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Vício
Cinco dias que o Arthur não tinha gastado dinheiro apostando, e não era por um bom motivo.
Muitos conseguiam se limitar, estipular, controlar e direcionar dinheiro para apostas – Isso dentro da porcentagem pequena de pessoas que apostavam, é claro. Mas para Arthur não era fácil, ele era jovem e faltava experiência em mexer com capital, na maior parte da vida passavam o dinheiro contado:
- “Toma aqui, a grana pro ônibus desse mês” – A mãe dele entregava a nota direto na mão, a memória era antiga, e ainda assim fresca como água.
Do fim da adolescência para o começo da vida adulta foi um piscar de olhos, fim da escola, começo no trabalho, aluguel, contas, e por fim o salário. O salário era o maior bem e o maior perigo da vida de Arthur, no começo ele gastava tudo com extrema cautela, mas depois percebeu que poderia deixar para pagar em outro momento.
Apostar em cavalos é um vício fácil, cada cavalo parece diferente do outro, une a torcida esportiva com o dinheiro. Uma única aposta te puxa para dentro do mundo, e para Arthur não foi diferente.
Daquele dinheiro que sobrava todo fim do mês, ele começou apostando um quarto, uma vitória aqui e ali o deixaram mais confiante, agora ele apostava metade, não demorou muito para que uma única vitória fizesse com que ele colocasse toda a sobra do mês naquilo. Eventualmente, as contas chegavam, e a luta contra si mesmo também:
- “Pra que que vou pagar a conta de luz, dá pra deixar até dois meses com atraso que eles não cortam.” – Cortaram a luz um mês depois.
- “Eu não preciso comer todas as três refeições por dia, uma no meio da tarde já dá pro gasto.” – O peso caiu pela metade, dava para ver os ossos na pele.
- “Não tem por que pagar plano de saúde, não vou ao hospital tem mais de um ano.” – Sangue na urina, perna direita mancando, visão periférica caindo, tudo isso em um semestre.
Agora ele nem mais apostava praticamente, o dinheiro inteiro ia para o agiota, pagando apenas o que devia. O aluguel estava atrasado, mas só por dois meses.
Ao chegar no clube naquele dia, Arthur entregou o saco de dinheiro para Marcos, o atual sanguessuga do vício em apostas.
- Tá faltando.
- É o que tem, mas mês que vem eu recebo meu bônus, vai dar pra pagar o que faltou desse mês e ainda adiantar umas parcelas que vão vir.
- É o que vamos ver.
Logo em seguida, já foi até a arquibancada assistir a um cavalo que havia o interessado. Nesses cinco dias sem apostar, tudo que Arthur fazia era analisar as corridas, afinal se ele se meteu nessa apostando, ele ia sair desse buraco do mesmo jeito que entrou.
O cavalo era um sangue puro árabe, das doze corridas que havia participado, ganhou todas e por quase quinze segundos de diferença. Mais um tiro era dado para cima, mais uma vez todos aqueles cavalos corriam pelo campo, mais uma vez o sangue puro árabe “Max” chegava primeiro. Era uma máquina de vencer, e o bilhete premiado de Arthur para fora daquela dívida.
No dia seguinte, Marcos recebeu uma proposta inesperada, porém interessante:
- Eu te dou o meu mindinho.
- Como é?
- Preciso de grana pra apostar no Max, ele é o mais potente daqui, se eu conseguir só metade do que eu devo pra você, eu quito tudo hoje, caso contrário, pode ficar com o meu mindinho.
- Hoje ele vai correr contra outro cavalo invicto, você tem certeza de que quer fazer isso?
- Sim.
- Você vai ter que quitar tudo hoje, de um jeito ou de outro, tá entendendo?
- Sim, estou ciente.
- Ainda quer esse acordo?
- Com certeza.
Um envelope bege e gordo caiu sobre o balcão, e um bilhete veio de volta, “Max vs. Hyun – Você apostou em Max”. Arthur desde que fez a promessa sentia um palpitar no coração, parecia que o órgão ia pular para fora da caixa toráxica – Que no estado físico atual, talvez fosse realmente possível. Cada hora demorava uma década, cada minuto demorava um século, cada segundo demorava um milênio.
O revólver disparava.
Todos os cavalos corriam como se fossem vultos, Arthur não sabia dizer se era a ansiedade, a desnutrição ou o espírito esportivo, mas aquela era sem dúvidas a melhor corrida que havia assistido em toda sua vida.
Max estava disputando fortemente com Hyun, um equino ultrapassando o outro várias vezes, parecia incerto o futuro, isso até que ele se concretizou. Hyun, campeão mais uma vez, invicto.
Arthur caminhava em direção a Marcos, as pernas tão tremulas que o vento seria capaz de parti-las, o corpo encharcado em suor ao ponto em que suas roupas pareciam de outra cor, sua visão embaçada de maneira que o rosto do agiota nem fosse possível de discernir de outros, porém seu cheiro de cigarro sim.
- É, não dá para ganhar todas, Arthur.
- Eu sei. Esse tempo todo, parecia mais fácil só continuar a cair, é a lei da inércia né? O que está em movimento tende a continuar em movimento. – A mão passava pela testa, tirando o excesso de suor – Nunca parei pra pensar no que fazia, porque fazer já era melhor que pensar, é uma fuga da realidade. E agora estamos aqui, eu sem dinheiro, sem casa, sem saúde, e em breve sem dedo.
- Olha, espera aí. – Marcos esfregava as palmas das mãos no rosto – Já sei. Eu deixo, abro uma exceção para o seu mindinho.
- É sério?
- Sim, vamos quitar a sua dívida hoje mesmo, sempre dá para resolver, você é um dos meus melhores clientes.
Arthur voltava para casa com um sorriso no rosto, não tinha mais a dívida, o vício poderia ser controlado agora. O dinheiro ia cair integralmente na conta, tudo ia melhorar. Não precisava mais viver de crédito, nunca mais ia ter que pedir dinheiro para apostar, talvez até mais uma refeição no dia. Ele pensava consigo mesmo na caminhada até sua morada sobre como era sortudo:
- “Quitei a dívida inteira, mantive o mindinho. Cara, que dia incrível.”
- “Tá certo que teve seu custo, tudo bem.”
- “Ah também não é pra tanto, convenhamos.”
- “Eu não preciso dos dois olhos, um já tá de bom tamanho.”
- “Rim também, tem bastante gente que nasce só com um.”
- “Pra que dez dedos, já basta o mindinho.”
A porta da casa nunca chegou a ser aberta.
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É foda.
É foda.
Duas palavras ecoam pela cabeça dele, essas duas palavras emitem uma gama de sentimentos. É foda, no sentido de: É complicado, mas é o que é; é uma angústia excruciante, mas não tem o que fazer; é algo que dói, mas só dá pra aguentar.
Existem milhares de palavras capazes de expressar sentimentos, a maioria arcaicas e estranhamente especificas, e embora tenham sua utilidade em diversos aspectos (Principalmente em situações de ironia ou sarcasmo) no fim o que mais se encaixa é a expressão mais simples, vulgar, esdrúxula e bárbara: É foda.
Ele consegue a ver pela porta, não é difícil, é algo comum. Ela tá ali, no passado e no presente, parece fácil demais apenas cruzar a porta, é fato que ninguém vai julgar, na verdade a maioria vai se identificar. Mesmo assim, o medo de perder o futuro é maior do que a força de vontade de fazer algo tão simples, quanto passar por uma porta.
O medo de fazer algo novo, o medo de fazer algo fora do normal, o medo de inovar, esse é um dos medos constantes em todo e qualquer ser humano. Sempre parece mais fácil continuar seguindo o que já está escrito, continuando a repetir o passado no presente e esperando que ele continue no futuro. O problema é que, acho que todo mundo entende que quanto mais você tenta melhorar, mais você tem que se mudar, e a certeza de que será uma boa mudança é nula. Não há como saber se a decisão que você vai fazer vai mudar tudo para melhor ou pior, se você vai destruir tudo que ama ou amar coisas novas ainda mais, esse é o risco que a parece mais fácil ignorar e não falar sobre: a potencial chance de dar merda.
Ele consegue ver ela pela porta aberta, mas toda vez que entra a porta parece se fechar um pouco mais, obrigando-o a recuar. Ela continua ali, e ele continua a querer vê-la de perto, abraçar forte e não perder mais um segundo sequer, parece que uma cachoeira cessa o correr da água e mostra um reino dourado, tão próximo quanto pode imaginar, e ao se aproximar a água volta a escoar escondendo tudo que foi revelado. A barreira tá ali, não dá pra ver até estar perto demais pra bater nela de frente com o nariz, quebrando o rosto todo e relembrando o porquê de não cruzar a porta. O verdadeiro enigma no fim é, entrar na porta e arriscar passar pelo vão no último segundo, ou esperar que ela se feche conforme o tempo passa?
O enigma é traiçoeiro, normalmente uma pergunta possui uma resposta clara, um mais um é dois, dois mais dois são quatro, o enigma não tem resposta. As vezes a porta fica escancarada, e ao correr com tudo ele bate a cara e quebra o nariz, as vezes a porta fica selada, e ao correr com tudo ela se abre e o reino de ouro vira uma realidade, e muitas vezes ele fica parado e vê a porta se fechar e ir embora na correnteza.
Dessa vez vai ser diferente, “vou correr e entrar” ele diz, “já fiz antes, consigo fazer de novo” as palavras que deviam ser encorajadoras nessa ocasião não passam de uma mentira. Lembrar do passado sempre é mais sedutor do que pensar no futuro.
Mais uma vez a porta se fecha, mais uma vez o futuro é incerto, a porta pode se abrir mais uma vez, ela pode continuar fechada para todo o sempre. No entanto, a pergunta que nunca vai calar é: “E se eu tivesse entrado?”.
E igual o enigma, a pergunta é traiçoeira, não tem resposta.
Mas duas palavras são reconfortantes nesse momento, vulgares e honestas, uma frase certa.
É foda.
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Mansão
Ali estava, a mansão no topo da colina esbanjando toda sua pecúnia, ela era tão enorme quanto lembravam, o que era estranho, visto que quanto mais você visita um lugar, menor ele parece ser.
As três pessoas circundaram os arredores dos portões, passando pelo entorno da cerca viva, até que finalmente encontraram o ponto perfeito, uma abertura esguia por entre toda aquela proteção. Os três se camuflavam no breu noturno, cada um com roupas que embora diferentes em tecido e aparência, ainda possuíam a mesma tonalidade escura com o intuito de passarem despercebidos. Um dos três portava uma mochila, a qual naquele momento havia aberto e de dentro dela retirado uma garrafa pet com um líquido, o qual esguichou por entre a passagem. Imediatamente, ouviu-se o som de faíscas por toda a cerca viva, e logo a casa inteira e seus arredores eram consumidos ainda mais pela escuridão da noite, se antes era difícil enxergá-los, agora beirava o impossível.
- Você é bem esperto para um novato, apesar de ser a quarta vez que viemos aqui, é a primeira que alguém consegue desligar a luz. – Uma voz feminina vem por baixo de uma das máscaras camufladas
- É, até que tu tá bem pra começo, mas não fica mimando ele muito não Dorothy, viemos aqui pra entrar e sair, não ficar papeando. – De outra máscara vem uma voz masculina.
- Não precisa ser tão rigoroso assim Oz, já viemos aqui antes e não tem sequer um segurança, é tranquilo. – A voz feminina responde mais uma vez
- Obrigado. – O portador da mochila agradece
Oz adentrava a cerca primeiro, retirando do bolso de sua calça uma pequena lanterna, e em seguida iam Dorothy e o iniciante.
A mansão possuía diversas portas de vidro, Oz apontava sua lanterna pelo vidro, revelando diversos pontos de luz vermelha em cada porta, atravessando em diversos padrões aleatórios e inviáveis de passar. Até chegar em um ponto onde apenas um feixe de luz rubi passava por detrás do vidro, Dorothy logo chegava, colocando um pequeno dispositivo que se grudava no vidro, um pequeno som de vidro cortando podia ser escutado, em segundos algo passou pelo outro lado do painel, um pequenino espelho de dois lados que refletiu aquele único feixe, e imediatamente todas as outras linhas de luz espalhadas pelas portas se desligaram. Oz abriu a porta e entrou na casa após deixar os outros dois passarem, o cômodo no qual haviam adentrado era a cozinha, logo em seguida o novato abriu a mochila e espalhou uma planta da casa pelo balcão entre a cozinha e o resto do cômodo. A planta estava repleta de observações, mas um ponto no centro da casa estava riscado com um marcador vermelho.
- É aqui, bem aqui tá o ouro – Ele apontava para a área demarcada – Chegar lá é meio complicado, tem dois fusíveis no canto leste da casa e o painel de controle do alarme no canto oeste, temos que desligar o painel em no mínimo dois segundos depois da energia religar, caso contrário a polícia é acionada na hora.
- Você fica com o painel então, eu e o Oz ficamos com os fusíveis.
- Ô moleque, como que você conseguiu um negócio desses?
- Um tempo atrás assaltei com o Pan um engravatado na rua, no fim o otário só tinha isso e um monte de documento inútil. Agora tem uma utilidade pelo menos.
- Agora faz sentido porque ele chamou a gente para assaltar a casa pela quarta vez. – Comentou Dorothy
- O Peter é um sem noção mesmo, vamos terminar logo o serviço. – Dizia Oz, guardando sua lanterna e pegando os fusíveis de dentro da mochila
Conforme caminhavam pela casa, Oz e Dorothy observavam que embora não tivesse uma pessoa humana cuidado da casa, a segurança tinha de fato sido atualizada em diversos pontos, nada que não pudessem dar conta, mas de certa forma isso os preocupava. Chegando em frente ao painel de energia, os dois olhavam seus relógios enquanto estavam com os fusíveis prontos para a troca.
- Seguinte, a gente desce, pega o ouro e leva pra van, quando o moleque for entrar a gente dá no pé. – Falou Oz
- Isso vai dar um problema com o Pan, tu sabes que ele não gosta de quem passa perna.
- Não te preocupa Dorothy, ele é amigo nosso mais tempo que do guri ali, não vai dar nada, além de que com todo aquele dinheiro só pra gente, quem sabe não dá pra se mudar pra uma casa igual essa.
- É, seria legal ter uma quadra de tênis.
- Então tá, vamos passar a perna nesse otário, eu te amo.
- Eu também.
Os dois se entreolhavam com paixão, ao apitar do relógio imediatamente colocaram os fusíveis no painel de energia, após aguardarem os três segundos, perceberam que o alarme não havia disparado, então foram correndo para o cofre no subterrâneo da casa, como haviam visto na planta. Alguns lances de escada os levaram para o porão, onde viram que a porta que protegia a sala em questão estava aberta, e a tranca biométrica completamente fritada. Sem nem pensar, já entraram na sala. O cômodo era extremamente confortável, com um sofá, livros, e outros tipos de entretenimento, e logo ao lado deles estava uma parede de vidro com uma sala completamente branca dentro, repleta de panos pelo chão, e em um balcão todo o ouro que procuravam. Não pensaram duas vezes, abriram a porta de vidro que estava na parede e começaram a guardar todas as barras de ouro em seus bolsos, quando não conseguiram mais, pegaram os panos que estavam no chão e utilizaram como bolsas, isso até Oz notar algo, em uma camisa que havia coletado, bem na etiqueta, estava marcado “Peter Pan”. Oz olha para trás, e por trás da parede de vidro consegue enxergar o novato.
- Sabe, é meio rude entrar na casa dos outros, sem um convite do dono. Detesto quem passa a perna.
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A Ordem
Não dava pra entender por que, mas todo dia naquele exato horário, cinco pessoas se encontravam dentro de uma sala, logo embaixo da praça. Ninguém entendia o que essas pessoas faziam, e muitos temiam perguntar, não demorou muito para que rumores surgissem:
- Eu ouvi que eles sacrificam animais em rituais religiosos! - Uma senhora de idade especulava
- Eles estão tramando um golpe de estado, não tenho dúvida, não tem como não, muito suspeito, ouvi que tem facas específicas para assassinato.- Um rapaz jovem dita
- Eles vão pra lá pra usar brinquedos secretos, que nenhum outro grande pode ver, são importados! - Uma pequenina criança informa
Apesar de tudo, ninguém tirava a limpo com os participantes o que faziam lá, apesar de todos na cidade terem completa e total noção sobre as reuniões diárias. Um menino pequeno, não possuindo mais que 9 anos, teve uma curiosidade imensurável ao descobrir sobre tudo aquilo, ele queria entender o que tanto se realizava dentro daquela sala, por que era tão secreto mas ao mesmo tempo tão aberto? Por que todo mundo tinha medo? Por que não apenas entrar?
Foi o que o menino fez, ao ver todos os cinco adentrarem o cômodo, seguiu junto. Diversos cidadãos tentaram impedi-lo ao perceberem, mas quando se deram conta, já era tarde demais. Após o fim do encontro misterioso, todos os seis saíram, os cinco e o menino. Depois desse dia, ninguém mais faltou com respeito à criança, e nunca tiveram coragem de perguntar o que de fato acontecia naquele lugar.
Não demorou muito para que uma senhora também entrasse para dentro da sala, "Não tenho nada a perder, já sou vivi demais" ela dizia. O mesmo aconteceu, ao fim do encontro, a velhinha saiu junto com os outros seis, os cinco originais e o garoto recém iniciado na ordem sigilosa.
Agora todos os cidadãos temiam a ordem, entre si havia uma enorme desconfiança, de quem poderia ser o próximo recrutado, e de quem ficaria para trás. O comércio diminuiu de tráfego, as ruas ficaram vazias a noite, as festas cessaram. A cidade apesar de estar devidamente povoada, ainda assim estava abandonada, repleta de fantasmas.
Até que chegou o dia fatídico, um rapaz jovem, na casa dos 20 anos, se dirigiu aos participantes da ordem, pegando um pelo colarinho e o colocando contra a parede, com nervos à flor da pele e lágrimas em seus olhos, gritou para que todos ouvissem:
— Já chega! Não temos mais como viver assim, sempre à sombra de vocês!
Os outros membros da ordem se viraram, extremamente assustados, tremendo completamente ao verem que uma atitude foi tomada, paralisados e pálidos em suas posições.
— Não tínhamos problemas antes, ninguém tinha que se esconder! Ninguém tinha que ter medo! Ninguém tinha que fugir!
O homem jogado contra a parede já se encontra completamente arrasado, absolutamente pálido, chorando copiosamente.
— Então, agora você vai dizer, e é melhor que seja honesto por que não vai ter outra chance! Se mentir, eu te abrir que nem um peixe, te transformar em queijo suíço! Está me ouvindo?!
Agora já havia uma multidão ao redor de tudo aquilo, todos estavam observando aquela confusão, mas ninguém intervia, a curiosidade era muito maior.
— O que vocês estão fazendo dentro dessa maldita sala? Bruxaria? Conspiração? Assassinatos?
O membro da ordem se encontrava completamente congelado, incapaz de responder, ainda completamente imóvel por tudo que estava acontecendo. O seu agressor agora levantava um punho fechado, o preparando para desferir um forte soco, gritando mais uma vez:
— Fale de uma vez homem! O que vocês tanto fazem nessa sala, e fale com clareza, para que todos escutem seus pecados!
O homem agora, completamente destruído em sua forma física e espiritual, começa a tentar falar, sua voz sai muito baixa, quase que como uma expiração, ele tenta se recompor várias vezes, até que em um esforço final, ele consegue, e com muita gaguez e dor em sua voz, ele diz:
— Al-Almoço.
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Carta
Não havia certeza alguma dentro dela, o envelope que estava na mesa permanecia lacrado. O nome estava certo, o endereço também, o selo era comum, não existia uma irregularidade sequer naquele invólucro, e era isso que a assustava.
O tamanho era regular, não era possível destacar a existência de algo fora do comum, uma carta no mínimo, duas ou três no máximo. Não tinha pelo que temer, era só papel sobre um pedaço de madeira, um pouco amassado nos cantos, áspero em seu comprimento, se machucar com aquilo seria uma conquista inesquecível.
Como algo tão simples e trivial, como uma carta podia causar tantas emoções em tão pouco tempo? Algo que atrapalhasse seu dia, não conseguia mais se concentrar em nada, e ainda assim foi capaz de passar pela rotina imperceptivelmente, sem mover sequer um centímetro daquilo que repousava em sua mesa.
O sol e a lua corriam um atrás do outro, já se perguntava se aquilo em cima do suporte de madeira era sequer real, até aquele momento parecia ser algo impossível, mas estava ali, a completa e inescusável prova, logo na sua frente. A própria presença daquilo em sua morada afrontava tudo o que havia conhecido, sessões de choro tomaram os dias, sessões de fúria tomaram as noites, e eventualmente restou apenas o medo.
O medo não era tão simples, ele nunca é. Nunca se apresenta com uma só cabeça, sempre aparece com duas, seis, nove, quantas puderem caber, e se há espaço, há de surgirem novas. O medo não era somente de abrir o envelope, isso é um ato simples e rápido, realizado em segundos, o problema era, na verdade, as suas repercussões. Caso abrisse, e tudo aquilo fosse real, o que haveria de fazer? Entrar em um estado de loucura, fugir abandonando tudo que conhecia em busca de sentido? Ou caso não abrisse, conseguiria viver sem saber o que permeia a imensidão minúscula do papel? A cada pergunta, o medo se ramificava, se expandia, se proliferava, como um câncer.
Apesar de ser forte, ainda era humana. Emoções são como um rio, quando não fluem, se acumulam em uma represa, a pressão aumenta constantemente, e quando não há mais força, as rachaduras se abrem. O medo apesar de ter sido um inimigo, fez algo que talvez ela nunca conseguisse, não por ausência de capacidade, mas sim pela presença dessa.
Ser refém da incapacidade é algo terrível, como viver em uma prisão inescapável, no entanto, até mesmo as prisões possuem seu lado bom, existe um teto sobre sua cabeça, alimento em sua barriga, segurança em seu coração. Ser refém da capacidade é algo ainda pior, errôneo está quem crê em sua liberdade, a única diferença é que o tamanho da jaula é muito maior, a cada passo dado existe uma consequência, não basta pensar no presente, é preciso digerir o passado enquanto se prepara para o futuro. A capacidade é pior que a incapacidade, enquanto em uma existe segurança, na outra cabe a você fornecê-la, e caso não consiga, toda e qualquer culpa é exclusivamente sua.
Agora o medo havia tomado as rédeas da situação, reduzido a jornada a ser realizada, deixado a jaula um caminho estreito de uma única direção. Com as duas mãos tremulas, ela pegava o envelope e o rasgava, sem tempo para mordomias, apenas força bruta e irracional.
Ao ler a carta, se arrependia de ter deixado o medo a ter controlado, era verdade, a prova era completamente fidedigna. Aquilo a fragmentava de dentro para fora, como se uma bola de metal quente percorresse todo seu corpo, sem deixar sequer uma só parte intacta.
O conteúdo da carta era irrelevante, ou pelo menos era o que ela dizia a si mesma. O que doía de verdade, era o remetente. Alguém que nunca havia pensado que voltaria a ter contato novamente, uma pessoa completamente estranha naquele momento embora no passado tenha sido uma boa conhecida, um sentimento que retornava a sua dona. O remetente dividia outra parte da carta, o destinatário.
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