. então, quando percebeu que a garota estava falando com ela, levou um segundo a mais do que o normal para reagir. ❝ entendo que quiseram unir os acampamentos ❞ disse, os olhos varrendo os grupos espalhados como se procurassem rachaduras invisíveis. ❝ mas as pessoas não deveriam se importar mais com a morte iminente delas? ❞ não era ironia. havia só uma preocupação fria, sincera, latejando por trás da pergunta. observar toda aquela despreocupação lhe dava um arrepio — como se algo estivesse prestes a desabar e ninguém quisesse ver. quando a outra garota mencionou um "powerpoint", haeri franziu o cenho, sem nem tentar disfarçar o estranhamento. ❝ power... o quê? ❞ era uma daquelas palavras que pareciam tão absurdas quanto tecnológicas demais. algo que ela definitivamente não havia aprendido sendo uma ceifadora. a garota parecia animada, no entanto, determinada a mostrar aquilo como se fosse importante, então haeri assentiu devagar. ❝ tudo bem, pode me mostrar ❞
Sutton ergueu o olhar assim que ouviu a frase solta atravessar o ar, um som fora do ritmo da empolgação geral, como uma linha errada que estragava todo o código de um programa. Ela ajeitou os ombros, os olhos atentos já buscando a origem da voz. Quando localizou Haerin parada diante da barraca, com expressão tão contida quanto sua postura, Sutton se aproximou com passos calmos, segurando todas as suas anotações sobre as atrações do evento.
“— Desculpe a intromissão.” Começou, com sua entonação sempre precisa e educada, mas havia uma ponta genuína de curiosidade em seu olhar, um brilho leve nos olhos cinzentos da filha de Atena. "— Eu ouvi o que disse, e fiquei intrigada. Quando diz que não entendeu o propósito, está se referindo ao festival em si? Ou a alguma das atividades específicas?” Inclinou sua cabeça de leve, replicando involuntariamente o gesto que Haerin havia feito segundos antes. “— Posso oferecer contexto logístico, histórico ou até simbólico, se preferir. Fizemos uma apresentação para isso, e se quiser, posso pegar meu laptop para mostrar o PowerPoint.” se referiu ao objeto tecnologico que ela mesma havia construído.
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assim que viu matt, sentiu os ombros relaxarem, mesmo que só um pouco. havia algo reconfortante naquela presença. não porque a meia-irmã era leve ou alegre, mas porque era constante. as palavras de matt a fizeram erguer uma sobrancelha, quase sorrindo — quase. ❝ parece que estamos engordando carne de semideus para entregá-la aos monstros depois ❞ esse era tipo de humor que haeri entendia. direto, um pouco ácido e realista. ❝ mas com certeza a sua perspectiva é melhor ❞ respondeu, sem esconder o cansaço na voz, como se o esforço de estar ali, entre todos aqueles sorrisos e luzes, estivesse cobrando seu preço. seus olhos voltaram a varrer o ambiente por um instante, indecisos. a proposta de tentar aproveitar a fazia hesitar. não só porque não quisesse, mas também porque não sabia muito bem como. ❝ não sei… ❞ começou, franzindo levemente o cenho. ❝ estou aqui faz menos de dez minutos e já pensei em ir embora umas três vezes ❞ mas havia um tipo de lógica na ideia de matt. juntas talvez fosse diferente. talvez não parecesse tão ridículo tentar fingir que pertenciam àquilo ou só fosse menos cansativo suportar. ❝ mas… pode ser ❞ pausou, olhando de novo para a multidão, como se calculasse os riscos ❝ eu nunca estive em nenhum dos acampamento antes, então você pode escolher ❞
durante o festival, matt estava tentando se enturmar, mas, de um jeito ou de outro, acabava se sentindo deslocada. infelizmente, ou felizmente dependendo do ponto de vista, depois de se juntar aos ceifadores ela havia se tornado uma workaholic crônica — não sabia fazer mais nada além de seu trabalho. além do mais, a filha de plutão estava efetivamente evitando os semideuses romanos, principalmente os da primeira coorte. ainda era... difícil ficar perto deles. por isso, quando encontrou haeri, a garota soltou um ar que não sabia que estava segurando até agora, aliviada por ver um rosto conhecido e amigável. — se gregos e romanos vão trabalhar juntos eles precisam estar motivados, e ver que tem coisas em comum, apesar de tudo... — matt respondeu o comentário despretensioso da meia-irmã ao se aproximar, soltando uma risadinha curta. — basicamente, querem ter certeza de que ninguém vai se matar antes de os monstros aparecerem. mas, já que estamos aqui, devíamos tentar aproveitar, não? eu não tive muita sorte sozinha, mas talvez juntas a gente consiga. você... quer ir a alguma atração específica, haeri?
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seus olhos encontraram o rapaz, e por um instante ela ficou imóvel, observando. havia algo de estranho nele, uma tranquilidade quase desconectada da realidade. ela estreitou os olhos quando ele falou dos tapa olhos. o modo como explicava as coisas parecia leve demais, quase irresponsável. como se o ato de sonhar fosse simples. inofensivo.o estômago dela revirou com a ideia. haeri não sonhava com flores ou campos serenos. os poucos sonhos que conseguia lembrar eram cortados por gritos, lembranças turvas e sensações sufocantes. ela havia aprendido a temê-los. preferia o silêncio do sono raso, sem imagens, sem retornos.ela baixou o olhar para o item que ele oferecia, mas não se aproximou. ❝ eu prefiro não ver o que tem lá dentro ❞ respondeu, a voz mais baixa que antes, mas firme. os olhos voltaram ao rosto dele, estudando-o como se tentassem entender por que alguém desejaria mergulhar na própria mente daquela forma. ❝ se for ruim… é sempre horrível. se for bom… você acorda com a sensação que perdeu algo… não faz sentido… ❞
Depois de ser facilmente enganado e obrigado a ficar na barraca do chalé 15 por algum tempo, Baekhyun já tinha a mente vagando por outro universo, perdido em devaneios. Só retornou ao presente quando ouviu a voz de alguém, como se viesse de longe e o puxasse de volta. "Eh?" Os olhos encontraram o foco nas feições da mulher e Baek perdeu um tempo consideravel analisando ela antes de lembrar que deveria responder. "Ah isso aqui? São tapa olhos. Se você usar quando for dormir, vai ter um sono pesado e conseguir ver o sonho mais profundo da sua alma." Os movimentos eram lentos, quase sonolentos, quando ele ofereceu um dos itens para a mulher. "O propósito... Bom, para algo acontecer de verdade, você precisa sonhar com isso primeiro. Quer tentar? Garanto que não vai ser ruim."
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starter aberto no festival da união dos acampamentos . . .
haeri não era tão jovem quanto os outros campistas reunidos ali. carregava no corpo e no olhar um tempo diferente, distante demais daquele lugar. sentia-se fora de lugar, como alguém convidado para uma conversa cujo idioma desconhecia. ainda assim, havia um motivo para estar ali — e ela não costumava fugir do que precisava ser feito. aproximou-se da primeira barraca com passos contidos. parou diante dela, observando. os risos lhe pareciam longínquos, e as cores vivas demais. inclinou levemente a cabeça, os olhos semicerrados em concentração. ❝ hm, eu ainda não entendi o propósito disso ❞ murmurou, sem notar que sua voz se ergueu mais do que pretendia.
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THE LOVE WITCH (2016) dir. Anna Biller
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Os deuses esquecidos parecem ter um interesse especial em AHN HAE-RI, de 309 anos. Desde o início, os campistas ficaram divididos sobre ela — talvez por ser FECHADA, mas logo foram conquistados por ser tão DILIGENTE. Filha de HADES, pertencente ao CHALÉ 13, ela já sobreviveu a desafios que teriam derrubado semideuses mais experientes, por isso se tornou CEIFADORA DE TÂNATOS. Os mortais dizem que se parece com KIM JIWON, mas deve ser apenas a Névoa os enganando. A grande pergunta do Oráculo é se, agora, com a unificação dos acampamentos, será que ela finalmente conquistará uma glória que nenhum outro semideus jamais alcançou?
ato i
hae-ri nasceu no exato momento em que o coração da mãe parou. um segundo antes, não existia. no seguinte, estava completamente sozinha no mundo. levaram-na para um orfanato, onde logo descobriram que bebês podiam ser assustadores. na maior parte do tempo, era adorável, daquelas crianças de comercial de fraldas – bochechas fofas, risadas contagiantes. mas quando chorava... ninguém gostava de falar sobre isso. algo naquele som não era certo, um arrepio gelado subia pela espinha de qualquer um que estivesse por perto. as freiras tentavam ignorar, mas ficavam nervosas demais para segurá-la por muito tempo.
conforme crescia, as coisas só pioravam. as outras crianças se afastavam, os casais interessados passavam reto. havia apenas uma única pessoa que sempre esteve lá – conversando, brincando, a única que não fugia do olhar triste da garota. até que, quando hae-ri tinha sete anos, a mulher se ajoelhou diante dela e disse que precisava ir. prometeu que estaria de longe, pensando nela, pedindo que seu pai a protegesse e que um dia voltariam a se ver. então, simplesmente desapareceu. como névoa ao vento.
foi ali que haeri percebeu o motivo dos olhares estranhos. para os outros, sempre estivera falando sozinha. brincando com amigos imaginários ou, como alguns sussurravam nos corredores, com fantasmas.
ato ii
depois que a mulher sumiu, hae-ri achou que ficaria em paz. mas, é claro, não foi assim. outros fantasmas apareceram. ela tentava ignorá-los, passava reto, fingia que não via nada. alguns eram discretos, apenas caminhavam ao seu lado em silêncio; outros falavam como se ainda estivessem vivos, narrando suas histórias sem perceber que já tinham acabado. e havia aqueles que ficavam irritados – não com ela, mas com quem a tratava mal. esses eram os piores, nada mais assustador do que um fantasma furioso pregando peças nas crianças do orfanato. mas haeri nunca falava com eles na frente dos outros, já era esquisita o suficiente sem precisar reforçar o rótulo de garota que vê fantasmas.
o problema é que as visões pioraram. agora, não eram só fantasmas, eram pesadelos. sonhos sobre o fim do mundo, o fim de tudo que conhecia. até que, uma noite, acordou e encontrou fantasmas ao pé da cama. eles estavam agitados, sussurrando que ela precisava sair dali. agora. ainda meio dormindo, sem entender nada, ouviu os gritos.
ela tinha onze anos quando tudo foi arrancado dela. as outras crianças estavam caídas de formas erradas, como bonecos quebrados. as freiras rezavam, tentando salvar quem podiam. uma delas chamou os sobreviventes para um abrigo. hae-ri correu até lá, mas quando chegou à porta, a freira a encarou com puro terror nos olhos e então, a porta se fechou, deixando haeri sozinha com as criaturas.
ela gritou. pediu ajuda. rezou. mas nada aconteceu. até que três figuras gigantes surgiram do nada e despedaçaram os monstros. haeri não viu muito – estava encolhida, chorando –, mas quando levantou a cabeça, percebeu que três cães estavam ali, parados, olhando para ela. dois se viraram e desapareceram na noite. o terceiro caminhou até ela e... lambeu seu rosto. mais longe, encoberto por névoa, alguém os esperava. um homem de terno preto. hae-ri tentou correr até ele, mas antes que pudesse alcançá-lo, ele se dissolveu nas sombras.
e, mais uma vez, ela estava sozinha.
ato iii
quando os policiais a encontraram, disseram que ela era a única sobrevivente. como se ela não soubesse. as imagens daquela noite jamais a deixariam. o sangue, os corpos torcidos, a freira trancando a porta em sua cara apenas para também não sobreviver. no fundo, haeri sabia que era sua culpa.
mas ainda era menor de idade, então a solução foi empurrá-la para outro orfanato. nova cidade, novas freiras, novas crianças. mas os rumores chegaram antes dela. ninguém sobrevive a um massacre assim sem estar envolvido, era o que falavam. o bullying virou parte da sua rotina, e seu sono nunca mais foi o mesmo. acordava gritando, chorando, e isso só alimentava sua fama de estranha. as freiras decidiram que ela precisava de ajuda profissional e foi assim que haeri foi parar em uma clínica psiquiátrica. hoje chamariam de transtorno de estresse pós-traumático e depressão severa, mas eles não estavam muito interessados em entender o que se passava com a garota. o tratamento que deram eram sedativos, muitos sedativos.
haeri passou os três anos seguintes dopada, tão fora de si que mal percebia o tempo passar. mas os sonhos… os sonhos se recusavam a desaparecer. e os remédios? não faziam mais efeito. ela acordava gritando, implorando para que parassem. então decidiram que a melhor solução era isolamento, amarrada para evitar que se machucasse. por um tempo, alguém ainda entrava para vê-la. depois, nem isso. talvez tivessem esquecido dela, talvez estivessem esperando que morresse para facilitar o trabalho.
três dias. ela ficou três dias sozinha naquela cela antes que, finalmente, a porta se abrisse. mas não era uma enfermeira. nem um médico. era um rapaz que ela nunca tinha visto antes. ele sorriu, como se aquilo tudo fosse normal, e disse que era filho da deusa de três faces e que ela era como ele: uma semideusa.
ato iv
haeri não queria acreditar, porque, se acreditasse, significava que tudo o que passou fazia sentido e nada daquilo deveria fazer sentido. mas, conforme o garoto explicava – sobre os deuses, as guerras, os artefatos mágicos –, as peças começaram a se encaixar. ele a salvou e cuidou dela. pela primeira vez, haeri sentiu que estava formando um laço com alguém que vivia. às vezes, cutucava o braço dele e pedia para provar que era real. só para garantir que ele não era mais um fantasma ou fruto da sua imaginação.
o nome do rapaz era mike. ele era um caçador de recompensas que sentiu algo poderoso na clínica e encontrou... ela. o filho de hecate a ensinou a lutar, a rastrear artefatos, a vender no mercado certo, foi assim que haeri virou sua fiel escudeira, acompanhando-o em suas aventuras. ele desconfiava que ela fosse filha de hades – fazia sentido, com aqueles poderes estranhos, a forma como os monstros lidavam com ela e o fato que, às vezes, eles viam um cão infernal os acompanhando de longe, mas sem nunca interagir contra eles. mike até sugeriu levá-la ao acampamento meio-sangue, seria mais seguro para ela, mas haeri recusou. pela primeira vez, ela se sentia viva e queria se agarrar àquele sentimento. também se apegou a mike. um erro. inocente, mas ainda assim, um erro.
eles estavam em busca da lanterna de diógenes – um artefato capaz de revelar a verdade. mas o que encontraram foi uma quimera. haeri era boa com a espada que mike lhe dera, mas não boa o suficiente. o ataque veio rápido. o veneno já estava a caminho quando mike pulou na frente, sendo atingido bem no peito. eles conseguiram fugir, mas haeri não encontrou um antídoto a tempo. mike morreu em seus braços.
foi a primeira vez que ela rezou para hades: se ele fosse mesmo seu pai, se tivesse algum pingo de piedade, que não a deixasse sozinha novamente. mas não houve resposta. nenhuma voz, nenhuma sombra. apenas o silêncio cruel dos mortos. então haeri fez o que tinha que fazer e enterrou seu único amigo.
ato v
haeri vagou sozinha. matou alguns monstros, não porque queria, mas porque eles estavam lá. ela própria agora parecia um fantasma – apenas um eco. não lembrava como chegou ao topo daquele prédio abandonado, só sabia que, quando olhou para baixo, não sentiu medo. a morte já fazia parte dela, então, se o ciclo precisava acabar, que fosse agora.
ela deu um passo à frente e, no mesmo instante, uma dor lancinante atravessou seu peito. algo a arremessou para trás, seu corpo colidiu com força contra a parede. haeri piscou, atordoada, e então o viu. não era um querubim fofinho, nem um daqueles anjos de vitral de igreja. era um homem alto, de pele escura como a noite, olhos impassíveis e asas dobradas às costas. aquele era tânatos. o deus da morte.
ele disse que a morte era injusta e que ela vinha para todos, sem exceção. ela ouviu que aquelas pessoas estavam fadadas a morrer, com ou sem ela, mas não acreditou. haeri sabia a verdade. sabia que era culpada. por isso, suplicou. pediu que ele tivesse piedade e a deixasse seguir sua mãe e mike para o submundo. tânatos a observou por um longo tempo antes de falar: sim, ele faria isso, mas com uma condição. haeri trabalharia para ele até o dia em que não temesse mais a morte, até o dia em que não a desejasse. então – e só então – ele permitiria que cruzasse para o outro lado.
haeri aceitou e assim, tornou-se uma ceifadora de tânatos.
ato vi
como ceifadora, haeri vestiu o manto negro. recebeu a foice da morte. tornou-se imortal enquanto servisse a tânatos. podia se transformar em fantasma, como aqueles que via desde pequena. ela aprendeu que, diferente dos semideuses comuns, os ceifadores não pertenciam a nenhum acampamento, não juravam lealdade a um panteão, pertenciam apenas à morte, e haeri se sentia bem assim. era melhor não se apegar, não se aproximar de quem poderia morrer. então, ao invés de semideuses, ficava apenas entre os ceifadores e almas que já desencarnaram.
em seus anos de vida, viu antigos ceifadores entregarem seus mantos e viu novos se juntarem ao grupo. cumpriu cada missão com diligência, rápida e eficiente, mas nunca deixou de temer a morte, e nunca, nunca deixou de ansiar por sua vez. queria ver sua mãe. queria abraçar mike. queria pedir perdão para cada uma daquelas pessoas que viu morrer por sua causa. então, continuou trabalhando.
ela não lutou guerras. mas coletou as almas que foram perdidas. no começo, fazia no automático. guiava as almas sem se importar muito com o que tinham a falar. não queria saber de suas vidas – isso a deixava ainda mais triste. contudo, os séculos passaram e seu coração começou a se suavizar. haeri passou a ser mais gentil com as almas. começou a ouvir suas histórias, a acalmar as mais agitadas, a consolar as desesperadas, a entender aqueles que se arrependiam, mas seu coração nunca esteve realmente em paz.
quando tânatos disse que seriam obrigados a viver nos acampamentos dessa vez, ela odiou a ideia. não queria estar perto de semideuses. ela os veria cheios de vida, veria suas motivações, seus desejos, para depois ter que recolher suas almas. embora não quisesse, jamais se rebelaria contra tânatos. ela era sua seguidora fiel até o dia em que ele quisesse acabar com sua miséria.
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