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Trechos retirados do livro: Lugar de fala de Djamila Ribeiro - Parte 1
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021. ISBN 9788598349688.
Desde muito tempo as mulheres negras vêm lutando para serem sujeitos políticos e produzindo discursos contra-hegemônicos.
Reconhecendo a equação: quem possuiu o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica, conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e assim inviabilizando outras experiências do conhecimento. Segundo a autora, o racismo se constituiu "como a 'ciência' da superioridade eurocristã (branca e patriarcal)".
Mais do que compartilhar experiências baseadas na escravidão, racismo e colonialismo, essas mulheres partilham processos de resistências.
É fundamental a reflexão de como a linguagem dominante pode ser utilizada como forma de manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram apartados das oportunidades de um sistema educacional justo. A linguagem, a depender da forma como é utilizada, pode ser uma barreira ao entendimento e estimular criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um - entre tantos outros - impeditivo para uma educação transgressora' -Gonzalez
Lélia Gonzalez provoca e desestabiliza a epistemologia dominante, assim como Linda Alcoff. Em "Uma epistemologia para a próxima revolução", a filósofa panamenha critica a imposição de uma epistemologia universal que desconsidera o saber de parteiras, povos originários, a prática médica de povos colonizados, a escrita de si na primeira pessoa e que se constitui como legítima e com autoridade para protocolar o domínio do regime discursivo.
É realístico acreditar que uma simples "epistemologia mestre" possa julgar todo tipo de conhecimento originado de diversas localizações culturais e sociais? As reivindicações de conhecimento universal sobre o saber precisam no mínimo de uma profunda reflexão sobre sua localização cultural e social. (ALCOFF, 2016, p. 131)
Seria preciso, então, desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa e debater como as identidades foram construídas nesses contextos.
Linda Alcoff, nos provê uma reflexão muito interessante. A filósofa panamenha chama atenção para o fato de que, para descolonizarmos o conhecimento, precisamos nos ater à identidade social, não somente para evidenciar como o projeto de colonização tem criado essas identidades, mas para mostrar como certas identidades têm sido historicamente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, ao passo que outras são fortalecidas. Seguindo nesse pensamento, um projeto de descolonização epistemológica necessariamente precisaria pensar a importância da identidade, pois reflete o fato de que experiências em localizações são distintas e que a localização é importante para o conhecimento.
O que se quer com esse debate, fundamentalmente, é entender como poder e identidades funcionam juntos a depender de seus contextos e como o colonialismo, além de criar, deslegitima ou legitima certas identidades.
Essa insistência em não se perceberem como marcados, em discutir como as identidades foram forjadas no seio de sociedades coloniais, faz com que pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no argumento de que somente elas pensam na coletividade; que pessoas negras, ao reivindicarem suas existências e modos de fazer político e intelectuais, sejam vistas como separatistas ou pensando somente nelas mesmas.
Existe um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes, produções e, para além de refutar esse olhar, é preciso que partamos de outros pontos.
Nenhuma coletividade, portanto, se definiria nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si.
É muito importante perceber que homens negros são vítimas do racismo e, inclusive, estão abaixo das mulheres brancas na pirâmide social.
A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida.
Definir-se é um status importante de fortalecimento e de demarcação de possibilidades de transcendência da norma colonizadora.
O conceito de outsider within, o qual em tradução livre seria algo como "forasteira de dentro", é muito importante para posteriormente entendermos lugares de fala.
A autora define outsider within como posição social ou espaços de fronteira ocupados por grupos com poder desigual.
Collins aponta como é preciso aprender a tirar proveito desse lugar de outsider, pois esse espaço proporciona um ponto de vista especial por conseguirem enxergar a sociedade em um espectro mais amplo.
Carneiro nos mostra que o racismo determina as hierarquias de gênero em nossa sociedade.
Lorde enfatiza a importância de se ampliar o olhar e nos instiga a fazer o questionamento: até que ponto se legitima o poder que se condena?
Audre Lorde nos instiga a pensar na necessidade de reconhecermos nossas diferenças e não mais vê-las como algo negativo.
O não reconhecimento de que partimos de lugares diferentes, leva à legitimação de um discurso excludente. Pode ser entendida como uma falta de postura ética em pensar o mundo a partir de seus lugares.
Em Comunicação, o conceito de lugares de fala, segundo o artigo "Lugares de fala: um conceito para abordar o segmento popular da grande imprensa" seria um “[...] instrumento teórico - metodológico que cria um ambiente explicativo para evidenciar que os jornais populares ou de referência falam de lugares diferentes e concedem espaços diversos à falas das fontes e dos leitores.” (AMARAL, 2005, p. 105)
Ainda segundo o artigo, “[...] o aporte que propomos reconhece as implicações das posições sociais simbólicas do jornal e do leitor e incorpora a noção de mercado de leitores, a partir da ideia de que, para explicar o discurso, é preciso conhecer as condições de constituição do grupo no qual ele funciona.”(AMARAL, 2005, p. 104)
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Trechos retirados do livro: Lugar de fala de Djamila Ribeiro - Parte 2
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021. ISBN 9788598349688.
Nesse sentido dado pela Comunicação, o conceito serviria para analisar que o lugar de fala da imprensa popular seria diferente do lugar de fala do que eles chamam de jornais de referência e, nesse artigo especificamente, mostra-se que esse lugar da imprensa popular vai além do sensacionalismo.
Ao reivindicar os diferentes pontos de análises e a afirmação de que um dos objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de fala de quem o propõe, percebemos que essa marcação se torna necessária para entendermos realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica.
Como explica Collins, quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania. Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social ocupado por certos grupos restringe oportunidades. Ao ter como objetivo a diversidade de experiências, há a consequente quebra de uma visão universal.
No Brasil, comumente ouvimos esse tipo de crítica em relação ao conceito, porque os críticos partem de indivíduos e não das múltiplas condições que resultam nas desigualdades e hierarquias que localizam grupos subalternizados. As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratados de modo igualmente subalternizados, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente.
Experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impedem que a população negra acesse certos espaços. É aí que entendemos que é possível falar de lugar de fala a partir do feminist stand-point: não poder acessar certos espaços acarreta a não existência de produções e epistemologias desses grupos nesses espaços.
O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas a poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.
Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo.
O fato de ocuparem lugares de maior vulnerabilidade faz com que certas medidas consideradas retrógradas atinjam esses grupos de maneira mais acintosa.
No debate virtual, aqui no Brasil, nos acostumamos a ouvir os mesmos equívocos de Hekman. "Fulana está falando a partir das vivências dela", como se essas vivências, por mais que contenham experiências advindas da localização social de fulana, se mostrassem insuficientes para explicar uma série de questões.
O foco é justamente tentar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual fulana faz parte e quais são as experiências que essa pessoa compartilha como grupo.
O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela até poderá dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou que ela nunca passou por isso. Mas o fato dessa pessoa dizer que não sentiu racismo não faz com que, por conta de sua localização social, ela não tenha tido menos oportunidades e direitos. A discussão é sobretudo estrutural e não "pós-moderna", como os acusadores dessa teoria gostam de afirmar.
Collins não está negando a perspectiva individual, mas dando ênfase ao lugar social que ocupam a partir da matriz de dominação.
Por mais que sujeitos negros sejam reacionários, por exemplo, eles não deixam de sofrer com a opressão racista - o mesmo exemplo vale para outros grupos subalternizados. O contrário também é verdadeiro: Por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos.
Acredito que nem todas as pessoas brancas se identifiquem entre si e tenham as mesmas visões, mas existe uma cobrança maior em relação aos indivíduos pertencentes a grupos historicamente discriminados, como se fossem mais obrigados do que os grupos localizados no poder de criar estratégias de enfrentamento às desigualdades.
Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.
É preciso pensar ações políticas e teorias que deem conta de considerar que não pode haver prioridades, já que essas dimensões não podem ser pensadas de forma separada.
Spivak, assim como Beauvoir e Kilomba, também pensa a categoria do Outro afirmando a dificuldade dos intelectuais franceses contemporâneos em pensar esse Outro como sujeito, pois, para a autora, estes pensariam a constituição do Sujeito como sendo a Europa.
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Trechos retirados do livro: Lugar de fala de Djamila Ribeiro - Parte 3
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021. ISBN 9788598349688.
Spivak concorda com Foucault no que diz respeito a pensar a existência de um sistema de poder que inviabiliza, impede e invalida saberes produzidos por grupos subalternizados.
Spivak nos ensina sobre como grupos subalternos não têm direito a voz, por estarem num lugar no qual suas humanidades não foram reconhecidas. Por pertencerem à categoria "daqueles que não importam", para usar uma expressão da filósofa estadunidense Judith Butler.
Tanto Patricia Hill Collins quanto Grada Kilomba consideram problemática essa afirmação de Spivak do silêncio do subalterno se esta for vista como uma declaração absoluta. Para as duas pensadoras, pensar esse lugar como impossível de transcender é legitimar a norma colonizadora, pois atribuiria poder absoluto ao discurso dominante branco e masculino.
Significaria também acreditar que grupos oprimidos só podem se identificar com o discurso dominante e nunca serem capazes de pensar as próprias condições de opressão a que são submetidos.
Os saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de serem contradiscursos importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias.
Questiona: "Quem pode falar?", "O que acontece quando nós falamos?" e "Sobre o que é nos permitido falar?” Esses questionamentos são fundamentais para que possamos entender lugares de fala.
Kilomba toca num tema essencial quando discutimos lugares de fala: é necessário escutar por parte de quem sempre foi autorizado a falar. A autora coloca essa dificuldade da pessoa branca em ouvir, por conta do incômodo que as vozes silenciadas trazem, do confronto que é gerado quando se rompe com a voz única.
Ainda segundo Kilomba, o medo branco em não ouvir o que o sujeito negro pode eventualmente revelar pode ser articulado com a noção freudiana de repressão, no sentido de afastar algo e mantê-lo à distância da consciência. Ideias e verdades desagradáveis seriam mantidas fora da consciência por conta da extrema ansiedade, culpa e vergonha que elas causam. Mais além: o medo branco ou manter-se "inconsciente" diante dessas verdades e realidades protegeria o sujeito branco de ter que lidar com os conhecimentos dos Outros.
Falar de racismo é visto geralmente como algo chato, "mimimi" ou outras formas de deslegitimação. A tomada de consciência sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como inapropriada ou agressiva, porque aí se está confrontando o poder.
Um dos equívocos mais recorrentes que vemos acontecer é a confusão entre lugar de fala e representatividade. Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa.
Falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica nem sequer pensem. Em outras palavras, é preciso cada vez mais que homens brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade, masculinos. Como disse Rosane Borges para a matéria "O que é lugar de fala e como ele é aplicado no debate público", pensar lugar de fala é uma postura ética, pois "saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo".
O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.
Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experienciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experienciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão.
Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos. Estamos dizendo, principalmente, que queremos e reivindicamos que a história sobre a escravidão no Brasil seja contada por nossas perspectivas, e não somente pela perspectiva de quem venceu.
Pensar lugares de fala para essas pensadoras seria desestabilizar e criar fissuras e tensionamentos a fim de fazer emergir não somente contradiscursos, posto que ser contra ainda é ser contrária a alguma coisa.
Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um movimento no sentido de romper com a hierarquia, muito bem classificada por Derrida como violenta.
Há pessoas que dizem que o importante é a causa, ou uma possível "voz de ninguém", como se não fôssemos corporificados, marcados e deslegitimados pela norma colonizadora. Mas, comumente, só fala na voz de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou reivindicar sua humanidade. Não à toa iniciamos esse livro com uma citação de Lélia Gonzalez: "o lixo vai falar, e numa boa".
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Mandingueiro não é mandinga: o debate entre nação, etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico de escravos - Parte 1
Autora Vanicléia Silva Santos da Universidade Federal de Minas Gerais
O antropólogo norte-americano Melville Herskovits foi o primeiro a sugerir o estudo das tradições africanas no novo mundo e compará-las com os costumes na África. O objetivo era reconstruir a história dos negros e encontrar o passado africano nas Américas.
A crítica maior aos estudos culturalistas é que pressupõe que os grupos étnicos se definem em função dos traços culturais que são transferidos juntamente com os africanos e reaparecem nas Américas, sob a forma de “sobrevivências” ou “resistências africanas”.
Uns autores acreditam que, por meio das fontes do objeto de estudo é possível conceituar a cultura como um conjunto de traços originais que se regeneraram e se mantiveram no Novo Mundo; outros pensam que essas interpretações não levam em consideração a dinâmica e as transformações operadas na vida dos escravos pela violência da captura, travessia e adaptação no cativeiro, onde podiam criar novas formas culturais ou tomando-as de empréstimo de outros grupos.
Sidney Mintz e Richard Price, ao publicarem em 1976 O Nascimento da cultura afro-americana, propuseram a superação dos modelos interpretativos das culturas escravas nas Américas. A proposta consiste em fazer o cruzamento da história e antropologia, e levaram em consideração o peso do escravismo e da heterogeneidade cultural das regiões africanas que abasteceram o tráfico negreiro transatlântico.
O principal argumento dos autores, para avançar nos estudos sobre a cultura afro-americana é que o peso do escravismo levaram os africanos a reinventarem suas tradições no Novo Mundo, pois os escravos estavam abertos a novidade das novas culturas, informados pelas orientações cognitivas mais profundas trazidas da África, porém o legado da escravidão se sobrepunha.
John Thornton questiona a ideia de que heterogeneidade cultural dos africanos na África e o impacto negativo da escravidão teria destruído a cultura africana dos escravizados. A transmissão dos valores africanos da América foi possível porque ainda em terra natal, já tinham contato com culturas estrangeiras, e mesmo na sociedade escravista tinham liberdade suficiente para interação social.
A pesquisa de Luiz Nicolau Parés sobre a presença jeje na origem da institucionalização do Candomblé na Bahia investiga as continuidades das identidades étnicas dos africanos no Brasil, em torno da organização do culto.
Imbuído de ferramentas da história e antropologia, o autor considera as especificidades do processo histórico e do contexto sócio-cultural do Brasil. Com isso, mostra que o modelo conventual e eclesial do candomblé não é uma “criação local” como se pensava, mas uma tradição dos povos jejes da área gbé falante que continuou na Bahia. 
Nicolau Parés não usa o conceito de “grupos de procedência” porque este restringe a interpretação para a localização de uma procedência geográfica comum, ou seja, privilegia-se a origem do escravo na análise. O autor adota o conceito da “teoria da etnicidade relacional” para analisar a formação das nações africanas no Brasil. Ou seja, na sociedade escravocrata, os africanos podiam adotar uma nação metaétnica (externa) apenas pela operacionalidade e continuar se identificando com sua denominação da terra de origem num âmbito mais restrito.
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Mandingueiro não é mandinga: o debate entre nação, etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico de escravos - Parte 2
Autora Vanicléia Silva Santos da Universidade Federal de Minas Gerais
O debate sobre “nação” e etnicidades, seja no sentido de procedência geográfica comum, ou das denominações atribuídas aos senhores (externas, atribuídas pelos traficantes e senhores de escravos) ou internas (dadas pelos próprios escravos) não servem ao termo mandinga no contexto colonial da América Portuguesa.
No Brasil colonial, o termo mandinga sempre foi associado ao uso de práticas mágicas de proteção de africanos e crioulos, embora brancos também fossem indiciados como usuários.
Todos os autores no Brasil explicaram a origem do etnônimo mandinga associando-o ao Mali, Oeste do continente africano. Estavam corretos. Mas não acertaram aqueles que atribuem a origem dos amuletos usados no Brasil aos mandingas.
Nina Rodrigues (1862-1906) atribuiu aos povos Mandingas a introdução do islamismo e das bolsas de mandinga na Bahia: “Naturalmente foram estes Mandês e com eles os Fulás da ala ocidental, que todos viviam impregnados das tradições do poderio Mali na alta curva do Níger, os introdutores do Islamismo africano no Brasil com os escravos da Senegâmbia, da Gâmbia, de Guiné, etc (...).Foram também eles que naturalmente deram aos talismãs ou amuletos de versetos do Alcorão o nome de mandingas, por que são conhecidos na Bahia desde os tempos coloniais.”
Manuel Querino (1851-1923) intelectual negro e observador dos costumes africanos na Bahia da segunda metade do século XIX, esclarece que embora o termo mandinga seja relativo aos africanos procedentes do Senegal, Gambia, Mali e Guiné, no “caso afro-brasileiro”, o termo designa de “maneira abrangente diferentes estoques culturais como mandinga” e popularizou-se para designar “forma de ritual de magia de procedência africana”.
Ao explorar a origem da bolsa de Mandinga na América portuguesa setecentista, a historiadora Laura de Mello e Souza tem explicação semelhante à de Manuel Querino no que se refere à origem dos amuletos, porém atentando para as trocas culturais entre os diferentes povos na América Portuguesa. Para a autora, a bolsa era resultado dos mecanismos de trocas culturais no sistema colonial, pois o talismã congregava elementos das práticas de proteção africana, europeia e indígena.
Em seus estudos, João José Reis estabeleceu relação entre os amuletos islâmicos oitocentistas (usados pelos rebeldes da revolta Malê de 1835, em Salvador) com as bolsas de mandinga setecentistas. Ressalta que a escrita ocidental não tinha força mística tanto quanto a escrita islâmica. Talvez haja um equívoco de interpretação, pois em todas as bolsas de mandinga que foram tomadas dos africanos, no Setecentos, havia orações escritas em língua portuguesa e os mandingueiros (fabricantes de bolsa) pagavam caro para as pessoas que escreviam as orações. 
Para Daniela Calainho, os povos mandingas desembarcados no Reino e noutras partes do Império teriam se misturado com outras etnias e suas práticas de origem islâmicas foram assimiladas por outros grupos.
Discordo da análise da autora por três motivos: primeiro, o povo mandinga não pertence ao grupo iorubá-nagô e sim ao ramo Mandê; segundo, a maioria dos denunciados à Inquisição em Portugal não eram falantes de Mandê, mas faziam parte do subgrupo lingüístico iorubá; terceiro, a origem dos escravos da Revolta dos Malês de 1835, em Salvador, que portavam amuletos com inscrições em árabes, não era da Alta Guiné, mas do Golfo da Guiné. Portanto, não há evidências entre identidade étnico-cultural dos usuários de bolsas de mandinga e povos mandê ou mandingas no Atlântico Português.
Didier Lahon não atribui a origem dos mandingueiros da diáspora nem das bolsas de mandinga aos povos da Senegâmbia. Ele enfatiza que os mandingueiros que aparecem nos documentos inquisitoriais não eram da região da Senegâmbia porque os estados do Oeste africano passavam pelo processo de forte islamização desde o século XV. 
Portanto, no século XVIII, os amuletos daquela região tinham características muito distintas daqueles encontrados em Portugal; a principal delas era que não se tratavam de orações muçulmanas escritas em árabe, mas de orações cristãs escritas em português.
Vanicléia S. Santos enfatiza em sua tese que os amuletos, chamados no Atlântico de Português, de bolsas de mandinga e os ingredientes inseridos nelas não tinham relação direta com os povos mandingas da Alta Guiné, mas com a cultura de origem do sujeito que a portava. Exemplo disso é João da Silva, nascido em Angola, onde foi batizado e doutrinado no catolicismo; chegou ainda criança à Bahia e foi preso no interior da capitania, na Vila de Santo Antônio de Jacobina, aos 30 anos de idade, pelo delito de usar uma bolsa de mandinga. O conteúdo da bolsa (oração católica e vários objetos católicos e de origem mineral) remete às suas tradições ambundas e da experiência com o catolicismo negro aprendido em sua terra de origem.
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Mandingueiro não é mandinga: o debate entre nação, etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico de escravos - Parte 3
Autora Vanicléia Silva Santos da Universidade Federal de Minas Gerais
Nos arquivos da Inquisição de Lisboa há vários outros processos de angolanos que usavam bolsa de mandinga sem nunca ter entrado em contato com o islamismo.
A maioria das referências aos termos mandinga e mandingueiro, tanto no Brasil quanto em Lisboa e Angola, estavam relacionadas ao universo religioso e “divulgadas” pela Inquisição. No Brasil, desde o século XVII, o uso das afamadas bolsas de mandinga incomodavam as autoridades eclesiásticas.
Laura de Mello e Souza notou que no século XVIII dezessete pessoas foram enviadas do Brasil aos cárceres da Inquisição sob a acusação de mandingueiro – uso ou fabrico de bolsa de mandinga. Nenhum dos acusados era de origem do Mali ou Senegâmbia.
Ainda no plano religioso, há outro significado em relação à palavra mandingueiro nas fontes que faz alusão ao etnônimo mandinga/mandê. O documento refere-se a um grupo de “mandingueiros” que supostamente integravam uma milícia particular de negros em Minas Gerais, no século XVIII.
1) não há indícios no documento de que os mandingueiros eram africanos, muito menos a existência de gente do Mali em Minas Gerais; 2) não há evidências empíricas que sustentem as conexões entre os soldados do Mali e suas “sobrevivências culturais” em Minas; 3) e se houve pessoas do Mali enviadas para o tráfico transatlântico não se conhece ainda o registro delas no Brasil.
Portanto, nesse caso, mandingueiro não se tratava de referência ao grupo étnico mandinga. A palavra foi utilizada para denominar homens negros e valentes que tinham seus corpos fechados para arma de fogo. Fica implícita no documento a possibilidade do uso de práticas mágicas para proteger/fechar o corpo. 
Rodrigo Castro Resende, demonstra que nos anos de 1718, 1719, 1795 e 1804 nas comarcas de Ouro Preto e do Rio das Mortes foram utilizadas mais de 30 tipos de denominações para os africanos, as quais se referem à áreas geográficas extensas, portos, feiras, reinos e grupos culturais. Mas a única referência aos povos e lugares da Alta Guiné foi Cabo Verde.
 De 1650 a 1790 ocorreu o apogeu do processo de malinkização das populações na direção do Mali para o Atlântico. Carlos Lopes explica que, com o declínio do Mali em 1650, o Farim de Kaabu aumentou seu poder de influência na região da Senegâmbia. Sua base política seguiu o mesmo sistema político do Mali.
O processo de expansão do Kaabu incluía dominação social, política, econômica, cultural e a difusão da língua Mandê. Povos como os Banhuns e Balantas que mudaram de língua e de costumes em consequência da malinkização e passaram a se considerar como mandingas.
Nas guerras interétnicas povos mandingas também foram capturados e embarcados.
Outras evidências mostram a diminuta quantidade de povos mandingas vendidos como cativos no tráfico transatlântico de escravos. 1) O Transatlantic Slave Trade Date Base (TSDB) indica que durante todo o período do tráfico (1581-1855) apenas 11.157 cativos oriundos da Senegâmbia desembarcaram no Brasil. Esse número representa apenas 0.8% do total de desembarcados nos portos brasileiros. 2) Os embarques dessa região geralmente eram feitos nos portos de Cacheu e Bissau, área dominada pelos povos mandingas, que comercializavam com os portugueses. 3) Os mandingas eram islamizados e vendiam os cativos aos portugueses, como os bamana (ou bambara). Portanto, uma parte muito pequena de mandingas pode ter sido embarcada como cativo, consequência das jihads que eles faziam contra os “pagãos” e menos ortodoxos.
O uso do etnônimo mandinga serviu como “guarda-chuva” para explicar os mais diversos tipos de práticas mágicas protetivas, como os amuletos usados nas diversas partes do Atlântico.
Oliveira Mendes usou a palavra “mandinga” como um termo que circulava pelo Atlântico, para explicar a origem dos patuás. Mas, como se sabe, o uso de amuletos não era exclusivo dos povos mandingas do Mali.
Esta relação entre mandingas e feitiçaria não teve início no Brasil, mas na Alta Guiné. Os três principais agentes de propagação desta ideia estereotipada foram os viajantes, os missionários e a Inquisição.
Os primeiros viajantes e cronistas portugueses do século XV não tinham informações precisas sobre os mandingas. Sabiam, por meio das informações que corriam no Norte da África, que os mandingas habitavam uma região onde havia abundância de ouro e que o Mandi Mansa (imperador do Mali) governava vários povos.
Por volta de 1593, André Alvares Almada (c. 1550-1603) escreveu a mais importante obra sobre a região da Guiné, na qual apresentou os mandingas como guerreiros, traiçoeiros, ladrões, matadores de brancos, grandes comerciantes que vendiam, dentre outras mercadorias, ouro e escravos, controladores das fortalezas ao longo do Rio Gâmbia, e religiosos que difundiam o islamismo pela Costa e interior.
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Mandingueiro não é mandinga: o debate entre nação, etnia e outras denominações atribuídas aos africanos no contexto do tráfico de escravos - Parte 4
Autora Vanicléia Silva Santos da Universidade Federal de Minas Gerais
A importância do rio Gâmbia como local de comércio controlado pelos Mandingas. A região que se estendia à margem, habitada por mandingas e por outros povos que absorveram os seus costumes islâmicos e então passaram a ser chamados também de mandingas (processo de malinkização).
Os viajantes dos séculos XVI e XVII, e particularmente, os capitães, a serviço da Coroa Portuguesa, compreenderam o domínio econômico e cultural dos povos mandingas sobre os demais povos da Guiné. Os mandingas eram grandes comerciantes (em língua malinquê diulas), os quais difundiam a língua malinquê e o islamismo. Apesar da concorrência comercial e religiosa, os portugueses buscavam fazer alianças para ter acesso às mercadorias que vinham do interior, porque não tinham permissão dos régulos locais para adentrar e nem resistiam às doenças da terra.
Ao fazer descrições etnográficas das populações de Cabo Verde, Rios da Guiné até Serra Leoa, Barreira descreveu os mandingas da seguinte maneira. “Seguem a ceita de Mafoma como os mais que atras ficaõ, e tem misquitas e escolas de leer e escreuer, e muytos casizes, que leuaõ esta peste a outros Reinos da banda do Sul, enganando a gente com nominas que fazem de metal e de coiro, muyto bem lauradas, en que mete escritos cheos de mentiras, afirmando que tendo consigo estas nominas nê na guerra nê na paz auerá cousa que lhes faça mal.”
O padre Manuel Alvares que se integrou à Missão em 1607 fez descrições semelhantes dos mandingas. Sobretudo, enfatizando o papel deles como propagadores do Islamismo e vendedores de amuletos: “andaõ metidos com esta gentilidade e os enganão dandolhe nóminas e huns relicários que trazem ao pescoço, assi como os agnus Dei e outras reliquias.
A prática religiosa mandinga, era marcada pela difusão do Islã, uso de talismãs que protegiam o corpo de males cotidianos, das enfermidades, dos feitiços, dos desentendimentos entre as pessoas e das guerras que assolavam as aldeias, naquele turbulento contexto de produção de cativos para alimentar o tráfico.
Obviamente que as informações sobre os mandingas descritos como feiticeiros pelo padre Sandoval, e veiculadas pela Companhia de Jesus, através das várias edições da referida obra, são resultados desses registros baseados no que os missionários viam, ouviam e imaginavam e foram adquirindo grau de verdade para Igreja.
O termo mandingueiro foi propalado muito pela Inquisição, ao perseguir, investigar e prender pessoas acusadas de portar amuletos para proteção do corpo. 
 Criada em 1536, a Inquisição de Lisboa atuou na África Ocidental, por meio de seus agentes locais, e recebeu pouquíssimas denúncias relacionadas às crenças dos “pagãos” e muçulmanos da região dos Rios da Guiné e Cabo Verde. Além disso, os agentes locais a serviço da Inquisição tinha braços curtos no continente africano, devido ao poder das chefaturas locais. Portanto, a perseguição recaiu sobre os judeus e cristãos-novos, numa época de disputa de mercados e maior desenvolvimento dos negócios junto às das sociedades Atlânticas africanas.
Importante destacar que os moradores da Guiné, Cabo Verde, Angola, Brasil e Portugal, acusados de portar amuletos foram todos denominados mandingueiros, e o amuleto bolsa de mandinga.
De modo geral, os negros denunciados à Inquisição por porte de amuletos que receberam condenações, tiveram seus delitos classificados como pacto demoníaco, feitiçaria, superstições. Portanto, foi a Inquisição Portuguesa quem mais difundiu o termo mandinga com o sentido de feitiçaria por todo o Atlântico. Ao atribuir grande poder às bolsinhas, estabeleceu uma forte relação entre a magia dos africanos e o poder de tais amuletos.
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A medicina mágica das bolsas de mandinga no Brasil, Séc. XVIII - Parte 1
Artigo feito por Leonardo Carvalho Bertolossi da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. A medicina mágica das bolsas de mandinga no Brasil, séc. XVIII. XII Encontro Regional de História, p. 1-9, 2006.
As bolsas de mandinga refletiram a diversidade de ideias e práticas da ‘medicina mágica’ popular na América portuguesa do século XVIII.
De origem africana islamizada do reino muçulmano de Mali, que floresceu no Vale do Níger e do Senegal por volta do século XIII, as bolsas de mandinga eram amuletos produzidos e usados pelo povo malinke ou mandinga para lhes trazer proteção e poder.
Trazidas à Colônia pelos escravos bantos calunduzeiros, foram usadas como ‘patuás terapêuticos’ contra doenças do corpo e da alma, e tiveram ampla circularidade nos prognósticos de clérigos leigos e calunduzeiros. Acreditava-se que as bolsas de mandinga tinham propriedades terapêuticas e que fechavam o seu corpo contra doenças físicas e feitiços.
Transportados para a América portuguesa como escravos, os mandingas trouxeram seus amuletos.
Dentre as várias saídas encontradas para proteção contra as doenças de um mundo conflitante e ambíguo, em ‘contágio’ cultural continuado, e assolado pelo medo do diabo que se tornara a América portuguesa, as sincréticas bolsas de mandinga serviram como amuletos terápicos desde o século XVII e com ampla difusão do século XVIII.
Os mandingas eram um povo que habitou extensa área da África Subsaariana, em torno do século XIII em um dos reinos muçulmanos do Vale do Níger: o reino de Mali. Também conhecido como malinquê, esses escravos islamizados eram na colônia chamados por malês e eram tidos como “mestres da magia negra”.
É atribuído aos Malês a introdução das bolsas na colônia, que sobreviveram até o século XIX. No entanto, sobre a relação dos Malês com as bolsas - que adquiriram outros componentes simbólicos e personagens envolvidos no Brasil - ainda existem dúvidas a respeito de saber se foram exatamente eles que introduziram os amuletos. Para Laura de Mello e Souza, “a expressão bolsa de mandinga [...] remetia ao sistema colonial, aos africanos tornados escravos coloniais através do tráfico”.
De Mandingas a Malês, esses africanos se reinventaram e possivelmente também o fizeram com o ícone mágico que mesclava diferentes tradições, tanto africanas quanto muçulmanas, do Brasil, ameríndias, cristã-portuguesas e cujos difusores e adaptos eram identificados como ‘mandingueiros’ e o ‘calunduzeiros’, sendo esses últimos curandeiros ou ‘feiticeiros negros’ assim chamados pelos inquisidores.
Os mandingas constituíram o império um dos impérios mais fortes da Idade Média.
Tidos como guerreiros conquistadores e feiticeiros incorrigíveis, para Arthur Ramos “este povo a que os negros chamam mandinga [...] tinha uma índole guerreira e cruel. Não obstante a influência maometana, eram considerados grandes mágicos e feiticeiros, e daí o termo mandinga, no sentido de mágica, coisa-feita, despacho, que os negros divulgaram no Brasil”. 
Segundo Daniela Calainho, “as antigas crenças desses grupos animistas não desapareceram por completo havendo um ‘sincretismo muçulmano-fetichista’ que se disseminou”.
Estavam localizados na região denominada Costa da Mina ou Costa da Guiné, cuja chegada dos portugueses é datada na primeira metade do século XV a fim de mercadejar escravos.
León Africano, escreveu sobre o desenvolvimento cultural deste povo: “Eles são os mais civilizados, os mais inteligentes e os mais famosos de todos os negros”.
Africano afirmava também que os mandingas são ricos devido ao seu comércio. Somando-se a imensa vida urbana - mais de 400 cidades do império Mali -  e a riqueza dos seus habitantes, favoreceram o intenso escambo de mercadorias, transportadas pelo deserto adentrando adentrando a Europa pelo Mediterrâneo e também a África Tropical. Neste intenso fluxo comercial tiveram saídas amuletos, que no Brasil e em Portugal ficaram conhecidos como ‘bolsas de mandinga’.
Vale considerar que o uso de amuletos era comum na Europa desde a Alta Idade Média, trazidos ao corpo ou à roupa e desde essa época era visto como elemento profano.
‘Calunduzeiros’ eram tidos como ‘feiticeiros’ pelos inquisidores, era à eles atribuídos a posse e o tráfico de Tais bolsas e outras curas mágicas que ocorriam com as boticas, aplicação de sanguessugas, e outras terapias da medicina colonial. 
Dentre as dentre a série de práticas negras que configuraram os calundus, tais como adivinhações, possessões, sortilégios, curas e folguedos com batuques, existiram características comuns a esses rituais religiosos que foram identificados nos processos inquisitoriais. A evocação de espíritos de defuntos e a decorrente posição ritual, as oferendas de comidas e bebidas aos espíritos evocados, a adivinhação do futuro e o curandeirismo, a música cantada e marcada por batuques, e o caráter coletivo da cerimônias eram alguns dos elementos recorrentes na maioria desses casos.
Brancos pobres e pardos tornaram parte das crenças e ritos negros que se diluíram num cotidiano de superestições, amuletos e mandingas que não eram tão facilmente se identificadas como provenientes ou decorrentes dos calundus pelas instâncias repressoras da ambígua a igreja Colonial, que também não possui a rígida dos limites do permitido e do condenado quanto a essas práticas.
A convivência e conivência cotidiana aos calundus e toda a sorte de calunduzeiros, que eram associados e confundidos com os benzedeiros, rezadeiros, curandeiros e adivinhos, permitiu que muitos deles sobrevivessem durante anos na América portuguesa.
Além da assistência religiosa alternativa à oficial, os calunduzeiros eram também curandeiros que assistiam aos populares com doenças físicas, mentais e espirituais com as “artes do demônio antes que das da natureza” segundo as palavras do escapulário Simão Pinheiro Morão, em 1672.
No mundo marcado pelo medo do diabo, pela baixa condição sociocultural de seus habitantes, pela precariedade da medicina e ainda pela influência das religiões africanas e ameríndias, as ‘nosografias’ da dor eram muitas e as soluções encontradas para suprir a expiação das dores do corpo e do espírito.
‘Quando o diabo não queria sair’ e os colonos não procuravam o exorcista para tirar-lhes o mal do corpo, ou este último não conseguia fazê-lo; os diversos personagens coloniais procuravam também os ‘mandingueiros’ que eles forneciam as bolsas de mandinga dentre outras terapias.
Contendo papéis com versículos do Alcorão e signos de Salomão e usadas no pescoço desde os mandingas, ao serem difundidas pelos escravos bantos calunduzeiros na América portuguesa ela se transformaram. “Em geral, eram feitas de pano, quase sempre branco, e continha obrigatoriamente pedaços ou cacos de pedra D´ara (o pedaço de mármore do altar em cujo orifício os padres consagram a hóstia e o vinho) e pequenas tiras de papel cheias de figuras e letras”. As bolsas de mandinga coloniais possuíam ainda “pedras de corisco, olho de gato, enxofre, pólvora, balas de chumbo, vinténs de prata e pedaços de ossos de defunto. Quanto aos papéis, podiam ter as figuras e letras escritas com sangue de frango branco ou preto e, ainda, com sangue do próprio portador da bolsa. Não era raro se escrevia a oração de São Marcos.
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A medicina mágica das bolsas de mandinga no Brasil, Séc. XVIII - Parte 2
Por Leonardo Carvalho Bertolossi da Universidade Federal do Rio de Janeiro
BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. A medicina mágica das bolsas de mandinga no Brasil, séc. XVIII. XII Encontro Regional de História, p. 1-9, 2006.
Além de acreditarem ter o corpo fechado a usá-las, muitos usuários das bolsas as usavam “também para trazer sorte, dinheiro e até para atrair mulheres”. Nelas a tradição europeia de amuleto se misturava aos costumes africanos e aos fetichismos ameríndios. Devido a essa simbologia sincrética, mística e mestiça foram usadas em larga escala.
A força das mandingas estava no ritual que eles conferia poder após sua confecção. Eram cozidas dentro de bolsas e defumadas com incensos e ervas. Eram benzidas e “enterradas à meia-noite em encruzilhadas ou postas debaixo da pedra D'ara no altar de uma igreja para em cima delas serem rezadas três missas, adquirindo assim mais potência e eficácia”.
No entanto, as bolsas de mandinga eram recriminadas pela igreja católica e pela inquisição tanto no Brasil como em Portugal. 
Além das ‘profanas’ bolsas de mandinga e dos ‘bentos’ escapulários, outros pequenos amuletos tiveram grande popularidade na colônia. Foi o caso das figas. Associadas aos mandingueiros, e atreladas a um passado escravista, de origem africana; segundo Eduardo França, a figa foi um “amuleto antiquíssimo, provavelmente da Europa mediterrânica, e que não teve só a função que hoje se conhece, de trazer sorte e proteger o usuário: semelhança com as genitálias masculina e feminina sugere uma referência à sexualidade e à fertilidade.”
As ‘pencas de balangandãs’, outro tipo de amuleto na colônia, possuíam elementos também encontrados nas bolsas de mandinga, como ossos, dentes e pedras e entre outros. Eles também eram associados a práticas heréticas e cultos fetichistas ao diabo pela igreja colonial.
O questionamento do caráter sagrado ou profano dos amuletos atravessou o Atlântico e a partir das visitações inquisitoriais no Além Mar se intensificou. A associação de elementos sagrados e profanos, como desenho de Cristo crucificado, de escravos, cabelos, a oração de São Cipriano, até uma hóstia consagrada, encontrada pela inquisição em 1752, na bolsa de mandinga de um ex-escravo, fizeram com que os inquisidores atuassem.
Daniela Calainho aponta que “o uso das bolsas de mandinga representou 32,3% dos processados inclinados, embora de acordo com o estudo de Pedro Paiva esta prática tenha atingido 8% do total de incriminados”.
As bolsas de mandinga foram produção simbólica criativa dos escravos aqui subjugados. Símbolo de saber e poder laterais aos oficiais da medicina colonial e da igreja, atingiram diversos segmentos da sociedade colonial especialmente no século XVIII, atraindo o fascínio e o medo dessa sociedade. 
Através das bolsas de mandinga e outros amuletos ‘terapêuticos’ desta medicina mágica, negra, e alternativa, podemos observar que os escravos africanos superaram as dificuldades e rivalidades impostas no seu cotidiano, deixando profundas as marcas na religiosidade e na cultura colonial.
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Artigo "Feitiço e fetiche no Atlântico moderno" Parte 3
Artigo feito por Roger Sansi na Goldsmiths College – University of London
SANSI, R. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno . Revista de Antropologia, [S. l.], v. 51, n. 1, p. 123-153, 2008. DOI: 10.1590/S0034-77012008000100005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303/29075. Acesso em: 6 mar. 2023.
• A magia pós-moderna seria algo caracterizado como o fetichismo de mercadoria de Marx. As sociedades ocidentais buscam fugir de tudo que envolva sociedades não ocidentais, negam que sejam contemporâneas e por isso negam a magia e a opõe à razão, ciência e modernidade.
• O termo fetichismo foi inventado para caracterizar a forma mais "primitiva" de religião. Charles de Brosses faz uma paralelo entre a religião dos africanos modernos e a dos egípcios antigos. A forma masi "bruta" de religião é a adoração à objetos, coisas encontradas ao acaso. Reduziam as crenças dos povos africanos como se morassem no "passado dos europeus".
• O termo fetiche tem, na verdade, origem euroéia. Uma versão "crioulizada" de feitiço. E então passou a ser associado unicamente à Africa.
• O termo feitiçaria em Portugal como discurso de acusação. O feitiço é uma coisa feita, falsa, engano. (também pode ser enfeite)
• Três aspectos: "Primeiro, a ambigüidade entre construção e verdade: o feitiço poder ser falsificação e engano, mas exis-te a suspeita de que esse artifício, essa ficção, de fato seja verdadeira, que funcione, ou ainda, que tenha um “segredo”, um “fundamento” que o acusador não conhece. Segundo, ambigüidade entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma prática auto-definida; mas se reconhecendo como tal, o feiticeiro pode adquirir paradoxalmente poder sobre o acusador, o poder oculto da feitiçaria. Terceiro, e último, a ambigüidade entre sujeito e objeto do feitiço: a feitiçaria é uma arte da sedução e da sujeição, através da qual as pessoasse tornam objetos, ou, pelo contrário, os objetos podem ser vistos como pessoas. A feitiçaria é uma trampa, que embrulha acusado e acusador, pessoas e objetos, verdade e ficção." (pg.6)
• A ocultação de um suposto segredo é sempre central no discurso do mágico. Algo entre segredo e ceticismo.
• O feitiço está nas coisas cotidianas. Um evento normal, comum, ganha outra carga e mais simbolismo quando se tem um pensamento por trás.
• "A primeira definição que encontrei de feitiçaria, dada por Bluteauno Vocabulario Portuguez e Latino de 1713 é a seguinte: “He huma cousa,que em si naturalmente não tem o effeyto, que obvio, causando-o só oDemonio, com aquillo, que por permissão Divina le ajunta, para quepossa obrar.” Isto é, feitiço é um evento que, em si, não teria conseqüên-cias, se não fosse causado pelo Diabo. Bluteau dá o exemplo de umalagartixa correndo sobre uma porta. Poderia ser só isso, uma lagartixa,mas poderia ser também um índice do Diabo, um feitiço. Um feitiço éum evento que não pode ser reduzido às suas causas naturais: nesse sen-tido, seria como um milagre, porém, no sentido oposto: não causadopor Deus ou pela graça de um santo, mas pelo Diabo." (pg.7)
• "Os feitiços, portanto, são eventos excepcionais, índices da interven-ção de forças extraordinárias no mundo ordinário ou “natural”. A feitiçaria não seria, nesse sentido, uma religião secreta nem um culto orga-nizado. Os atos de feitiçaria não seriam necessariamente objetos rituais;nem os objetos de feitiçaria seriam necessariamente objetos de culto. (...) A feitiçaria não é idolatria, uma religião pagã, mas umfato comum da vida: ou melhor, um fato extraordinário da vida, quepode vir de qualquer direção, em qualquer momento. Assim, a feitiçariaseria um fato universal, não culturalmente específico." (pg.8)
• "“Mandinga” é um termo que virou praticamente sinônimo de feiti-çaria, e “mandingueiro” sinônimo de feiticeiro, no mundo Atlânticolusófono do século XVIII.2 O termo vem da África Ocidental: os assimchamados “mandinga”, vinham dos impérios de Mali, no interior docontinente; no século XVI diversos grupos mandinga conquistaram par-tes da costa da Guiné, onde portugueses, lançados e tangomaos entraram em contato com eles" (pg.9-10)
• As bolsas de mandinga se popularizaram entre os portuguesses e também havia a venda de "ingredientes de mandinga".
• Objetos diferentes encontrados ao acaso, díspares em situações excepcionais e específicas. A magia como um todo depende dessas especifidades, os ingredientes devem ter uma causa e efeito para fazerem sentido, algum obstáculo para que traga com si a proteção.
• Muitos defendem que a feitiçaria e as mandingas eram apenas uma resistência e forma de sobrevivência no Brasil Colonial, por outro lado, isso diminuiria e reduziria a tão pouco, tiraria o significado por trás. Uma visão etnocêntrica de outra religião e crenças.
• "O discurso da mandinga e da feitiçaria é um discurso sobre o poder cotidiano e a violência de todos contra todos, um discurso que o tráfico atlântico de escravos intensificou, sem duvida, mas que já existia, e que continuou depois do fim do tráfico"
• A história dos elementos que são parte das bolsas de mandingas fazer parte do fetiche, o evento excepcional até a chegada do elemento às mãos de quem porta, torna a bolsa especial.
• Os fetiches africanos eram semelhantes aos sentinhos católicos e por isso a Europa busca romper com a ideia de que tem semelhanças com o continente africano.
• A adoração de objetos é o fetiche. O acontecimento excepcional é o fetiche. O deus pode ser tudo.
• Fetichismo no Brasil começa a aparecer por volta de 1860, em jornais baianos, como uma forma de combate ao Candomblé. Uma forma de falar que a nascente religião não era apenas feitiçaria, mas também um culto. O jornal aborda como criminoso, deixando claro racismo religioso.
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Livro: Pequeno manual antirracista de Djamila Ribeiro
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1. ed. São Paulo: Editora Schwarcz S.A., 2019. ISBN 978-85-359-3287-4.
O livro traz importantes reflexões e nos mostra como não ter atitudes racistas não é suficiente para combater o racismo. Também traz experiências da própria Djamila Ribeiro.
Aborda como pessoas brancas podem se posicionar e mudar seu dia-a-dia, seu ambiente de trabalho e ser antirracista de fato.
Informe-se sobre o racismo
Devemos entender como o racismo se estrutura no Brasil, que por ele ser, de certo modo, mais sigiloso no Brasil se comparado com o Regime Nazista ou o Apartheid, não quer dizer que ele não exista.
No Brasil, ocorre uma romantização da violência contra a população negra. Como num país tão racista 89% da população admite existir preconceito, mas 90% não se identficar como racista.
Enxergue a negritude
Não se pode usar o discurso de "não enxergar cor nas pessoas" sendo uma pessoa branca na qual nunca teve que refletir sobre sua própria raça. Pessoas negras desde a infância percebem que são tratadas diferentes das demais. São a todo momento estigmatizadas. Pessoas que não são negras não aceitam esstar atrás de pessoas negras.
Reconheça os privilégios da branquitude
Pessoas brancas devem perceber seus privilégios para saberem poder se situar na sociedade, até como uma forma de perceber a ausência de pessoas negras em certos locais.
O conceito de local de fala busca refletir, na verdade, de que ponto de vista você fala: seja ele um local privilegiado ou não.
Perceba o racismo em você
É necessário enxergar o racismo como estrutural da sociedade e que o mero discurso de não se afirmar racista acaba sendo vazio, quando a sociedade brasileira foi desenvolvida sobre o racismo. O racismo muitas vezes se pass despercebido. Djamila afirma que a posição de ser antirracista é muito desconfortável, pois te faz enxergar seus privilégios e suas próprias atitudes.
A busca de melhora e entender o racismo não deve partir somente de pessoas pretas, elas não devem ficar dando aula sobre o que é ou não é racismo, pessoas brancas devem pesquisar e estudar sobre o tema por si próprios.
Apoie políticas educacionais afirmativas
A população negra pelo histórico de marginalização, acaba tendo menor acesso à educação de qualidade. As oportunidades são menores. Com o sistema de cotas, foi possível uma tentativa de diminuição dessa barreira estruturada e os dados trazem resultados muito positivos. A evasão universitária entre os cotistas foram menores (26%) do que entre os não cotistas (37%).
Uma forma de ajudar nessas situações é apoiar políticas públicas que promovam a diversidade e o combate à desigualdade racial.
Transforme seu ambiente de trabalho
Questionar-se da presença de pessoas negras no local de trabalho. Se há comitê de diversidade, como ocorrem os processos de admissão, se buscam apenas pessoas elitizadas.
Uma equipe diversificada tende a aumentar o potencial produtivo, estimula a criatividade. Um ambiente com ausência de pessoas negras, deixa o local suscetível à violências racistas.
Leia autores negros
O apagamento de produções negras acontecem com frequência. Indicação de livros e bibliografia de pessoas negras na faculdade é quase nula. O caso é que não é para ler pessoas negras por elas serem negras, mas que é incabível que numa sociedade tão diversa quanto a nossa e de maioria negra, somente os brancos dominem a fomulação do saber. É como acreditar que pessoas negras não elaboram o mundo. Desta forma, acaba que todo o conhecimento acaba por ser contado de uma mesma perspectiva, branca e hegemônica.
Questione a cultura que você consome
Aborda o tema de apropriação cultural, sobre como isso não é sobre "o que pode e não pode usar", mas sim uma questão de poder sobre o outro. Sempre marginalizaram a cultura negra e os impediam de expressar sua cultura como queriam, apagaram suas essências.
O capítulo também traz a questão do capitalismo na perpetuação do racismo por meio das marcas e os esvaziamento de cultura negra quando utilizada por pura estética.
Como o audiovisual por anos se recusou a ter atores negros, fazendo uso do blackface em pessoas brancas como "representação".
Conheça seus desejos e afetos
Djamila aqui traz o tema sobre a sexualização excessiva do corpo negro feminino desde o período colonial. Essa sexualização retira toda a humanidade da mulher negra e a deixa masi exposta à violências. Essa falta de humanização acaba por não vê-las como dignas de afeto e de amor.
Combata a violência racial
A violência policial contra pessoas pretas acaba por ser legitimado com o nome de "bala perdida" e a "guerra às drogas" como uma forma de justificarem o extermínio da população negra mais periférica do Brasil e a prisão em massa. Muitos desses crimes acabam passando em branco, pois na maioria dos casos as únicas testemunhas são outros policiais. Vale ressaltar que a maior parte das vítimas são jovens negros.
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Artigo "Os reinos invisibilizados: um encontro com a palavra mandinga"
Artigo feito por Miza Carvalho dos Santos na Universidade Federal Fluminense
SANTOS, Miza Carvalho dos. Os reinos invisibilizados: um encontro com a palavra mandinga. 2018. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
Djeliya: A arte prática da transmissão na cultura oral mandingue 
Os djeliw, formam outras pessoas que vão para perto do povo para passar as informações, são chamados de “os gritadores”.
O acidente chegou pela via da colonização europeia, e “descobriu” essas pessoas: para os portugueses as pessoas que exerciam essa mesma função eram chamados de criados; na França se chamavam griots. Ficaram assim conhecidos no ocidente: griots os contadores de história.
O Império Mandê ou Mali, foi o império que marcou a história da África. Na expansão Mandê, foram assimilados diferentes grupos étnicos que viviam na região que hoje conhecemos como Benin, Burquina Faso, Costa do Marfim, Chade, Gâmbia, Gana, Serra Leoa, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria e Senegal. 
As mudanças na cultura do Oeste da África vieram com o impacto da colonização. Com sua superioridade tecnológica, com seus métodos ideais de vidas próprias, fez de tudo para impor seu próprio jeito de viver aqueles dos africanos. A escola ocidental começou, portanto, combatendo a escola tradicional Africana e perseguindo os detentores de conhecimento tradicional. 
O afastamento das crianças de suas famílias fez com que os anciãos não encontrassem mais a sua volta jovens suscetíveis de receber os ensinamentos.
Este processo fez parte de um projeto que transformou o negro em coisa. A colonização expulsou as práticas tradicionais para a clandestinidade e criou o medo e o ódio aos negros, considerando-os marginais.
Esse povo sofreu uma grande perturbação no campo cultural, porém mais que uma mera “perturbação” foi violência e genocídio, seguindo de epistemicídio.
Escolas artesanais eram lugares importantes de transmissão de toda a cultura do povo, porém a administração colonial esforçou-se para desencorajar essas atividades, rompendo assim a tradição do povo.
Outra mudança social significativa foi o esfacelamento da família; na tradição africana a vida individual não existia, só existia a vida familiar, comunitária.
Na dimensão econômica uma nova mudança: a introdução do dinheiro. 
Olhamos para o indígena brasileiro Como José de Alencar o pintor no romantismo e deixamos de nos responsabilizar com a população de indígenas que existe e cresce no Brasil.
Os mandingas no Brasil ganharam a fama de feiticeiros, e do cargo que tinham de “Capitão do Mato” no período da escravatura. Quando os mandingas queriam chuva, entoavam umas palavras mágicas e lá vinham as nuvens carregadas alagando tudo no meio da rua. Ainda tinha outra coisa: eles também sabiam ler, eram africanos islamizados que tiveram em sua educação a leitura e o aprendizado do Alcorão. 
O termo “invisibilizado” ao invés de “invisível” cria um tensionamento. A troca somente de algumas letras repercutindo em um conteúdo de caráter histórico e social! A cultura mandinga parece guardar muitos tesouros! Essa ideia de trazer à tona esses tesouros vai na contramão do projeto colonial de apagamento das vozes.
 O homem da cultura mandinga é aquele que recebeu o poder criador divino, o dom da palavra.
Volochinov Já falou sobre a materialidade da palavra a partir da perspectiva marxista, mas os mandingas falam de um outro lugar, onde a cultura não está separada da natureza. Para eles a percepção do mundo é bastante corporal, uma simbiose de corpo, espírito e comunidade. Os mandingas falam de uma materialidade da palavra entrelaçada com a espiritualidade.
Toda época moderna se debruça sobre a construção do indivíduo, a vida privada. Ao projeto moderno de sociedade se contrapõe a imagem do homem responsável e comunitário. Mas este ainda é um valor, um princípio para organização da vida social dos mandingas. Eles parecem resistir à construção moderna do indivíduo, à perspectiva egoísta, e continuam transmitindo ao mundo os valores comunitários que estão na base de sua sociedade, transmitindo aos jovens de seu povo os valores tradicionais. 
Os artesãos das palavras, assim como todos nyamakalás, são os protetores da tradição oral. Tem dois tipos de artesãos da palavra: os djeliw e os da casca, e esses têm mestres, os Kouyatés. Os djeliw Kouyatés são mestres dos griots. O griot é um animador público, não tem palavra sagrada; brinca, tem direito de dizer o que quiser, inclusive mentir. Eles são encarregados de ensinar, informar e transmitir.
Para os mandingas está incutida no ato de fala, a escuta do outro. Não há ato de fala sem a dimensão da escuta.
A gente não teve essa educação, não fomos chamados a observar. A gente fala de qualquer jeito, fala o que nos vem na cabeça. Usamos as palavras a torto e a direito. Aos poucos vou compreendendo que, para os mandingas, na raiz da noção de palavra, o que marca fortemente a relação de cuidado no ato de fala é a relação com o outro. Quando paro e observo, a minha escuta aumenta, minha percepção do outro se aguça. 
Esta é a ‘arte da palavra’ praticada pelos Kouyatés. Na palavra como escuta ao cuidado com o outro (este sempre está em primazia), a fala sempre responsável, e sempre em resposta, à espera do momento certo. A paciência. 
O conto não é só um repositório da cultura, dos valores da sociedade mandinga. Ele só acontece quando a vida chama por ele. 
A palavra para os mandingas não representa nada, a palavra é o conto, é a matéria encarnada da ideia.
A sociedade mandinga tem visão da vida eterna que é circular, que vai do nascimento à morte e da morte ao nascimento. 
Um dado histórico na sociedade mandinga foi a história de uma aniquilação de modo de viver, aniquilação de uma concepção de tempo. Mas, ainda diante das constantes tentativas de massacre, os mandingas resistem.
São palavras mágicas as palavras dos mandingas.
A tradução mandinga tem por princípio falar por imagens.
Compreender que a modernidade é esse mito que oculta a colonialidade é um passo importante para eu não continuar sustentando de maneira inconsciente a visão eurocêntrica, a superioridade forjada, a violência, a dominação. Não há ninguém atrasado no mundo. Não há primitivos no mundo e muito menos bárbaros. 
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Mandinga no dicionário - Parte 2
Significado em alguns dicionários:
Dicionário de usos do Português do Brasil - Francisco S. Borba
Mandinga: [Abstrato de ação] 1 (Coloq) - ação maléfica atribuída a bruxos e magos; bruxaria; magia negra: você me abraça, me beija, me xinga, me boa mandinga (O); quem te ensinô essa mandinga? (PP) [Abstrato de estado] 2 (Coloq) - Maldição: o seu olhão estriado [...] só lhe digo que ali tiha mandinga (OSD); Luzia Silva também devia ter mandinga naqueles olhos do réptil (TV) [Concreto] 3 - nação de negros do grupos sudanês, tidos como mágixos e feiticeiros: Laussa, peul, mandinga e tapa são nações islâmizadas (UM)
Dicionário Houaiss -  Antônio Houaiss
Mandinga: 1 - ato ou efeito de mandingar; feitiço, feitiçaria. 2 - ANGIOS erva anual (Rhynchospora hirsuta) da família das ciperáceas, nativa do Brasil (PA), de colmo delgado, folhas ger. enroladas, espiguetas pardas e aquênios suborbiculares; capim-rasteira, maniva. ETNOL 3 - indivíduo do grupo étnico dos mandingas. 4 - ramo de línguas do grupo nigero-congolês, muito disseminado na África Ocidental, desde a Mauritânia até a Nigéria. 5 - relativo à mandinga ou aos mandingas. 6 - grupo etnolinguístico formado pelo cruzamento de negros sudaneses com elementos berberes e etiópicos, que habita esp. o alto Senegal, o alto Níger e a costa ocidental da África.
ETIM top. Manding (Guiné-Bissau), conhecido por designar 'terra de feiticeiros'
MiniDicionário da Língua Portuguesa - Ruth Rocha
Mandinga: sf 1 - Feitiço. 2 - Bruxaria. 3 - Despacho de macumba ou candomblé. sm 4 - Língua falada pelos mandingas. adj2g e s2g. 5- Diz-se dos, ou indivíduo dos mandingas, povo de religião predominantemente muçulmana que vive na parte N. da África Ocidental.
Grande Dicionfário Enciclopédico Brasileiro
Mandinga: 1 - Feitiçaria; bruxaria; ação de mandingar. 2 - Indivíduo dos Mandingas.
Feitiço: Sortilégio ou malefício de feiticeiros; bruxaria; objeto a que se atribui poder sobrenatural; amuleto. Fascinação, encanto
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Tese "A mandinga e a cultura Malandra dos capoeiras"
Tese feitapor Adriana Albert Dias, mestre em história na Universidade Federal da Bahia
DIAS, Adriana A. A mandinga e a cultura Malandra dos capoeiras (Salvador, 1910-1925). Revista de História. Disponível em:
Em Salvador, mandinga era sinônimo de capoeira. O bom capoeira era aquele que conseguia enganar o adversário
“Atualmente, o bom capoeira é o indivíduo mandingueiro que sabe disfarçar, enganar o adversário, que ganha o jogo pela esperteza, pela “arte da falsidade”, do fingimento.”
Ludibriar e enganar
“Mas, poderia ser perguntado, o que essas opiniões têm a ver como nosso assunto principal? Embora a figura do malandro esteja fortemente associada   à   do   sambista   carioca   do   final   dos   anos   1920,   pretendemos mostrar, neste artigo, que a cultura malandra já fazia parte do tipo social dos capoeiras de outrora, do seu jeito de andar cheio de gingado, chapéu jogado de lado e navalha amarrada na passadeira da calça. É por isso que, a , os cronistas e literatos baianos, ao caracterizarem o capoeira entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, descreviam-no com muitos dos traços que depois contribuíram para a construção da imagem clássica do malandro. A malandragem estava presente nas práticas sociais do capoeira que estudamos, no seu jogo de perna para atacar e se defender, na sua esperteza e malícia dentro e fora da roda de capoeira. Era parte de uma cultura de rua, do modo de ser e das estratégias de sobrevivência de homens que viviam entre a ordem e a desordem, perseguidos pelos representantes da lei, quase sempre os enfrentando ou deles se esquivando. A malandragem também   pode   ser   compreendida   quase   como   uma   atitude   de   defesa   à brutalidade da vida, aprendida pelo capoeira desde seus tempos de menino de rua. Além disso, ela pode ser vista como uma maneira encontrada por esses homens para provar sua masculinidade e afirmar sua individualidade e no mundo das ruas.”
“De acordo com Jair Moura, os capoeiras de antigamente usavam bolsas   de   mandinga,   talismãs   ou   patuás   pendurados   no   pescoço,   cuja finalidade era “fechar o corpo”. Essa bolsa de mandinga era de fato uma pequena bolsinha feita de couro ou pano e podia conter diferentes amuletos, além de algumas orações poderosas, como a do “Signo de Salomão e as iniciais JMJ”,  que significava  Jesus,  Maria, José.   Este costume vinha da crença de que o capoeira que tivesse um patuá composto “de qualquer destas substâncias, tinha o poder (...) de livrar-se de todos os perigos, tornando-se forte e corajoso, chegando mesmo a ter a faculdade de transformar-se em toco de pau””
A mandinga vem com força nos capoeiras, como estilo, gingado e “arte da farsa”, indicando uma forma própria dos capoeiras. Usavam como forma de resistência, escape de polícia e pra ganhar do adversário. Acredita-se que essa associação veio pelas estratégias e o pensamento de como por outros atributos que os capoeiras traziam com si, como areia, pimenta, o patuá como forma de proteção.
A tese foca em como a cultura malandra se envolve com os capoeiras e a mandinga e como a capoeira influenciava na sociedade e nas ruas. Como o termo mandinga ia além de apenar ser cultura e religioso, como se fizesse parte deles, a mandinga, o gingado. Conseguir enganar os demais, que começa capoeira, mas se expande até às ruas.
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Artigo "Feitiço e fetiche no Atlântico moderno" Parte 1
Artigo feito por Roger Sansi na Goldsmiths College – University of London SANSI, R. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno . Revista de Antropologia, [S. l.], v. 51, n. 1, p. 123-153, 2008. DOI: 10.1590/S0034-77012008000100005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303. Acesso em: 6 mar. 2023.
A feitiçaria e a bruxaria têm sido descritas por antropólogos e historiadores como tradições pré-modernas, sendo a modernidade ocidental baseada, pelo contrário, na ciência e no racionalismo.
Uma crítica radical da modernidade burguesa defende que, na verdade, a nossa modernidade ocidental também é mágica: a magia do capitalismo.
Marx definiu essa magia do capitalismo como fetichismo das mercadorias.
A posição entre magia, feitiçaria e tradição de um lado, contra a modernidade, ciência e racionalidade do outro, é falsa. Como diz Peter Pels, seria necessária para defender a ideologia da superioridade do Ocidente como cultura moderna frente às culturas não ocidentais.
O termo fetichismo foi inventado no fim do século 18 pelo presidente Charles De Brosses, para definir a forma mais primitiva de religião.
Para De Brosses é a forma mais burda e simples de religião: a adoração das coisas encontradas ao acaso. Esses objetos-deuses seriam chamados “fetiches” pelos africanos.
O fetichismo demonstraria que os africanos tinham a forma de religião, e portanto assim de sociedade, mais simples e selvagem. Eles eram contemporâneos, no entanto, moravam no passado dos europeus, que tinham chegado às formas mais elevadas de religião (o teísmo).
Para Hegel, moram fora da história, sequer seriam humanos.
O paradoxo, e a ironia, é que o termo “fetiche”, é de fato um termo de origem europeia. O fetiche não é mais do que uma versão crioulizada do termo português “feitiço”.
O feitiço, para os colonizadores portugueses, era um fenômeno universal e contemporâneo, comum entre portugueses e africanos.
A feitiçaria não era uma religião dos africanos, como o fetichismo, mas uma maldição de toda a humanidade.
Negando a centralidade dos portugueses na produção do fetiche, os europeus que identificam o fetiche com a África negam a historicidade e a modernidade do termo.
A proposta do texto é tentar superar as descrições da história atlântica, separando a África como o lugar do passado e da origem, em oposição às Américas ou ao Brasil como lugar do presente e da recriação. Sem separar um “ontem” africano e um “hoje” americano.
No mundo lusófono colonial, os termos feitiço e feitiçaria aparecem no português medieval num contexto legal: o rei João I promulgou éditos contra a feitiçaria em 1385 e 1403 proibindo a seu súditos entre "obrar feitiços ou ligamentos, ou chamar diabos”.
A feitiçaria nasce portanto como um discurso de acusação.
A etimologia de “feitiço” em conexão ao Latim "facticius", fictício, também na origem dos termos artifício e artificial; é uma coisa feita (o oposto de uma coisa natural),  falsa, enfeite, artifício de sedução.
O termo feitiço tem problemas e ambiguidades como: A ambiguidade entre construção e verdade: o feitiço pode ser falsificação e engano, mas existe a suspeita de que esse artifício de fato seja verdadeira, que funcione ou ainda que tenha um segredo. Um fundamento que o acusador não conhece.
Ambiguidade entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma prática autodefinida, o feiticeiro pode adquirir paradoxalmente poder sobre o acusador.
A ambiguidade entre sujeito e o objeto do feitiço: feitiçaria é uma arte da sedução e da sujeição, pessoas se tornam objetos e eles podem ser vistos como pessoas.
A ambiguidade fundamental da magia é aquela entre segredo e ceticismo: é a ocultação que a faz poderosa, facilitando a apropriação de novos elementos.
O ato ou evento de encontro com esses elementos, na qual o segredo é revelado, confere a eles um poder excepcional.
A primeira definição de feitiçaria dada por Bluteau no vocabulário português e Latino de 1713, é que feitiço é um evento que em si não teria consequências se não fosse causado pelo diabo.
Um feitiço é um evento que não pode ser reduzido às suas causas naturais, pois nesse sentido seria um milagre, porém no sentido oposto, não causado por Deus, mas pelo diabo.
O que diferencia o ato mágico é a coincidência: o fato de que esse evento, aparentemente natural, acontece em correspondência com outro evento social.
Os feitiços, são eventos excepcionais da intervenção de forças extraordinárias no mundo. Os atos de feitiçaria não seriam necessariamente objetos rituais, nem os objetos de feitiçaria seriam necessariamente objetos de culto. A religião do diabo seria a idolatria, e a feitiçaria não é idolatria, assim a feitiçaria seria um fato universal não culturalmente específico.
Para um objeto ser especial, não importa o resultado dos atos rituais, mas sim, que são resultados de eventos excepcionais, como a baba recolhida da boca do homem na hora da morte, ou a corda que matou o homem na forca.
O discurso da feitiçaria sofreu várias transformações, em paralelo as dinâmicas de poder nas relações entre diversos povos e projetos coloniais. Porém, a estratégia que muitos pesquisadores do mundo afro-americano ainda seguem é procurar identificar as origens africanas por trás de descrições de rituais e objetos em contextos de acusação de feitiçaria no Novo Mundo.
Os objetos que encontraram nos documentos de acusação de feitiçaria revelam que eram usados por escravos como forma de resistência cultural e cuidado espiritual.
A feitiçaria no mundo atlântico era um método particularmente eficaz de se apropriar de objetos, pessoas, discursos e objetificá-los.
A mandinga foi um dos avatares ou encarnações da feitiçaria no mundo atlântico.
“Mandinga” é um termo que virou praticamente sinônimo de feitiçaria e “mandingueiro” sinônimo de feiticeiro no mundo atlântico lusófono do século XVIII.
Esse termo vem da África Ocidental, querendo dizer os assim chamados “mandinga”, vinham dos impérios de Mali, no interior do continente; no século 16 diversos grupos mandinga conquistaram partes da costa da Guiné onde portugueses lançados e tangomaos entraram em contato com eles.
Objetos como amuletos, escapulários e rosários eram fortes indicadores de adscrição religiosa (cristã ou muçulmana), mas às vezes também podiam ser signo das ambiguidades entre povos e religiões no contexto colonial.
Vendo a forma de proteção dos mandingas, os povos que também estavam na Guiné começaram a usar de forma comum objetos de proteção e amuletos produzidos pelos de “dexerims” ou “bexerims” mandinga, Doutores da Lei islâmica.
No século XVII já tem referências das bolsas que os muçulmanos fazem para “engano”, as bolsas de mandinga.
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Artigo "Feitiço e fetiche no Atlântico moderno" Parte 2
Artigo feito por Roger Sansi na Goldsmiths College – University of London
As bolsas de mandinga se tornaram extremamente populares no mundo português entre os séculos 17 e 18, não só na Guiné, mas em particular na capital do Império, Lisboa.
Eram diversas as variedades de bolsas em Lisboa, como para proteção em brigas, ganharem em jogos e obter a graça das pessoas.
A inquisição então começou a ir atrás das bolsas de mandinga e encontrou nelas: pedras, paus, ossos, cabelos, peles de animal, folhas, plumas, pós, partículas consagradas, pedaços de pedra D ́ ara, orações e etc. O material comum da feitiçaria eram objetos díspares encontrados em situações excepcionais milagrosas, relíquias desses milagres.
As bolsas de mandinga não eram usadas só em Lisboa ou no Brasil, mas também nos extremos mais remotos do mundo atlântico português.
O nome das “bolsas” não é sempre Mandinga: elas são também chamadas de Sallamanca, Cabo Verde ou São Paulo.
Sweet e Harding interpretaram as bolsas de Mandinga como objetos da resistência africana contra o Império Português e a escravidão.
Já Bastide defendia que a feitiçaria foi usada pelos escravos como arma de resistência e sobrevivência.
Porém, o argumento da resistência escrava parece ignorar o discursos dos acusados de feitiçaria, como eles foram registrados: o objetivo das Mandingas é se proteger do infortúnio, fechar o corpo contra a influência de pessoas feiticeiras e espíritos, e propiciar o contato com outras pessoas ou entidades.
Donos de escravos também usavam Mandingas, e os acusados de feitiçaria não eram só escravos, ou negros, pelo contrário: só 62 do 652 casos de feitiçaria denunciados á Inquisição portuguesa entre os séculos XVI e XVIII foram negros ou mulatos, menos de 10%.
As bolsas eram usadas por pessoas de diferentes origens e classes sociais, escravos e livres, negros e brancos. A feitiçaria fazia parte da vida de todos.
O discurso da feitiçaria mostra a extrema violência e injustiça do mundo colonial; mas essa violência não se reduz a uma contradição escravo/dono, branco/preto, ela era muito mais ampla: da perseguição religiosa contra os judeus e muçulmanos ao conflito de classes entre fidalgos e povo, reinóis e brasileiros, homens e mulheres, incluindo até conflitos entre escravos de diferentes origens, escravos e libertos, etc.
O discurso da mandinga e da feitiçaria é um discurso sobre o poder cotidiano e a violência de todos contra todos, um discurso que o tráfico atlântico de escravos intensificou, sem dúvida, mas que já existia e que continuou depois do fim do tráfico.
Lembremos das variações da origem da bolsa mandinga: Mandinga, Cabo Verde, São Paulo, Sallamanca: os quatro cantos do Atlântico. O importante é que não seja daqui, mas de fora, de um lugar excepcional. 
O feitiço tem que se revelar numa situação excepcional para que se possa reconhecê-lo.
Encontrar um fetiche é um evento que tem alguma coisa de imprevisível.
Podemos ver as bolsas de mandinga como objetificações desses eventos, dessas histórias pessoais. Não são somente símbolos de uma religião qualquer ou cultura, mas índices de vidas particulares.
Há de fato uma diferença radical entre feitiço e fetiche: o feitiço é um objeto da feitiçaria, ao passo que o fetiche está no fundamento de uma religião, o fetichismo.
Na costa da Alta Guiné, a precária evangelização dos tangomagos teve como resultado a exportação da feitiçaria Mandinga. Na área do Golfo da Guiné, dos portos entre os  atuais Gana e Nigéria, “nunca uma alma foi convertida”, porém é precisamente nessa área onde nasce a palavra fetiche.
É muito difícil tentar entender porque a palavra “mandinga” virou tão popular no mundo português. Parece que feitiçaria e feitiço se tornaram em palavras usadas pelos africanos similarmente ao modo como mandinga e mandingueiro eram usados no mundo português.
Bosman falava: o que eles se representam por esses fetiches, eu não compreendo, porque de fato, eles mesmos também não se entendem. E essa é a questão central, os fetiches, os deuses, não representam nada, mas eles se fazem presente, eles são o Deus.
É difícil entender a cultura de cada povo, mas podemos fazer um paralelo aos soldados britânicos que fizeram o impossível para salvar a bandeira de seu país, mesmo arriscando completamente suas vidas, coisa que Bosman entende.
O problema, é que o fetiche não é radicalmente incomensurável para os europeus, ele é próximo demais. Ele lembra o catolicismo.
O fetichismo parece com Papismo, já que a ideia do feitiço, bem como da feitiçaria, bem de Portugal. Mas o que é extraordinário é que eles não são capazes de reconhecer esse fato: os fetiches africanos eram parecidos demais aos santinhos católicos e isso era intolerável para eles pois confundem religião e comércio.
Para os protestantes e os livre-pensadores, religião e comércio são incomensuráveis: a religião é um assunto privado, de crença pessoal, de submissão incondicional a fé em Deus, e o comércio é um assunto público, social, em função da oferta e da demanda, da “mão oculta” da economia.
Muitos seguiram a senda de Marx, descrevendo o capitalismo como um fetichismo.
Bluteau, define o fetiche como “nome que os povos de Guiné, na África dão aos Ídolos que eles adorarão.” e afirma que possivelmente, o termo português feitiço vinha do africano fetiche, quando de fato é o oposto!
O termo começa a aparecer na década de 1860 em jornais baianos, em particular O Alabama, que tinha iniciado uma campanha particular de combate contra o nascente candomblé. Começa a aparecer uma imagem do Candomblé não só como feitiçaria, mas como o culto organizado.
Com a Primeira República e o fim da escravidão, a questão da feitiçaria e a religião adquire, aparentemente ainda mais vigência. A Igreja Católica procura renovar-se, com o qual procura extirpar as práticas mágicas e impor a autoridade dos padres.
A “Ordem” e o “Progresso” defendidas parecem pender por um fio num país dominado pelo “fetichismo”. Por outro lado, a República promulga leis contra as práticas mágicas e o curandeirismo, propondo a perseguição das práticas, mas também indiretamente sancionando a sua efetividade: as leis não perseguiam todas as práticas mágicas e espíritas, mas as usadas para o engano e o mal. A discussão então estava construída em torno de uma crença comum na existência e no medo do feitiço.
Nas colônias inglesas, o termo fetichismo cai em desuso, e tanto administradores coloniais como etnógrafos começam a falar de “bruxaria”. O fetichismo provavelmente teria sido substituído por “animismo”, ou mesmo “magia”.
Os administradores traduziram o problema associando-o à história da bruxaria na Europa Assim, eles desmantelavam por um lado a construção do fetichismo como religião e sistema de poder e saber completamente impenetrável para os europeus.
Enquanto a África era impenetrável, desprezível e ,só boa como provedora de escravos e ouro, no fim do século XIX, a imagem das “crenças” africanas começou a mudar. Definindo essas crenças simplesmente como "bruxaria", elas pareciam mais adaptáveis ao domínio colonial.
Paradoxalmente, a legislação anti-bruxaria produziu o discurso da “bruxaria” como “problema africano”, que foi consequentemente assumido pelos mesmos nativos. No caso do Brasil, o discurso sobre a religião prevaleceu sobre o da feitiçaria, ao passo que na África, o discurso da feitiçaria e da bruxaria foi recuperado para justificar as práticas coloniais.
O objetivo principal desse artigo era descentralizar a história da feitiçaria e do fetiche do dualismo ocidental versus africano. Eles são duas caras do mesmo processo histórico.
Foi através das palavras portuguesas que os europeus definiram a África: foi como uma extensão de longa guerra cultural contra os católicos que se desenvolveu a crítica radical do fetiche. Os protestantes ganharam, claro, e o mundo lusófono, incluindo o Brasil, ficou por fora da narrativa dualista da modernidade.
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Trechos retirados do livro: Pequeno manual antirracista de Djamila Ribeiro
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1. ed. São Paulo: Editora Schwarcz S.A., 2019. ISBN 978-85-359-3287-4.
A população negra havia sido escravizada, e não era escrava -  palavra que denota que seria uma condição natural.
Falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural.
Na Constituição do Império de 1824, cidadania se estendia a Portugueses e aos nascidos em solo brasileiro, inclusive a negros libertos. Mas esses direitos estavam condicionados a posses e rendimentos.
A Lei de Terras de 1850 extinguiu a apropriação de terras com base na ocupação e dava ao estado o direito de distribuí-las somente mediante a compra.
O racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não simples ato da vontade de um indivíduo.
Como diz Silvio Almeida em seu livro Racismo Estrutural: o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo.
A inação contribui para perpetuar a opressão.
A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos, mais grave é não reconhecer e não combater a opressão.
Eu reparava que minhas colegas brancas não precisavam pensar o lugar social da branquitude, pois eram vistas como normais: a errada era eu.
Simone de Beauvoir  afirmava que não há crime maior do que destituir um ser humano de sua própria humanidade, reduzindo-o à condição de objeto.
É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto frases como “eu não vejo cor” não ajudam.
Uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que  entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio.
A branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas estrutural: a posição social do privilégio bem marcado pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja deliberadamente violento.
Até serem homogeneizados pelo processo colonial, os povos negros existiam como etnias, culturas e idiomas diversos, isso até serem tratados como “o negro”. Tal categoria foi criada em um processo de discriminação, que visava o tratamento de seres humanos como mercadoria.
O primeiro passo é desnaturalizar o olhar condicionado pelo racismo, o segundo é criar espaços, sobretudo em lugares que pessoas negras não costumam acessar.
É impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista.
Eu brinco que, muitas vezes, pessoas brancas nos colocam no lugar de “Wikipreta”, Como se nós precisássemos ensinar e dar todas as respostas sobre a questão do racismo no Brasil. Essa responsabilidade é também das pessoas brancas, e deve ser contínua.
Conhecer histórias africanas promove outra construção da subjetividade de pessoas negras, além de romper com a visão hierarquizada que pessoas brancas têm da cultura negra, saindo do solipsismo Branco, isto é, deixar de apenas ver humanidade entre seus iguais.
Esse debate não é sobre capacidade, mas sobre oportunidades.
Se só convivemos com pessoas de um determinado grupo ou classe social, acreditamos que só aquelas pessoas possuem capacidade para determinados cargos, relegando outros grupos a lugares predeterminados como se não fossem sujeitos capazes.
O epistemicídio, é o apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos.
É danoso que, numa sociedade, as pessoas não conheçam a história dos povos que a construíram.
É importante dizer que o debate sobre a apropriação cultural não deve ser reduzido a poder ou não usar turbante. A discussão pertinente é aquela que denuncia o quanto culturas negras e indígenas foram expropriadas e apropriadas historicamente. Nos processos de colonização, a visão de cultura do colonizador foi imposta, enquanto bens culturais eram saqueados.
É importante que se tenha uma preocupação real em não desrespeitar os símbolos de outras culturas.
Quando eu conheço uma cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se informar.
Racismo Recreativo: um mecanismo que recobre a hostilidade racial por meio do humor.
Os incentivos para imigrantes fizeram parte de uma política oficial de branqueamento da população do país, com base na crença do racismo biológico de que negros representariam o atraso.
Enquanto atores brancos e atrizes brancas recebem amplas oportunidades de representação na indústria audiovisual, negros e negras ainda lutam para que suas atuações não firam a humanidade de pessoas negras. Do mesmo modo, ainda são poucos os cineastas, roteiristas e produtores negros.
Atribuir uma qualidade negativa ao fenótipo negro, falando coisas como “cabelo ruim”, diz muito sobre os padrões de beleza racistas impostos em nossa sociedade.
É uma postura ética: questionar as próprias ações em vez de utilizar a pessoa amada como escudo. A escuta, portanto, é fundamental.
Os negros representam 55,8% da população brasileira que são 71,5% das pessoas assassinadas.
É uma política de segurança pública voltada para repressão e o extermínio de pessoas negras, sobretudo homens. 
Entre março de 2016 e janeiro de 2018, os policiais foram as únicas testemunhas em 71,14% dos processos envolvendo tráfico.
Porém, um julgamento não pode se pautar única e exclusivamente pela palavra de quem prendeu, pois se corre o risco de tornar o policial juiz e carrasco do caso.
Historicamente, o sistema penal foi utilizado para promover um controle social, marginalizando grupos considerados “indesejados”.
No Brasil, foram várias as legislações que visavam criminalizar a população negra, como a Lei de Vadiagem de 1941, que perseguia quem estivesse na rua sem uma ocupação Clara justamente numa época de alta taxa de desemprego entre homens negros.
Em 2015, um homem negro teve sua condenação pelo “tráfico” de 0,02 grama de maconha. Para comparação, não há violência policial em ambientes ricos, como festas universitárias, mesmo sabendo-se do uso de drogas nesses lugares, como ocorrem nas periferias.
Sabemos que hoje dois em cada três presos no Brasil são negros.
A confusão da negritude com o crime não ocorreu naturalmente. Ela foi construída pelas elites políticas e midiáticas como parte de um amplo projeto conhecido como Guerra às Drogas. Na era da neutralidade racial, já não é permitido odiar negros, mas podemos odiar criminosos, diz a advogada Michele Alexander.
Está ocorrendo um genocídio da população negra. 
O assassinato dos jovens negros deveria criar uma crise ética na sociedade brasileira. No entanto, não há revolta com tanto sangue derramado, enquanto há enorme comoção na mídia quando a violência tira a vida de uma pessoa branca.
Pessoas brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente, e pessoas negras podem se conscientizar dos processos históricos para não reproduzi-los.
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