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O que a vida quer da gente é coragem
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macabia-blog-blog · 7 years ago
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Carta a uma amiga
Antes de tudo, peço licença para libertar os meus white people problems. Levamos (nós duas) seis meses na Europa ouvindo que nao podemos reclamar da vida, afinal quem se queixa de fazer um mestrado no primeiro mundo? Quem pode reclamar enquanto desfruta da liberdade de andar pelas ruas sem correr risco de sofrer violência e de todas as outras garantias do bem estar europeu? O que ninguém comenta é o preço de tudo isso. Lemos mil blogs antes de vir, lembra? Nos preocupamos com cada detalhe: o que trazer, quanto precisaríamos para sobreviver, como arrumar as malas, melhor forma de transferir dinheiro, etc. Só nao encontramos nos manuais dos intercambistas a variável chamada vida. Essa variável, aliás, talvez explique porque nao consegui escrever um único post em seis meses. 
Estive esse tempo esperando alguma estabilidade emocional para conseguir contar a parte boa. Por exemplo: conheci cinco países. Fiz de Lisboa uma extensao do Brasil para me sentir mais perto de casa. Visitei um amigo querido em Amsterdam. Me emocionei com a Torre Eifel em Paris e consegui me comunicar com gente aleatória misturando palavras de inglês, espanhol e francês. Conheci a neve em um bate-volta a Segóvia com amigos muito queridos. Viajei completamente sozinha a Roma (onde fiz amizades com guias turísticos e tive o jantar mais divertido da viagem com dois padres brasileiros). 
Mas voltemos à Madrid, que é o meu turbilhao. Madrid me encantou ao mesmo tempo em que embaralhou a minha percepçao de mim mesma. Quantas vezes nao te liguei, aflita, perdida de mim? Lembro das pessoas ainda no Brasil falando que eu tinha coragem de largar tudo e vir fazer esse mestrado, e eu respondendo que coragem mesmo eu ia precisar pra ficar. Em parte, sei que isso continua verdade. Mas onde diabos eu tava com a cabeça quando achei que pudesse dar conta disso tudo aqui? Mas aí já nao sei se sou eu mesma falando ou a minha doença.
Sim, eu preciso assumir isso por inteiro: tenho depressao e ansiedade. Dizem que é a doença do século e que todo mundo tem, mas isso tudo é pra dar uma conotaçao de normalidade que nao se reflete na vida prática. A verdade é que é foda ter isso. Lembro que uma vez me perguntaram se o que eu sentia pela doença era um aperto no peito, mas a verdade é que vai muito além disso. Eu nao consigo me desconectar dos problemas nem por um segundo, o que me deixa constantemente fatigada. Me tornei uma crack em criar problemas, entao cultivo bem até aquilo que nao seria problema pra mais ninguém. E ainda que tenha essa consciencia, nao consigo ver as coisas de outra forma. A estratégia? Ficar com a parte negativa. E aí já nao sei se essa escolha é minha ou da minha doença. “Mas é tudo você”, disse o terapeuta de uma amiga que enfrenta o mesmo problema que eu. Ou seja: fudeu tudo.
O fato é que levantar todo dia já é um esforço tremendo. As crises sao paralisantes e têm sintomas físicos. Perdi as contas de quantas vezes faltei aula do mestrado pelas tonturas e dores de cabeça ou mesmo quantas vezes desmaiei sozinha no metrô e vomitei em banheiros públicos. Conheci aqui um medo que nunca havia precisado encarar e me sinto diariamente testada e trucidada. A alguns colegas, pareço desinteressada, mas o que ninguém sabe é o quanto me custa para dar esse “pouco” que é visto. Sei que se eu me permitisse falhar e nao me cobrasse tanto as coisas poderiam ser mais fáceis, mas alguém tem uma fórmula pra isso? Me pergunto todos os dias se a minha doença é mesmo real. Mas se nao fosse, o que mais explicaria o fato de eu nao ter conseguido sair da minha cama todo o fim de semana? De ver a bagunça se acumular no meu quarto e sentir que nao tenho energia sequer pra apanhar o livro que caiu no chao? De dormir 15 horas por dia porque assim nao sinto dor e desejar um remedio que me faça dormir por meses pra ver se, na volta, o mundo melhorou?
E no meio de tudo isso, o que eu tenho? 12 horas por dia num mestrado que eu sigo com muita dificuldade. Pressao. O euro saindo a 4,36 pelo Transferwise e deixando a minha conta bancária no vermelho. Pressao. A saudade de casa. A sensaçao de sufocamento por nao poder me expressar com toda a minha subjetividade em espanhol. A dúvida sobre quem eu sou. Você me disse pra eu tentar olhar pra mim mesma de fora. Pois bem, eis como me vejo: eu sou esse pequeno desastre humano, mas sou também uma incrível disposiçao pra viver. Sou extremamente sensível, mas nunca deixei de me jogar nas oportunidades por medo de sofrer. Eu sei que, no fundo, ainda sou essa pessoa, apesar das crises de pânico que tenho tido. Tudo é experiência de vida, você mesma disse. E provavelmente eu só vou ter uma dimensao melhor dessa minha fase espanhola daqui a alguns anos. Desculpa despejar tudo isso assim em você, mas eu precisava colocar tudo isso pra fora e te agradecer porque o teu telefonema hoje (e depois a tua carta) me mostrou que eu preciso sair do fundo desse poço. Aqui começa a minha escalada. Com carinho, Bea.
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macabia-blog-blog · 11 years ago
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Macabia não morreu atropelada
Odeio esperar, mas herdei de minha avó a tendência de chegar mais cedo em aeroportos e rodoviárias. Sustentada na imprevisibilidade que, sorrateira, fita as ruas da cidade, costumo sair de casa com largo tempo de antecedência. Calculo o tempo dando uma pequena folga para o improviso e vou logo para não ter que ter pressa.
No dia 16 de fevereiro foi diferente. Desgrudei os olhos do relógio para aproveitar a feirinha gastronômica com amigas queridas e, quando peguei o ônibus rumo ao Aeroporto Internacional de Guarulhos já era tarde. Perdi o voo das seis para ganhar conversas saudosas (cheias de afeto) e fui encaixada no das nove.
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Quando me sobram horas no aeroporto, sempre corro pro desembarque internacional porque vejo, ali, os mais afetuosos reencontros. Gosto de observar as faixas de boas vindas levadas por familiares, os abraços apertados, o sorriso atordoado de quem volta despedaçado, talvez ainda sem compreender ao certo que o simples ato de partir já é um compromisso eterno com a saudade. Duas vidas que seguem: uma em cada lugar. Alguém que volta para derreter a própria imagem aos olhos de quem ficou e também para descongelar a cidade que deixou. No exato momento da chegada, não há tempo para se dar conta de tudo isso. Há tambores. Batuques nervosos e gritos de guerra que falam verdades?
Mateus, cadê você? Nós viemos te receber. Paris é tão legal, Mas a família é sensacional
Gosto de reencontros na mesma proporção com que desgosto de despedidas. Prefiro finais abertos e histórias levemente interrompidas para que possam continuar sem pressões, por onde quer que elas resolvam caminhar. Talvez por conta desse amor pelas narrativas em construção tenha sido tão importante para mim guardar aqui minhas microhistórias com São Paulo. Abri esse blog agradecendo à Domitila Andrade pelo presente e vou encerrá-lo da mesma forma. Aqui, vivi a turbulência paulistana, aprendi a escrever em primeira pessoa, guardei narrativas de pessoas que marcaram minha estadia de um ano na maior cidade do País.
Macabia, que começou como um bullying literário, virou apelido carinhoso. O blog me salvou, através de uma escrita transformadora, nos momentos de saudade e de euforia. Obrigada aos que me acompanharam, aos que se inspiraram e me inspiraram nessas linhas virtuais. Isso não é uma despedida. Demorei porque mesmo uma pausa é doída. Isso é um intervalo para um blog tão orgânico que não seria capaz de sobreviver em 2014, em Fortaleza. Não se preocupem: Macabia não morreu atropelada. Só resolveu se espalhar num sertão que já estava tão espalhado dentro dela. Agora, procura outro lugar para se esparramar.
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macabia-blog-blog · 11 years ago
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Minha cabeça está em trânsito
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Tenho um desejo crescente de comer um caranguejo na praia. O que fazer com o peru que ganhei da firma? Preciso marcar o táxi pro aeroporto com antecedência. Nossa, como a Avenida Paulista tá lotada! Tudo isso por causa do Natal? Em dias de chuva e de dezembro, o metrô é um revival do Paranjana. As minhas coisas vão caber nas malas? Preciso reservar dinheiro pro excesso de bagagem. Encontrei Seu Edvaldo na Paulista: e se eu vivesse como ele? Três meses no Nordeste e outros três no Sudeste. Seria massa ó! Ah, tô com uma quase vontade de perder o voo e ficar de vez. Mas tenho um amor me esperando do outro lado e abraços de vó que não quero mais intercalar com tantos meses. Tenho escrito sobre cearenses e me inspirado de amor por aqui e por Fortaleza. E agora? Quero voltar. Por mim, eu já estava lá. Por mim, eu ficava era aqui. Tanto faz, Lorena? E quando eu desembarcar naquele mormaço saudoso, como é que vai ser? Vou comprar umas roupinhas de calor. Quero um banho de mar, mas não pode ser na Praia do Futuro. Preciso devolver as chaves de casa pra João. Melhor me livrar de mais coisas pra pagar menos excesso. Onde a bagagem é maior: na mala ou na cabeça?
  Prometo fazer o possível pra não pirar. Enquanto isso, vou deixar que Fortaleza chegue aos poucos. Ou me mostre que nunca nem foi. Vai saber... Falta pouco. Vou prender meus cabelos em coque e tomar uma água de coco na Beira Mar. Talvez eu dê uma volta de patins. Ainda tem patins pra alugar no calçadão? Se não tiver, eu como um acarajé, dou um “oi” pro Chiquim enquanto ele imita estátua na orla ou tomo um sorvete na 50 Sabores. Nos 14 anos que morei em Fortaleza, não ia sempre à Beira Mar, mas agora só penso em demorar a vista no espigão.
  Vou fechar os olhos para sentir o vento daí como se fosse a primeira vez. É patrimônio imaterial da cidade, esse vento que levanta saia na Praça do Ferreira, bagunça os cabelos da minha mãe, desnuda a sala da casa do vovô, arranca chapéu de turista e agora (espero) vai esticar meu rosto no reencontro. Avia, menina! Bora comigo dar uma olhada em Iracema? Soube que a índia foi restaurada com botox. Pela foto do antes e depois postada no Facebook, uma amiga paulistana decretou: "Celulite mesmo a estátua não tem mais não". Vou lá ver isso de perto, pisar forte com os dois pés na Praia de Iracema que um grupo massa de amigos mambembes vêm tentando revitalizar.
  Terminou o ano já. Em março, tive medo que o tempo passasse rápido demais. Passou. As noites chegam mais cedo na Fuxtia, como nós, os desgarrados neo-paulistanos, gostamos de chamar. Agora eu sou ex-desgarrada? Fui sugada de volta pela saudade de paçoca com banana? Sei não. Tô pensando em ir comer uma panelada no São Sebastião. Mara e Neno, vocês me levam? 
  Vou diminuir a velocidade do tremelique das pernas e olhar logo nos olhos de Fortaleza. Enfrentar esse medo besta de perder o fôlego. Você já viu uma cidade alongar a inspiração a ponto de te fazer parar de respirar sem nem perceber? Pois é. Mas se São Paulo pode te engolir, porque Fortaleza não poderia te tirar o fôlego? Vou logo olhar nos olhos pra não me abobalhar com as ruas planas, agora vazias pelo pavor do pessoal, e dizer: "Tu tarra linda quando te deixei. Agora tá toda nova". Como é que vai ser? Não vai ter mais pastel da esquina nem Seu Saneto mandando leite condensado do mercadinho pra gente fazer brigadeiro no São Gerardo. Sei nem como é que chega nessa tal de Sapiranga. Vai ser o jeito arregalar os olhos, mais uma vez, pra essa cidade enigmática. Vista bem aberta para tentar decifrar uma Fortaleza-esfinge: tão grande da rodoviária, na chegada de Cedro, e tão pequena do aeroporto, na volta de São Paulo.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Meus domingos com Biaggi
Nos encontramos em todos os domingos dos últimos meses. Embora nunca tenhamos trocado uma sílaba falada, nos tornamos companhia silenciosa um do outro. Ou talvez ele nunca tenha me notado por aqui, e apenas ele tenha se tornado minha companhia silenciosa. O fato é que todo domingo estamos na mesma livraria. Sentamos sempre nas mesmas mesas e já somos - de alguma forma - conhecidos pelas funcionárias. Quando chego, Juliana vem com seus cabelos negros presos em coque se certificar de que vou querer uma água com gás acompanhada de limão espremido. Quando ele chega - com seus cabelos penteados em gel, camisa gola polo rosa, calça clara e tênis - ela vai atendê-lo já se preparando para servir-lhe um capuccino grande e quente. Ficamos os dois nas nossas mesas, calados, fingindo não estar dando conta da presença do outro logo do lado.
Eu saco meu iPad da bolsa, escrevo microtextos, ouço música e converso com os amigos pela internet. Ele dedilha o seu iPhone nas pausas da leitura de livros de temas históricos ou com dicas para conquistar poder e vencer na vida. Às vezes, paro o que estou fazendo e o observo. Acho engraçado que passemos todas as tardes de domingo próximos e sequer nos cumprimentemos. Outro dia ele sorriu, eu sorri de volta. Foi só. Enquanto estou aqui, ninguém me incomoda porque sou anônima. Ele não. É conhecido das revistas de fofoca, porque faz a cabeça de famosos e posta foto nas redes sociais com a gola da camisa levantada. Daí tem gente que o reconhece e pede foto. Ele sorri para os celulares alheios, mas não levanta gola pra anônimo não.
Domingo passado eu me atrasei. Achei que não fôssemos nos ver, mas aí ele também se atrasou. Chegou mais de quatro da tarde, com a polo rosa de sempre e morrendo de fome. Pediu um café, um sanduíche com pão brioche, uma coca-cola zero e um bolo enorme de morango com chantily. Este é nosso ultimo domingo juntos. Neste, ele veio com uma polo preta. Entendi que era para fugir das coisas de sempre e troquei minha água com gás por um sorvete de creme com calda de frutas vermelhas.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Milton: o velhinho do metrô
Eu o vi em cada um dos últimos 254 dias: sentado na calçada da Haddock Lobo, carregando o celular no metrô, dividindo comida com vizinhos, dançando na Avenida Paulista, limpando fachada de lanchonete, embalando carrinho de reciclagem. Dividimos a mesma rua por vários meses, mas só hoje soube que o senhor de cabelos brancos, boné azul e bigode amarelado - que vez por outra me assustava com um cumprimento efusivo - se chama Milton.
Quando aportei no Cerqueira César, ele já estava por aqui há quatro anos. Milton mora em um carrinho de reciclagem coberto por uma lona verde. O pano é sustentado por baldes, cadeiras e outros apetrechos que conseguiu reunir ao longo de uma vida. Ele só tem conseguido se manter por tanto tempo no mesmo bairro porque adotou a estratégia de ziguezaguear as calçadas de ruas que formam o quadrado Haddock Lobo-Avenida Paulista-Augusta-Antônio Carlos sempre que algum proprietário incomodado ou a polícia lhe solicita retirada.
- Vivo como as placas tectônicas. Você sabe como é? Minha vida toda foi assim, andando de lugar em lugar.
O censo do IBGE de 2010 aponta que existem 1,112 milhão de domicílios fixos vagos em São Paulo, mas Milton não tem como ocupar nenhum deles. Por isso, estacionou sua casa móvel na Haddock Lobo. Meses depois, empurrou-a para a Avenida Paulista porque os dirigentes de um banco exigiram sua saída. Seu pecado: deixar a clientela insegura. Agora, ele mora na Paulista, ora na calçada dos Jardins ora na do Centro: uma forma de não ter que mudar de endereço novamente. Mas a qualquer momento, alguém pode chegar decretando mais uma retirada. A frequência com a qual se muda depende do prefeito e dos abastados incomodados. Por isso, faz o possível para passar despercebido. Se algum olhar o desafia, embala o carrinho e sai: “Não sou de esperar polícia”.
Milton mora em área nobre sem pagar aluguel. Ou talvez pague o mais alto preço, quando o maior ato de subversão possível é virar a cara para quem lhe olha torto.
- Eles acham que é direito deles olhar pra gente assim, só porque nasceram com situação melhor. Eu não me importo mais, mas essas crianças daqui já vão crescendo revoltadas.
Milton chegou em São Paulo há 54 anos. A mãe lhe trouxe de Crateús (CE) aos dez anos e, desde então, viu seus irmãos serem doados por falta de dinheiro. Hoje, não tem mais contato com ninguém da família, já que a mãe e os avós faleceram.
- É duro ficar sozinho? - perguntei.
- É nada! Com tudo na vida a gente se acostuma - ele me diz, levando uma bolacha maizena até a boca e lutando para triturá-la com o único dente que lhe restou.
Milton vive hoje com a ajuda dos que se solidarizam com sua condição. Quando dá, faz bicos de serviço braçal. Eu mesma já o vi carregando coisas e lavando estabelecimentos. Estar sozinho, a essa altura da vida, lhe parece sensato. Ele justifica como se fosse opção.
- Desde pequeno, aprendi que não devia fazer filho. A sobrevivência, e a subsistência, não é pra qualquer um. É pra quem tem predicado. Pra quem nasceu por cima ou pra quem tem inteligência demais.
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(Foto feita pela Nayana Melo)
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Sobre Mariana
Mariana tem um nome do meio que não sei qual é porque tenho ouvido distraído. Já o sobrenome que encerra seu RG, eu ocultei para preservá-la. Apaguei desse texto porque pensei: “Mariana já foi exposta demais. Vou escrever sobre ela, mas vou lhe dar o direito de ser confundida com uma Mariana qualquer perdida no Estado de São Paulo”. Explico meu cuidado: eu mesma não deveria saber da existência de Mariana no mundo, tanto que não posso dizer sequer se ela é morena, loira, ruiva ou careca. Mariana pode passar do meu lado agora que eu, embora saiba meia dúzia de coisas sobre a sua vida, não poderei me apresentar. Minha história com ela é também uma história de como a telefonia móvel brasileira, apressada em vender contas não desabilitadas ou sem uso há poucos meses, injeta pessoas aleatórias na vida de outras mais aleatórias ainda.
Eu soube da existência de Mariana porque ela às vezes esquece de confirmar consulta médica e pagar a conta do cartão. Soube no fim de abril ou começo de maio, não sei ao certo, já que, naquele momento, não dei importância. Afinal, eu não poderia saber a frequência com a qual ela retornaria à minha vida. Ela até tentou não fazer parte disso, e eu provavelmente não estaria escrevendo esse texto se as seguradoras de cartão excluíssem o número anterior quando você cadastra um novo telefone celular.
26 de setembro de 2013, 9:44. O código 20 da seguradora me avisa pelo celular que Mariana mudou seu telefone para um DDD 17. Achei que naquele dia ela fosse me deixar, mas não conseguiu. Na sexta seguinte, 4 de outubro, ela tentou de novo. Nada. Enquanto isso, mensagens insistentes me chegam para contar de sua vida. Mariana deve estar, agora, em uma das 118 cidades cujos telefones têm esse prefixo, ali pelos lados de São José do Rio Preto. Em breve, ela vai viajar. Comprou uma passagem pela Decolar por R$ 1009,70, às 0h42, para ir Deus-sabe-pra-onde.
Essa semana, imagino eu, Mariana tem se dedicado aos presentes de Natal. Tá bem gastando o décimo terceiro! Duvida? Depois de meses fazendo compras pingadas, ela gastou, só na última quarta-feira, a bagatela de R$ 456,01. Tudo na Novotel, Sport Line e Zara. Depois, sacou R$ 103,00 pra fazer não-sei-o-quê. Fiquei curiosa porque já era quase meia noite e não lembro de saber dela sacando dinheiro esse horário nos últimos meses.
Acho que Mariana, assim como eu, também ganhou uma amiga literalmente oculta da telefonia móvel brasileira: a Natalia. Esses dias, recebi uma mensagem que o Thiago mandou pra ela.
- Boa tarde, Natalia! Aquele dia que nos encontramos no Gna Shopping, a Paula estava dentro das aulas de dança e de muai thai da academia. Acabou desencontrando de você. Uma pena, mas oportunidades não faltarão. Poderia me informar seu endereço de correspondência, por favor? Obrigado e até breve. Thiago.
Ainda estou aqui me perguntando se devo responder. E se as oportunidades faltarem por minha culpa? Mando mensagem pra Mariana, perguntando se ela responderia? Sei não. Daqui a pouco, quando eu voltar pra Fortaleza e reduzir o uso do meu chip 11, vou virar a Mariana de alguém. Um novo relacionamento à distância que talvez ninguém nem perceba, no meio do caos que é São Paulo.
Quando eu for Mariana, pode ser que a nova Beatriz se irrite com as ligações e mensagens para a nova Mariana.
Ou pode ser que ela simplesmente ria, quando ouvir do outro lado da linha:
- Mas você tem certeza que não é a Beatriz?
Talvez, ela ainda fique em dúvida do que responder quando a moça do telemarketing perguntar, desacreditada:
- Mas você nem conhece a Beatriz?
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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O peru da firma
Fui pega de surpresa. Desacostumada com as benesses do ambiente corporativo, recebi aquela mochila verde, fechada por um cordãozinho amarelo, sem nem me tocar que ali dentro estava o grande protagonista da segunda-feira. Desamarrei o cordão e o vi: grande, gelado e com as duas pernas pra cima. Não deu outra, né? Alguém disparou a metralhadora de piada sem graça e, pelo espírito natalino, todo mundo riu.
- Você já pegou o seu peru? - Quer o meu peru? - Ah, seu peru é mole!
Depois do primeiro momento de humor libidinoso, as pessoas começaram a perceber que Peru, nosso companheiro da última semana de trabalho antes do recesso natalino, estava dificultando os planos de fim do expediente. Uma amiga disse logo:
- Vou levar o peru pra fazer prova na faculdade.
A outra fez o chefe carregar o dela pelo menos até o metrô. O ato foi como se dissesse:
- Escolheu esse presente? Agora aguenta!
O colega de cabelos espetados era o mais feliz: "Já liguei pra minha mãe não comprar peru. Estamos com a ceia garantida". Enquanto isso, a outra arquitetava o plano de como assistir um filme cult de três horas no cinema com o famigerado presente da firma.
- O peru dela vai gritar desesperado: "Me coloque logo no forno, não aguento mais esse filme" - soltou o colega de cabelos espetados.
O fato é que o peru da firma já estava mesmo inconveniente, desfazendo paquera, cinema e viagem. Trazendo problema mesmo. Até pra mim. O que diabos eu ia fazer com um peru uma semana antes de voltar pra Fortaleza? "Faz um bingo", "uma ceia na Avenida Paulista", "compra uma passagem e leva ele pro Ceará", "divide com os amiguinhos no pau de arara", bradaram os engraçadinhos. Pois visualizem a cena: eu, três malas, três caixas de cacarecos e um peru no meio do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Esse negócio não dá certo. Quer uma cena pior?
Eu, Beatriz, aproximadamente 1,55m de altura, 49Kg, uma bolsa num ombro e uma mochila com um peru do outro, andando até o metrô Consolação, às 18h de uma segunda-feira de dezembro. Fila quilométrica até a escada da estação. Fila quilométrica para a escada rolante. Fila quilométrica para entrar no metrô na linha verde. Passa um, entro no segundo trem. Não alcanço nas barras de cima e não consigo chegar até as laterais. Sinto que vou cair. O trem começa a andar. Não caio. Uma massa de gente me sustenta. Uma, duas, três estações. Não sei se desço na Paraíso ou na Ana Rosa para pegar a linha verde. O peru está pesado demais, então desço na Paraíso, a primeira, e sigo para a baldeação. Subo escada pra linha azul, desço escada pro sentido Jabaquara. Nessa altura, já existe um grupo no Whatsapp: “Amigos do peru”. Mando uma mensagem:
- Eu e o peru sobrevivemos à baldeação.
Escrevi a mensagem já entrando no trem. Imagine só a minha surpresa quando ouvi a voz do condutor: “Próxima estação: Brigadeiro. Desembarque pelo lado esquerdo do trem”. Putz! Tô voltando pra Paulista? Desço do trem. A mochila do Peru já marcou o meu ombro. Um, dois, três, quatro metrôs e nada. Fiquei na boca da próxima porta, depois da faixa amarela. Não tenho onde segurar. Uma voz sai do sistema de som: “Fique atrás da linha amarela. Não arrisque sua vida”. Eu tento, mas a multidão não se afasta. Medo de cair e morrer feito Macabéa. Volto pro fim da fila. Passa o quinto metrô. No sexto, uma velhinha me ajuda a entrar. Ufa! Paraíso de novo. Trem azul, peru gelado nas costas do pessoal, caminho aberto, assento livre. Agora, sim, sobrevivemos à baldeação. Mando mensagem pro grupo, contando minha sina. Um moço muito mal educado pesca minha conversa no celular e ri alto. Reclamo com as amigas. Uma delas escreve: “EI, PARE DE LER ESSA CONVERSA”. Ele continua rindo alto. “Oi?”, eu quase digo, interrompida pela voz do condutor: “Próxima estação: Santa Cruz”. Enfim, cheguei!
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(Na foto parece azul, mas eu juro que é verde. Aí estamos eu e Flávia felizes da vida)
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Minha cabeça nesta última semana em São Paulo
Tenho um desejo crescente de comer um caranguejo na praia. O que fazer com o peru que ganhei da firma? Preciso marcar o táxi pro aeroporto com antecedência. Nossa, como a Paulista tá lotada! Tudo isso por causa do Natal? Em dias de chuva e de dezembro, o metrô é um revival do Paranjana. As minhas coisas vão caber nas malas? Preciso reservar dinheiro pro excesso de bagagem. Encontrei Seu Edvaldo na Paulista: e se eu vivesse como ele? Três meses no Nordeste e outros três no Sudeste. Seria massa ó! Ah, tô com uma quase vontade de perder o vôo e ficar de vez. Mas tenho um amor me esperando do outro lado e abraços de vó que não quero mais intercalar com tantos meses. Tenho escrito sobre cearenses e me inspirado de amor por aqui e por Fortaleza. E agora? Quero voltar. Por mim, eu já estava lá. Por mim, eu ficava era aqui. Tanto faz, Lorena? Bem que poderiam ter me liberado do trabalho essa semana para eu me despedir com calma das ruas, do esbarrar de ombros, da frenética programação cultural paulistana, nera? Mas tudo bem. Fiquei feliz com o cartão de Natal da chefe, que caiu feito pedra pra deixar a porta aberta. É minha primeira brecha pra voltar? No mesmo dia, recebi uma ligação para um trabalho bonito, todo cearense. Logo depois, um convite pra desfilar de novo na escola de samba. Vida, amiga, você tá tão dividida quanto eu? Sei não. Ouvi no trabalho que a cearensidade tá me redominando há semanas. Que por qualquer coisa já tô pegando a minha peixeira e despejando esse humor bruto que trouxe do Ceará. Será que vou entrar no bendito avião querendo chegar logo? E quando eu desembarcar naquele mormaço saudoso, como é que vai ser? Vou comprar umas roupinhas de calor. Quero um banho de mar, mas não pode ser na Praia do Futuro. Preciso devolver as chaves de casa pra João. Melhor me livrar de mais coisas pra pagar menos excesso. Onde a bagagem é maior: na mala ou na cabeça? Prometo fazer o possível pra não pirar.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Avia, menina, dessa vida!
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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A voz que ganhou rosto esses dias
Palmilho as ruas Bela Cintra e Antônio Carlos todas as manhãs com pressa, e talvez por isso mesmo um rosto famoso aqui no bairro tenha me passado despercebido por meses. Isso não significa que desse homem eu não tenha dado conta. Dele, já conhecia bem a voz levemente aguda. Escutei-a, em tons elevados, por todos esses meses: tanto no trabalho quanto em casa.
- Ai ai ai! Ai ai ai! Ai ai ai! (...) Ai ai ai!
O grito quase diário, repetido à exaustão, virou apelido. Aiaiai é dos mendigos mais famosos do Cerqueira César. A forma como pede esmolas ou reclama dos vizinhos o incluíram no cotidiano do bairro. Quem trabalha ou mora por aqui conhece as entonações e ritmos que Aiaiai emprega na voz para pedir comida ou cigarro Carlton e, assim, garantir uma "vida boa", como ele mesmo define. 
Aiaiai tem esse nome porque grita e pede porque diz que não é trouxa pra se matar de trabalhar. Caiu na memória afetiva do bairro pelo humor de seu discurso às vezes folgado, às vezes dramático. Mesmo quando resolve despertar o bairro com berros atravessados, arranca mais risada do que insulto.
- Acooorda bando de vagabundo! São 6h da manhã. Aiaiai já tá acordado.
- Porra, Aiaiai, deixa eu dormir!
Aiaiai chegou por essas áreas bem antes de mim. Há anos, quando está com fome e os funcionários dos restaurantes lhe negam comida, ele dispara, dando dramaticidade à entonação de sua voz, já conhecida:
- Aiaiai tá com fome, mas ninguém quer dar comida pra Aiaiai.
É uma presença tão constante na rua Antônio Carlos que, quando o Google liberou para o Brasil os mapas de rua com visão em 360° do chão, em 2010, Aiaiai saiu na foto com o corpo levemente curvado para frente, camisa de manga curta azul, calça preta folgada e um depósito na mão para pedir algo a quem passa. Foi por encontrar essa imagem replicada na internet que pude reconhecê-lo na rua e dar conta de sua fisionomia. Aiaiai tem estatura média, pele morena e barba já grisalha. Como a vida não é fácil pra ninguém, vez por outra ele também cansa. Sei disso não porque tenha conversado com ele, mas porque, de vez em quando, após ouvir de vizinhos e colegas de trabalho certa preocupação pela ausência dos gritos de Aiaiai, ele volta a berrar:
- Aiaiai tá cansado. Aiaiai não quer mais ser Aiaiai.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Sobre rotina e saudade
Meu caminho de volta nasceu prematuro. Arredio às minhas vãs tentativas de adiá-lo, se instalou antes mesmo que eu tivesse tempo para me convencer da minha decisão. Nasceu prematuro para se fazer longo, pausado. Girou meu corpo para o norte assim que descobriu a consistência da minha decisão de retornar, desprezando a minha vontade de ficar o máximo de tempo possível inteira nas terras de baixo antes de voltar de fato. Agora estou aqui: ora em trânsito, ora engarrafada, no limbo dos ares que separam São Paulo de Fortaleza.
Quando o caminho de volta nasce assim, prematuro, a saudade começa a chegar antes mesmo da despedida. Provavelmente por isso, quis guardar nesse texto um pouco dos meus desacontecimentos diários e dos afetos silenciosos que cruzaram minha rotina paulistana desde que toquei os pés nesse chão de asfalto. Aqui, me descobri uma pessoa aberta para as ruas, atraindo todo tipo de gente. Mesmo continuando com os olhos voltados pra dentro, aprendi a observar mais, a ouvir mais, a sentir mais. Nesse longo caminho que é retornar, me pego ansiosa pelo tempo que vem chegando e já saudosa pelos dias que ainda vivo.
Todas as manhãs, caminho dois quarteirões por volta das 9h da manhã para chegar ao trabalho. É Flávio quem abre o portão do prédio para mim e, de longe, avisto seu bom dia de cabelos negros e pele avermelhada. Logo após cruzar o portão, encontro Seu Pedro, um senhor de pele clara e cabelos encaracolados grisalhos que, em dias de sol ou de pouca chuva, transforma a calçada em vitrine. Lá, ele coloca as orquídeas que cultiva à venda e conversa com quem passa sobre os cuidados que devem ser oferecidos às plantas.
Na volta, é a vez de Miranda abrir o portão do prédio pra mim, com o seu boa noite entonado. De vez em quando, balança a mão para me chamar até a guarita e me entregar contas, chaves ou recados. Miranda foi descobrindo meu nome aos poucos: Patrícia, Beatriz, menina e agora Bia. Esses dias, eu lhe contei que estou me preparando para voltar.
- É mesmo? Mas já? Ali é que é terra boa!
Eu concordo, mas aqui também é. Aqui tem Marluce fazendo purê de batata e feijão no intervalo da faxina só porque descobriu que sou um desastre na cozinha. Tem também Juliana, que já vai preparando o café da manhã do jeito que eu gosto quando entro na padoquinha da Haddock. Só demora o tempo de se certificar:
- Vai querer o de sempre?
Quero levar o de sempre deste ano comigo. Na impossibilidade, guardo-o nessas linhas.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Cidade Jardim e outros contrastes em São Paulo
Ouço constantemente que paulistanos adoram shoppings. Não sei se é porque aqui não tem praia ou se é pelos diferenciais dos shoppings de São Paulo. O fato é que eu, cearense matuta do interior, não dei muita atenção a essa parte. No meu tempo livre, procurei conhecer parques, restaurantes, confeitarias, museus, galerias de arte e ziguezaguear o quanto pude naquela Avenida Paulista. Pois bem: no meu décimo mês aqui, resolvi conhecer um shopping grande e, de quebra, ir ao cinema. Convidei a minha amiga Tici, jornalista cearense que tá quase fincando o pé direito em São Paulo.
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Dentre os 53 shoppings paulistanos, escolhemos o Cidade Jardim porque me disseram que o cinema era incrível. Lá, a segregação pulsa forte. Sem entrada nenhuma para pedestres, só é possível entrar no shopping de carro e, por isso, fomos de táxi. Compramos nossos ingressos para ver o filme Blue Jasmine, do Woody Allen, na sala prime. Enquanto aguardávamos a sessão, passamos horas passeando no shopping e dando conta dos preços das lojas luxuosas. Taça de 23 mil reais, casaco de 24 mil, relógios de 30 mil. Quase tudo custava quatro dígitos, salvo uma blusinha na Daslu, que estava baratinha que nem promoção: R$ 900.
Voltado para ocupantes do topo da pirâmide social, o shopping é decorado por charmosos jardins e tem uma vista linda que dá para a Marginal Pinheiros. No último andar, restaurantes e jardins a céu aberto estão cheios,assim como a casa da árvore construída ali para distrair as crianças. No andar inferior, o famigerado cinema prime. Na sala de espera, ouve-se, no burburinho, o tilintar de dezenas de brindes de espumante. A sala escura não é grande, mas tem poltronas enormes, superconfortáveis, com luminárias e botões para regulá-la. O cardápio da "lanchonete" (ou seria restaurante?) é vasto, mas fiquei com a minha pipoca com coca-cola mesmo. 
Do Cidade Jardim, guardei a vista que releva o contraste que é o próprio lugar e também revela uma forma minha de olhar pra essa cidade maluca.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Saudade, o meu remédio é cantar
Avenida Paulista, meio dia, pensamento longe. O calor paulistano, ausente de vento, já vinha me deixando saudosa no silêncio do feriado. Enquanto caminhava, me aproximando da estação Consolação do metrô, ouvi a trilha sonora mais oportuna para o meu dia: “Qui nem Jiló”, de Luiz Gonzaga me arranca lágrimas a cada escuta porque me faz mergulhar, quase instantaneamente, nas memórias de Vovô Chico. Olhei para os lados tentando encontrar de onde vinha a música. Avistei, sentado lá na frente, um senhor magro, com chapéu de couro imponente e uma sanfona preta fervorosa. Ele chamava a atenção de quem passava. Uma moça loura que andava ao meu lado se aproximou, colocou R$ 2 na lata cuidadosamente acomodada na mochila, e lhe disse:
- O senhor alegrou o meu dia. Quer uma água gelada?
- Não, obrigada. Eu tenho água aqui.
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Eu não consegui seguir. Fiquei observando. Uma morena que passava na hora também parou ali, e ficamos as duas assistindo. Quando nos viu cantando as músicas baixinho, ele parou de tocar e começou a conversar conosco.
Seu Edvaldo divide morada entre Canhotinho (PE), sua cidade natal, e São Paulo. Veio pela primeira vez para as bandas sudestinas nos apocalípticos anos 2000, com a esposa e os seis filhos. Quando chegou na cidade, teve medo até de descer do ônibus. “Meu Deus! O que eu vim ver aqui?”, pensou, tomando o cuidado de não deixar a voz escapar a fragilidade pra ninguém. Desbravou o Estado de São Paulo e orgulha-se de dizer que já tocou em “toda beira de praia” daqui. A família ficou em terras paulistanas por dois anos, mas, na dificuldade de honrar as despesas, resolveu voltar. Desde então, Seu Edvaldo está com um pé em Pernambuco e outro em São Paulo. Dos seis filhos, três já sentaram pouso por aqui e uma se mudou pro Norte. Só dois continuam em casa. Ele é o único que vive nesse meio termo: alternando três meses aqui e três lá. “Tenho uma filha em Santo Amaro, outra em Taboão da Serra, outra em Campinas, uma irmã em São Mateus. Eu venho pra casa delas, ganho um dinheirinho e vou-me embora”, diz.
Seu Edvaldo é sanfoneiro quando pode, mas pra pagar as contas costumava ser pedreiro. Sem carteira de trabalho pra provar a profissão, exibe os calos das mãos e lamenta uma queda que lhe deixou problema nos braços, interrompendo-lhe o ofício. Agora, sonha em completar, daqui a cinco meses, os sessenta anos que deverão lhe render a aposentadoria.
- É pra parar com essas viagens longas, Seu Edvaldo?
- Nã! Vou continuar lá e cá porque vou ter direito a andar nos carros de graça.
- E o senhor vem sempre de ônibus?
- Já vim de avião também. Tá mais barato de avião do que de ônibus. De avião tinha de R$ 220, mas era pra vir só no dia 20. Aí paguei R$ 330 no ônibus. A gente conhece tanto canto! Passa em Salvador, Rio de Janeiro, Minas Gerais. A gente conhece tanta coisa! Para naquelas paradas e é maravilhoso. O negócio é que demora. Já fui até de caminhão com os amigos. Bom demais!
Seu Edvaldo nunca conseguiu deixar Pernambuco de vez. Diz que é porque lá tem uma casa que cabe meio mundo de gente e um terreno grande pra trabalhar. Se fosse vender, só ia poder comprar uma casinha em São Paulo e não ia mais acordar com a esposa aguando as roseiras.
- E o que o senhor gosta em São Paulo, afinal?
- Aqui eu gosto das rodas e das cantadas que tem pra gente ir. Aqui eu ando demais. Eu já assisti Roberto Carlos em Ibirapuera e vários cantores. Eu toco lá também no domingo, mas paro com a sanfona pra ouvir os cantores que vão fazer show lá de graça pro povo no domingo. Amanhã mesmo eu vou pra lá. Eu gosto de lá (Canhotinho) e daqui. Quando tô lá, fico com saudade daqui. Quando tô aqui, fico com saudade de lá. Fico lá e cá.
Seu Edvaldo aprendeu a tocar sanfona sozinho, aos 18 anos. Fugido do pai, frequentava forró porque achava bonito.
- Eu era pivete, aí eu tinha um amigo que era sanfoneiro e achava bonito. Eu disse: “Eu vou pro forró”. Pegava um candeeiro com uma caixa de fósforo no escuro do sítio e ia pro forró. Ia sozinho, e papai ficava bravo: “Meu filho, você vai sozinho?”. Eu vou, eu gosto. Chegava lá e dizia: “Rapaz, será que eu aprendo?”. Via o cara tocando muito bonito e resolvi que ia aprender. Eu não sei ler, mas também não foi preciso. O que eu sei é de mim mesmo. Toco música de Dominguinhos, de Elba Ramalho, de tudo no mundo. Agora aprendi foi por mim mesmo. Tive boa vontade, esforcei-me e aprendi.
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Ele gosta de dizer que fez caminho semelhante ao de Dominguinhos, que também aprendeu a tocar por conta própria. Esteve em Pinheiros, pertinho da casa do músico, mas não conseguiu falar com ele em vida. Hoje, reza: “Deus coloque ele em um bom lugar porque ele aprendeu a tocar que nem eu”. Depois, desata a contar a história do ídolo. Diz que Luiz Gonzaga levou Dominguinhos da casinha de taipa onde os pais dele moravam, deu um dinheiro pra família comprar uma morada melhor, avisando que não soltava o menino mais não. Depois da morte de Luiz Gonzaga, orgulha-se de dizer que Dominguinhos seguiu seu legado. Agora, a proeza cabe aos outros sanfoneiros nordestinos.
- Todo ano, tem uma festa em Recife em homenagem a Luiz Gonzaga, dia 2 de dezembro. Deixei uma sanfona bonita pro meu menino tocar lá na festa. Lá ganha R$ 500 pra tocar duas músicas. É viagem de ida e volta, um lanche, um bonéo, uma camisa… bom demais né, minha filha? Pra tocar duas músicas. Todo ano tem. Luiz Gonzaga, depois de morto, ainda ajuda o pobre.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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De quem são as histórias que vivemos?
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Por trás dos muros alaranjados do número 1100 da Rua Natingui, na enigmática ponta de uma curva, mergulhei na memória. Cruzei aquele portão de ferro e vidro e entrei na vida de milhares de pessoas de todos os lugares do Brasil, conheci histórias de cada uma delas e reconheci uma história maior, que penso: também é minha.
Antes de continuar, preciso ser honesta: sou apaixonada pelas histórias de vida. Vejo a memória como via de explicação do que somos. Na ressignificação do que vivemos, vamos descobrindo um pouco mais sobre nós mesmos: nas pausas da nossas falas, nos nossos deslizes, no que selecionamos para não esquecer nunca, no que não conseguimos evitar de lembrar, nos nossos silêncios.
Não falo apenas da memória individual, mas da memória coletiva que escapa nas lembranças que aparentemente seriam só nossas. Essa memória rompe as barreiras do passado para revelar-se geradora de futuro. Tem importância imprescindível para que nós (e quem vier depois na cronologia do mundo) possamos compreender e significar a vida, com todos os seus conflitos e suas arestas irreparáveis.
Tenho pensado bastante nos últimos dias sobre quem é dono das histórias que vivemos. Se por um lado tenho acompanhado o máximo que posso o polêmico debate em torno da lei que proíbe biografias não autorizadas, de outro, tenho tido esse contato incrível com histórias de vida e me sentido ainda mais segura em relação à importância das memórias individuais (seja de artistas, políticos, agricultores, médicos, carpinteiros, jornalistas) para compreendermos uma história maior, coletiva.
Artistas contrários à liberação de biografias não autorizadas alegam que precisam preservar o direito à privacidade. Biógrafos argumentam pelo direito à liberdade de expressão. Eu acredito ainda no direito ao enraizamento, àquele que a escritora e filósofa Simone Weil considera "um direito humano semelhante a outros direitos ligados a sobrevivência do homem". Penso: esse debate todo não é também uma questão de identidade? De construção da nossa história?
Alguns artistas têm argumentado que as histórias vividas por eles são apenas deles e que ninguém melhor que eles próprios para contá-las. Já adianto: não existe narrativa completa porque, como bem coloca Eclea Bosi, "a história se completa em nós mesmos". Nem mesmo nós, à revelia do que diz o cantor Roberto Carlos, seríamos capazes de dar conta da complexidade que é o conjunto de todas as nossas vivências. Assim como o biografado pode trazer sentimentos que os biógrafos não captariam sem o auxílio dele, os biógrafos podem trazer apuração de dados e depoimentos que extrapolam às possibilidades do biografado. De todo esse debate (a meu ver muito mais comercial do que qualquer outra coisa), resguardo a importância da responsabilidade com o outro, mas também com a memória coletiva.
Como bem senti no Museu da Pessoa, logo após cruzar o portão de ferro e vidro, a nossa história é também é a história dos nossos conterrâneos, do nosso espaço, do nosso tempo. Todo ser humano, anônimo ou célebre, tem o direito de eternizar e integrar sua história à memória social. Procure saber, procure entender: todo mundo tem uma história pra contar, e essa narrativa, escrita por si ou por outros, é a história de nós mesmos. Nós: corpo coletivo, massa social em busca de identidade.
Por que limitar pontos de vista?
Exigir autorização para a angulação das narrativas?
Acredito que só podemos exigir responsabilidade dos narradores, e isso a lei deve garantir sem qualquer instrumento de censura prévia. O que está em jogo é muito maior.
"Acredito que a única esperança a longo prazo para a humanidade é construirmos um mundo em que se reconheça o quanto temos em comum nas nossas necessidades, medos e sonhos. Ouvir histórias de vida é um dos mais prazerosos meios de se aproximar dos outros", diz o historiador Paul Thompson.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Sobre superexigências
Eu disse a uma amiga: - A vida sempre superexigiu de mim. Ela disse: - Mas lembre-se de que você também superexige da vida. Sim. (Clarice Lispector, em "A descoberta do mundo")
Desde muito tempo, me vejo complicadora de coisas aparentemente simples. Sou uma chance à complexidade: algumas vezes por querer, outras por não ter poder de interferência. Sou das que trocavam a linha vertical única do exercício de fatoração por milhares de contas de dividir. Acostumei-me a conseguir os mesmos resultados por caminhos mais difíceis. Será que achei que assim aprenderia mais? Será que eu quis apenas parecer menos decifrável aos outros?
Acusada de dramática, complicada e inconstante, nunca me furtei da intensidade porque só assim, acho, posso me esconder da superfície. Só me permitindo viver os conflitos do mundo, eu me descubro. Só assim me dou a chance de mergulhar na vida e tentar tirar dela os sentidos que me movem. Essa postura só está sendo racionalizada agora, mas o raciocínio tardio explica por que sempre atraí o difícil, ou por que o que era fácil se complica quando chega a mim. Talvez essa postura explique até mesmo o motivo de eu ir no contrafluxo do comum e ter miopia em um olho, hipermetropia no outro e astigmatismo nos dois. Eu precisava, afinal de contas, enxergar de perto com um olho e de longe com o outro para me dar conta dos macro e dos microacontecimentos?
A vida superexige de mim por que eu superexijo dela, Clarice?
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Eu olhei de novo, pela primeira vez
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É como olhar pela primeira vez. Você ergue as pálpebras e varre a cidade com a vista nua. Procura perceber cada detalhe e faz comparações inevitáveis para, só então, descobrir se existe ou não a sensação de pertencimento. Pode parecer difícil entender essa sensação de primeiro olhar lançado para a cidade na qual você "virou gente". Pior ainda, se eu disser que já lancei vários primeiros olhares sobre essa mesma cidade, em cada um dos meus exílios. Fortaleza, na verdade, foi o meu primeiro exílio. E depois me exilei dela outras duas vezes. A cada retorno, lancei um olhar tão nu que parecia mesmo ser o primeiro.
Eu me senti despida de memória por poucos segundos. Deixei o aeroporto e senti aquele vento morno que não faz doer o nariz. Passei os dias seguintes apaixonada por esse vento, mas, naquele momento, eu me senti quase turista na minha cidade. Observei tudo o máximo que pude: os engarrafamentos, as reclamações de insegurança, as críticas e defesas às obras que atropelarão o Parque do Cocó, os sotaques, as gírias, os reencontros com amigos, as mudanças estruturais na redação do jornal, os livros que deixei e meu irmão abarrotou em uma única parte do armário, o vento forte na sala de casa, o sotaque cearense no jornal do meio dia, o pastel de banana que minha tia vende na esquina, o sorvete da 50 Sabores, o camarão da minha mãe, o caranguejo da Praia do Futuro.
Observei tudo e, falando assim, parece que nada mudou nesses últimos meses, mas a verdade é que tudo estava fora do lugar. Ou eu não estava no lugar? Tudo é diferente agora. Não sei se porque me acostumei com o mundo maximizado de São Paulo, Fortaleza me pareceu menor. As ruas estavam mais estreitas? Não sei se porque estava convivendo com tantas ausências e os vazios em São Paulo, Fortaleza me pareceu mais afetuosa. Fui recebida com tanta atenção que só pude ver amor em Fortaleza, nada de pavor. Fui recebida como se tivesse voltado de vez e, quando mostrei que não, a cidade me disse: "Volte. Eu estou pronta para receber você pela terceira vez".
Eu construí uma relação de amor com São Paulo, mas descobri uma sensação de pertencimento a Fortaleza. Sei que, caso decida voltar, precisarei estar disposta a um novo primeiro olhar. Sei que não é possível simplesmente voltar. A verdade é que a gente vai, como se fosse pela primeira vez, ao lugar de onde viemos. Passamos por uma readaptação, correndo todos os riscos de encontrar tudo revirado. E encontramos.
Mesmo vindo apenas de passagem, tudo estava fora do lugar. Tudo, menos esse olhar de fora, esse olhar imaginado e superficial do reencontro. É bom poder abdicar dos desgastes cotidianos e dos problemas urbanos para enxergar a parte boa, deixar-se levar pelos afetos. Guardo esse olhar aqui para que eu possa lembrar, caso um dia o retorno resolva internalizar novamente meus olhos.
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macabia-blog-blog · 12 years ago
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Sobre a responsabilidade de inspirar
Inspirar Inserir ar nos pulmões: inspirar o ar. Sugerir. Fazer nascer o entusiasmo criador. Executar ou obter alguma autoridade ou influência sobrenatural. Fazer nascer no coração, no espírito, um sentimento, um pensamento, um desígnio. Servir-se das ideias, das obras, dos atos de outrem.
A gente está sempre inspirando alguém, descobri nos últimos meses. É como se tudo na vida fosse uma troca, como se o mundo nos empurrasse para esse escambo silencioso que acontece na sombra do que dizemos ou fazemos mesmo sem pensar. Não é preciso qualquer intenção. Até a mais egoísta das decisões pode entrar nesse comércio tácito que ferve à revelia de nós mesmos. Estamos o tempo todo inspirando, expirando e sendo inspirados. Podemos nos negar a pensar no assunto ou fingir que não influenciamos ninguém, mas a escolha de abrir mão dessa consciência não reduz o fluxo da troca.
Quando decidi vir morar em São Paulo, achei que precisasse apenas fazer a escolha e as minhas malas. Não achei grande coisa pedir demissão do jornal, comprar passagem e entrar em um avião. Ouvi de muita gente que eu estava mostrando coragem, que a capacidade de se lançar no mundo não era para qualquer um. "Mas, gente, eu só tô pegando um avião pra São Paulo. Juntei um dinheiro e vou passar um tempo por lá. Só isso", eu pensava. Mas me falaram tanto em coragem que eu mesma entrei no avião me sentindo corajosa, achando que estava fazendo uma coisa grande. Tudo pra descer do avião e constatar: "Isso não é uma coisa grande. Só deixei um emprego fixo. Não tenho o que perder".
Continuo achando que não tinha o que perder nesse deslocamento. Vim para ganhar: confiança, maturidade, conhecimento, amigos, emprego, saudade. E saudade ganhei muito mesmo, vale a ressalva. Mas eu fiz uma coisa grande. Quando entrei naquele avião, não sabia das trocas que viriam depois. Eu nem sabia que não precisava querer essas trocas para que elas acontecessem. Achei que estava dando um passo longo para uma coisa pequena, mas estava dando um passo curto para algo maior do que eu. Estava aberta para essa inspiração e, por me deixar guiar pelo fluxo conflituoso da vida, fiz uma coisa realmente grande, mas nem por isso pouco dolorosa.
Fui tomando ciência de que fiz algo grande por mensagens picadas, recebidas ao longo dos oito meses em que estou aqui. Fui entendendo tudo pelos recados de pessoas nem sempre próximas que se identificaram com meus sonhos, com minhas crises e com todo o resto que escrevo aqui.
Gente que decidiu ou simplesmente considerou mudar alguma coisa na sua vida e que viu coragem em coisas que eu julgava menores do que são.
"Oi, Bia, como vão as coisas por aí? Acho que muito bem, né? Afinal, você está fazendo o que quer. Deve ser uma sensação incrível. Olha só, acabei de ver o vídeo que vc fez pra sua mãe. Lindo. Tinha passado batido pela minha timeline. Foi a XXXXX que me falou dele. Disse que eu precisava ver, talvez pelas conversas que temos tido e pelas decisões que devo tomar em breve. Ou não. De qualquer forma, parabéns pelo texto. E por amar demais"
Gente que decidiu ir embora ou ficar para sempre, porque perdemos o controle do que escrevemos a partir do momento em que qualquer outra pessoa lê as nossas palavras. Gente que fez, muito antes de mim, meu caminho inverso.
"Preciso começar os meus textos sobre essa cidade (São Paulo). Tenho fome dela, uma fome que não se sacia com férias, mas minhas raízes se fincaram com força aqui em Fortaleza. Energias boas e sucesso pra ti"
Gente que simplesmente gostou de se ver por aqui, de saber que deixou coisas maiores que um encontro em mim. Gente que me inspira na lembrança.
"Beatriz, li sua inserção. Uma emoção só. Nada que eu escreva vai ser suficiente para expressar (primeiro) a surpresa pela publicação, depois a satisfação com a beleza e, finalmente, a felicidade pela mensagem. (...) MUITO OBRIGADO. Jamais esqueceremos"
Gente que decidiu viver comigo essa loucura de passar um ano (ou o resto da vida) em São Paulo.
Essa inspiração é das coisas mais lindas que vivi nos últimos meses e, por isso, sei que fiz uma coisa grande para mim e para os que vêm me acompanhando. Quando descobri que o resto da vida é longo demais, eu soube que essa inspiração também traz uma responsabilidade. Dei os primeiros sinais para seguir o caminho de volta e recebi outras várias mensagens - contra e a favor desse novo deslocamento. Estou tomando a minha decisão sem fugir da responsabilidade que é inspirar, da delícia que é deixar-se inspirar e da certeza de que, não importa o tamanho da escolha, precisamos ser donos dos nossos caminhos.
Não sei onde eu e vocês estaremos daqui a cinco ou dez anos.
Mas sei que continuaremos nos inspirando, nesse comércio de influência que fervilha à margem de nós mesmos.
Que retiremos dessas trocas os melhores sentimentos.
Obrigada a todos os que, por mensagens ou ações, me inspiraram nos últimos meses. E que me inspirarão nos próximos.
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