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Capítulo 2 - Tchaga
Ano 507 do 10º milênio
A noite estava com um ar sombrio na Vila Alagada, a setenta quilômetros da capital de Nassaris. A chuva que caiu durante o dia inteiro deixou o chão repleto de poças, onde a estrada estava sulcada pelo fluxo dos automóveis. Muitas bancas de vendedores eram montadas durante o dia, tomando metade da largura das ruas principais. Ao final do dia o chão estava cheio de verduras podres e sujeira. À noite o movimento dava lugar a toda natureza de entretenimento: muitas pessoas de fora se apertavam nas ruas estreitas procurando diversão, entorpecentes, garotas ou fazer apostas nas mesas de jogos, mas sempre há aqueles que estão mais interessados em briga, roubo ou coisa pior.
Era comum serem encontrados cadáveres nas sarjetas ou perto do rio, atrocidades que causavam pavor até mesmo na Era dos Reis. Eram tempos incertos e sombrios aqueles. A expansão nagariana ainda não tinha permanecido ali após do atentado do ditador Rakah a UHEM Nassaris. A única lei que existia era a do mais forte ou mais armado, e as pessoas não demoraram a entender isso após a 1ª Guerra Nagaro-Ganeriana e a aniquilação do SQCC. Nagaris se tornou uma república e, aparentemente, perdeu o interesse pela missão de colonização no continente. Nassaris se tornou um país órfão de lideranças. Assim como na maior parte das cidades remanescentes da Mésola que apostaram em Nassaris. Nesse vácuo de poder, a qualquer momento alguém se levantava e se autoproclamava dono de alguma cidade desgovernada, então vinha outro reclamar esse e assim iniciavam as disputas, tal como os reis de outrora antes de inventarem as fronteiras e os países. Agora as disputas eram entre centenas de facções.
A vila Alagada fora reconstruída em cima de ruínas, como tantas outras. Sua renda principal vinha do comércio. No início foi uma vila de pescadores que moravam em palafitas às margens da Lagoa das Garças, principal nascente do Rio Nerige. Alguns contam que os primeiros moradores pescavam sentados na varanda de casa nos tempos de fartura; a fama do lugar se espalhou tanto pelo Deserto Caudaloso quanto nas Terras Verdes, e logo o lugar virou um caldeirão de comércio; agora o peixe já não era suficiente para alimentar a vila. A pesca acabou com a maioria dos peixes devido a época da fome, e os pescadores fizeram pequenas lavouras, no entanto o chão era pobre, então foram feitos canais de irrigação para mantê-las. Quando mais gente surgiu na vila esperando fazer bom dinheiro levando comida para o oeste, o comércio floresceu. Terras mais afastadas do lago e do rio passaram a ser disputadas e vendidas, mas o nome continuou sendo Vila Alagada.
Havia algumas casas com mais de dois andares nos morros, mas mais da metade eram telhados de amianto repletos de aparelhos de ar condicionados e uma profusão de fios desordenados como cabelos compridos que não começavam ou terminavam em lugar algum. Apesar de o lugar ser próximo a um lago, o lugar era abafado e quente, devido o clima tropical, e os mosquitos eram abundantes, assim como as doenças.
Um homem incomum se apertava entre os transeuntes. Vestia-se com uma capa preta larga e pesada de couro fosco e grosso, deixando apenas a cabeça descoberta, mas essa também estava coberta por uma máscara de algodão tingido de preto e enrolado no rosto, típica do deserto. O vento ficava mais forte anunciando outra chuva e sua força aos poucos conseguia levantar sua capa e revelar um peitoral igualmente coberto de negro e um par de manoplas de metal fosco cor de grafite. Os coturnos tinham as pontas revestidas do metal fosco rebitadas, cobertos de lama até onde o cano sumia por debaixo da capa. Uma criança suja vestida com trapos e short rasgado corria com outros pulando de poça em poça, mas ficou bestificado com a face do estranho que aparentemente possuía três olhos. Sua máscara tinha três lentes vermelhas e redondas, e uma delas estava na testa; a parte do nariz até a boca estava coberta sem denunciar seus traços. Parecia que ele não tinha um nariz para criar volume. Os garotos correram até ele com suas metralhadoras de madeira, elástico e tampas de metal.
– Ei moço. Moço. – Um dos garotos agarrou uma mão na capa do estranho.
Os olhos dela pareciam enormes com a cabeça ossuda. Havia um corte no couro cabeludo com uma crosta de sangue coalhado. A cabeça estava raspada irregularmente, com tufos desordenados de cabelos mal cortados, provavelmente obra dele mesmo. Vestia apenas uma camisa de adulto que lhe cobria a nudez até metade das canelas chupadas e manchadas de cicatrizes.
– Moço, me dá uma moeda. – Dizia outra oferecendo sua arma de brinquedo. – Eu te dou minha arma, e minhas balas. – Mostrou um saco de fibra pequeno com uma dúzia de tampas.
O homem parou por um instante enquanto as crianças sujavam seu manto com as mãos empapadas, mas não olhava para elas. Ele procurava alguém na multidão.
Outro garoto mais velho abriu a capa do homem durante um esbarro e puxou sorrateiramente de lá uma adaga prateada com cabo de osso. O homem percebeu e o encarou; ele correu desesperadamente pela multidão. As crianças sumiram como se tivesse se entrado no chão. O estranho sentiu a ausência da adaga na bainha esquerda e viu o garoto esbarrando em uma banca de pastel. Era difícil correr em meio tanta gente caminhando aleatoriamente.
O homem correu em ziguezague entre a multidão e alcançou o ladrão com um único pulo que o fez comer um bocado de terra. O punhal não estava mais com ele.
– Por favor, não me mate! Não me mate! Eu não fiz por mal. – O garoto levava as mãos para junto do rosto e chorava como um menino com metade da sua idade. Seu nariz assuava lama e a roupa estava mais suja que o próprio chão.
Ele levantou o ladrão pelo colarinho da blusa.
- Pois não devia roubar as pessoas, já que não quer encrenca. Felizmente aquela adaga era falsa, sem valor. – Riu o homem soltando seu pescoço. – Você não é um bom ladrão. Só um galo que cisca lama como você pra ter perdido o brilho.
- Como assim? Eu senti o peso dela, eu vi o brilho...
- ... No escuro? Aquilo é chumbo, idiota. Madeira e chumbo folheado de prata. Nem sequer possui um gume. Acha que eu a deixaria solta na bainha se fosse verdadeira? – Ele segurava o rapaz pelo ombro com uma força que parecia não ser humana.
- O o quê?! M-mas que droga... – Resmungou.
O garoto moveu a mão esquerda discretamente para as costas e os olhos se voltaram para os pés. Acabou de se entregar, seu imbecil, pensou o homem. Ele agarrou o pescoço do garoto com uma mão tão dura que mais parecia ser feita de metal.
- Acho melhor devolver a adaga, caso não queira ficar com uma mão a menos. Eu vi você levando a mão às costas. Estava verificando se era falsa? - Devia se envergonhar do mal ladrão que você é... Nem sequer sabe dissimular.
O ladrão agarrava o homem desesperado para se desvencilhar. As pessoas ao redor começavam a prestar atenção nos dois. O homem da banca de pastel apareceu com uma faca de açougueiro e as mãos grudentas de óleo.
- Corte a mão desse ladrãozinho fedorento. Ele derrubou meus pasteis junto com o óleo. Senão tem dinheiro para pagar, que um coto no lugar da mão lhe sirva de lição, que é o que ele merece. – Rosnou com saliva espumando nos cantos da boca.
A cabeça do ladrão estava vermelha pela pressão do sangue. Um dedo estava cortado por baixo da unha e fazia uma linha de sangue escorrer pela mão esquerda.
– Meu irmão. Eles levaram meu irmão... – Voltava a chorar o garoto.
– Do que está falando? Que irmão?
– Ele virou mercenário... – cuspiu as palavras com esforço.
– Como se chama? Talvez eu possa lhe poupar a mão caso me devolva à adaga e se desculpe com ele. – disse indicando o homem do pastel com a cabeça. – Ele é da irmandade?
– Desculpa não cobre prejuízo! Esse rato de esgoto merece ficar sem as mãos, já que não as usa pra trabalhar. – Ralhou o pasteleiro com a faca apontando para o pescoço do rapaz.
O estranho puxou a adaga que tinha na bainha direita e se interpôs entre o pasteleiro e o garoto com uma lâmina mais larga, mais grossa e uma ponta mais aguda. Ele ficou com os olhos vitrificados ao ver a adaga cheia de negros desenhos tribais entalhados no metal e um gume meio vermelho de sangue antigo. Outros mais que estavam por perto pararam para ver o estranho defendendo o ladrão. Alguém gritou mais ao fundo sobre um duelo. Uma luta. Eles estão ansiosos para ver sangue. Bando de urubus.
– O que achou da lâmina? Não é qualquer uma não é mesmo? – sua voz era abafada pela máscara.
– Senhor. Não quero confusão. Só quero trabalhar em paz. – o homem com a cara branca de tão assustado levantando as mãos trêmulas. – Eu pago meu tributo à Irmandade religiosamente todo mês sem atraso. Tudo que quero é sossego para trabalhar. Por favor, me perdoe, eu não quero causar problemas para a Irmandade.
Com o colapso dos estados mesolinos, primeiro vieram as gangues financiadas pelo tráfico de entorpecentes, mas agora surgiram facções cada vez mais organizadas, alguns chegavam a se intitular como Irmandades, que visavam remodelar as vilas arruinadas para as máfias. Elas conseguiram armamentos mais sofisticados e se autoproclamavam senhores dessa ou daquela vila, a maioria.
Ao invés das facções que obtinham lucros nas vendas de drogas, elas passavam a controlar todo o fluxo de bens e serviços e impunham tributos, e assim obtinham status não apenas de estado paralelo, mas governantes principais, e uma receita muito maior que nos tempos do tráfico. Eles cobravam tributos de todos que trabalhavam mensalmente, e obrigavam os desocupados a ter uma ocupação, de tal forma que não se via mais mendigos e pedintes nas ruas facilmente, e se via, não duravam muito tempo pra amanhecerem mortos. O valor cobrado variava entre vinte e quarenta por cento, dependendo do parecer dos cobradores de impostos. A moeda nagariana ainda circulava no comércio, mas como não havia mais cunhagem de novas moedas, a mesma começou a sumir e se tornar mais rara e valiosa, a ponte de quem tinha, preferir guardar, talvez na esperança de que, um dia, aquele grandioso e próspero império voltasse. A moeda passou a ser usada em transações maiores, e os trabalhadores comuns passaram a praticar escambo.
Ele pensa que sou da irmandade.
- Talvez essa adaga possa cobrir o seu prejuízo. – Girou a adaga no ar e a aparou como cabo virado para o pasteleiro. – Pode ficar com ela pelo preço da mão do garoto? Tenho certeza de que a irmandade vai gostar de obtê-la em forma de tributo.
- Se.... se é o que o senhor quer... – Pegou a adaga e contemplando sua beleza – É realmente muito bonita! Muito obrigado, senhor. – Fez um gesto de agradecimento e saiu a passos largos.
As pessoas que assistiam a conversa ficaram decepcionadas e retomaram o que estavam fazendo.
- Por que fez isso? – O garoto não tinha mais medo, apenas espanto.
- Agora me devolva essa adaga antes que eu me arrependa.
O garoto obedeceu à ordem do estranho.
- Uma tática interessante a sua.
- Não entendi... – O garoto tirava a blusa enlameada.
Ele tinha um rosto que poderia se passar por um menino de doze anos se tirasse a barba espessa que lhe cobria as bochechas. Garotos adoram parecer mais velhos. Tinha um rosto quadrado e era entroncado, de ombros largos apesar de ser baixo para sua idade aparente de algo por volta de dezesseis anos.
– Usar as crianças como distração para fazer seus furtos. Aposto que ganha mais do que aquele pasteleiro nervoso usando esse golpe. Também paga tributo?
– Não faço isso por que gosto, nem sou daqui. Muitos vão pro Distrito Militar só por que eles dão comida. Esses são tempos difíceis para pessoas como eu.
É mais fácil roubar, não é mesmo? Quis dizer.
– Você disse que eles levaram seu irmão. O que quis dizer com isso?
– O EV. Meu irmão roubava coisas com outros garotos; eu ajudava meu pai a descarregar caminhões no mercado da Vila dos Irmãos, do outro lado do rio. Os Escorpiões Vermelhos chegaram à vila e levaram alguns garotos. Meu irmão mais novo resolveu se juntar a eles.
O estranho de capa preta conhecia histórias desse bando. Essa prática era comum entre a facção mais bem-sucedida até então em toda Mésola: os EV (Escorpiões Vermelhos). Jogue algumas moedas no chão de uma vila como essa e logo surgem crianças esfomeadas como baratas atrás de migalhas, muitas delas órfãos. Eles prometem uma vida de aventuras, amigos e fartura. Prometem um fuzil, roupas e fazer deles homens de verdade. Depois submetem os pobres coitados a um treinamento desumano – são jogados nos lugares mais inóspitos para se virarem sem nenhuma ferramenta além da roupa de baixo e das mãos - os faz matar uns aos outros, colocando os mais fortes para fuzilarem os mais fracos. Testam sua fidelidade com centena de testes e rituais, e os que se atrevem a desertar ou se amotinar são igualmente fuzilados por seus próprios companheiros e suas cabeças são empaladas nas praças com uma placa abaixo explicando o motivo daquela cabeça furada na testa estar sem corpo. Nada amadurece mais um homem do que tirar a vida de outro, como dizia um velho provérbio de guerra.
– Isso foi escolha dele. Você não pode fazer nada agora que ele está nas mãos daqueles sujeitos. Você sabe o que ele escolheu? O que pegou do chão?
– Eu o vi fugir pela janela de casa com um saco nas costas e um cordão no pescoço com uma bala de pingente. – O garoto pareceu confuso com a pergunta do homem, como se desconfiasse de algo. – Descobri que eles estão escondidos por aqui. Preciso tirar meu irmão das mãos deles. É meu único irmão vivo. Gritei para ele, mas não me deu ouvidos.
Ele caiu nas graças dos Escorpiões. Eles sempre jogavam moedas, comida e munições de fuzil para as crianças em todas as vilas onde faziam seus recrutas mirins. O que poucos sabiam era que esse era o primeiro teste: os que pegavam moedas eram os espertos, e por isso sua lealdade e esperteza eram testadas mais do que os demais em missões arriscadas; os que pegavam comida eram em sua maioria eram os sacrifícios durante os testes; e os que escolhiam uma bala tornavam-se os favoritos: os únicos que ganhavam um punhal após serem largados no meio do nada à própria sorte. Aqueles que passavam no teste e depois desertavam, eram caçados. Qualquer civil que conseguisse pegá-lo era recompensado pelo Escorpião Maior.
– Eu ando procurando por esses sujeitos. Se você sabe onde estão entocados, posso ir com você, e se eles tiverem mais munição do que destreza para atirar, nós podemos resgatá-lo.
O estranho sabia que eles mantinham pontos estratégicos nas vilas que mais lhe interessavam, e também olhos e ouvidos atentos a qualquer informação. Algumas pessoas das vilas nutriam simpatia por eles, mesmo que não abertamente, então nunca era possível saber de onde poderia vir o primeiro tiro, por isso ele jogava o mesmo jogo de sombras. Está em todos os lugares e em lugar nenhum.
Fergo indicou ao estranho um túnel onde via pessoas da irmandade entrando e saindo. Os dois se esgueiraram por antigos esgotos que desembocavam no rio malcheiroso e lodoso. Um coral sem fim de sapos coaxava uma sinfonia ensurdecedora pelos túneis de concreto repetindo “oi” inúmeras vezes em tempos descompassados e atropelados. Seria um trabalho duro para qualquer maestro alinhar a sinfonia dos anfíbios. A luz ia sumindo cada vez mais da entrada à medida que entravam no túnel, até dobrarem em outro túnel mais largo onde era possível ficar em pé. As botas do estranho estavam cheias de lodo e plantas, a beirada da capa pingando água. Um feixe de luz saiu da cabeça do estranho e iluminou o caminho pela frente.
– Desligue isso! Eles podem perceber que estamos aqui e nos pegar também.
– Está certo. Consegue se orientar muito bem nesses túneis, apesar da escuridão. Já andou por aqui antes?
– Eu vasculhei essa vila inteira. Ontem à noite quando estava no rio vi dois deles entrarem por esses túneis. Se eles entraram por aqui, talvez seja aqui que eles estão se escondendo.
– Você acha mesmo que tem alguma chance de sequer chegar perto do seu irmão antes de uma bala varar sua cabeça? E mesmo que consiga, por que acha que seu irmão iria lhe dar ouvidos? Como você mesmo disse: ele quis isso, ele fugiu e se juntou a eles. Eles fazem uma lavagem cerebral na cabeça dessas crianças. Seria melhor você esquecer isso e tocar sua vida longe dele, se por acaso gosta de respirar e queira envelhecer e ter netos para contar histórias.
– Eu tenho que pelo menos tentar. Ele acha que o pai não gosta dele, mas o pai adoeceu de tão triste, e a mãe chora todas as noites até pegar no sono. Acha mesmo que posso tocar minha vida dessa forma? Não posso deixar minha família assim, é tudo o que tenho nessa porra de vida. – O garoto esmurrava a parede de concreto do túnel abafando a voz num sussurro apertado.
– Então vamos ser silenciosos. Mantenha seus pés mudos. – Sussurrou.
O caminho por baixo do chão parecia não ter fim de tão fedorento. O cantarolar dos sapos havia se tornado bem mais distante. O estranho sentia freqüentemente ratazanas passando por suas pernas. Tudo estava mais silencioso. Silencioso demais.
O cheiro no ar estava começando a ficar diferente. Havia cheiro de carcaça de animal, sangue e vísceras em estado de putrefação. Algum animal morto com certeza. Uma luz vermelha tremulava distante em outra bifurcação. Eles escolheram seguir a luz.
A cada passo o sinal luminoso ficava mais nítido, passando de um lampejo para inundar o ambiente com sombras tão tremulantes quanto o seu brilho. O homem puxou a adaga da bainha vagarosamente, controlando a respiração até o mínimo possível. O garoto atrás mantinha os olhos baixos, sua sombra lhe dava um aspecto medonho, com os olhos imersos em sombras. Sua respiração também era baixa e os passos mudos, pisando nas beiradas para evitar a fita de água suja e lodosa acumulada logo abaixo.
Um vulto surpreendeu o estranho. Algo havia passado a frente da fogueira, algo grande e rápido, talvez uma pessoa. Os dois pararam e aguardaram por um instante. Eles se entreolharam por um curto momento. O homem fez um gesto para que o garoto ficasse atrás dele; ele obedeceu e então o outro seguiu com as costas rentes com a parede.
A fogueira tremulou novamente.
Ele parou levando a adaga ao peito. Respirou fundo e silenciosamente e seguiu mais um pouco. O fedor de carne em decomposição começava a lhe dar náuseas. Viu insetos que zumbiam em vôo e se batiam contra as paredes redondas do túnel e caiam na água. Algumas moscas também zumbiam junto com mosquitos perto de seus ouvidos. Levou a ponta da adaga até onde a entrada lateral por aonde a luz vinha. Sentia cheiro de fumaça e ouvia madeira crepitar suavemente. Era realmente uma fogueira.
O cheiro no ar ficou estranhamente doce. O fedor de carne morta havia desaparecido e tudo ao seu redor começou a embaçar até escurecer.
Acordou em uma escuridão. O ar estava escasso para respirar. Podia sentir o calor da fogueira e o cheiro de carne morta novamente. O cheiro doce havia desaparecido, mas algumas vozes sussurravam e davam risos abafados pelas mãos enquanto sentia seus joelhos afundados na terra. Sono de anjo, só pode ter sido isso que me fez desmaiar. Como esses cães esfarrapados conseguiram um anestésico tão raro? Alguém tossia enquanto uma mão o puxava do chão pelas costas para que ficasse de joelhos. Estou sem minha máscara.
Percebeu que não era o ar que estava escasso, e sim um pano preto que cobria sua cabeça amarrado no pescoço por um cordão apertado. Outra mão puxava sua cabeça pelo saco enquanto mais uma desatava a cordão que lhe apertava o pescoço. De repente a luz da fogueira inundou seus olhos. Sua máscara havia desaparecido. Depois de alguns segundos, seus olhos se ajustaram à claridade e ele viu que era o garoto quem estava com o seu capuz nas mãos em meio alguns outros homens, grandes e pequenos.
Os malditos Escorpiões Vermelhos.
– Que tipo de coisa é você? Parece com aquelas aberrações de circo com essa cara queimada. – Ralhou um gordo alto bigodudo. Seus olhos eram miúdos como os de um rato. – Eu também usaria uma máscara.
Todos começaram a rir.
– E quem é você, pedaço de bacon? – disse com sarcasmo.
Uma pancada fez seu rosto girar e perder as palavras imediatamente. Sentia gosto de sangue na boca. Outro homem, mais magro e sério apareceu das sombras ao seu lado.
– Você fala somente quando eu lhe solicitar, prisioneiro. – Sua voz era mansa como um sussurro. Seu braço direito só ia do ombro até o cotovelo, mas o braço esquerdo tinha um antebraço e uma mão pesada. Virou-se na direção do garoto – Fergo, você provou seu valor para com a irmandade dos Escorpiões Vermelhos mais uma vez com seu punhal. Nicsu, nosso pequeno merece uma honraria pelo dever cumprido. – O homem magro envolto de panos se colocou ao lado de Fergo e pousou a mão esquerda que lhe restava no ombro do rapaz de semblante sempre desconfiado. – Dê a ele uma pistola e a marca do escorpião.
Armas boas e de fábrica não eram mais tão fáceis de conseguir. Só no Distrito Militar existia indústria bélica, fora isso o resto era tudo artesanal ou relíquia dos tempos anteriores a guerra. A pistola de Fergo era sua primeira arma de fogo, depois dela conseguiria outras de calibre maior, conforme ia conquistando o respeito de seus irmãos. Então esse é o Escorpião Maior? Um homem franzino do braço mutilado?
O homem alto e peludo como um urso chamado Nicsu, saiu do meio dos que estavam reunidos ao redor da fogueira de capuzes. Pegou de lá um ferro de marcar gado com uma das extremidades incandescente. O garoto olhou para o ferro e não hesitou. Ainda estava coberto de lama e nu da cintura para cima. O urso se colocou a frente dele com o ferro brilhante.
– O que você sentiu na sua primeira vítima, Fergo?
Ele se referia a sua primeira peça de sacrifício: um palerma gordo e chorão que abateu tentando roubar sua comida durante o sono, em seus dias rastejando nos pântanos da Ilha dos Lobos, comendo rãs e insetos. O gordo tinha uma pederneira e uma pistola artesanal de madeira e cano curto e fino com um tiro, mas que não sabia carregar a arma nem acender o fogo. Um dia os dois subiam uma árvore para pegar ovos de pássaros, quando o gordo caiu e quebrou a perna. O gordo gritou como um porco sendo abatido e implorou misericórdia, mas Fergo achou mais fácil efetuar um disparo do que carregar um inútil.
O homem magro curvou a coluna para nivelar com os olhos dele. Sua voz era amável como a de um avô, mas o olhar era severo como de um juiz.
– O recuo da arma, senhor. – Seus olhos não demonstravam uma gota de temor.
– Muito bem, Fergo – abriu os braços e sorriu na direção dos colegas – Receba essa marca e seja um de nós até que os anos reclamem suas forças e os vermes a sua carne. – Fez um sinal com a cabeça para o urso.
O homem encostou o ferro no peito esquerdo de Fergo e sua carne chiou e fedeu, enquanto outros dois seguravam seus braços de modo que não pudesse escapar da marcação, no entanto Fergo não ofereceu qualquer resistência; o homem magro encheu os olhos de admiração. O garoto cerrava os maxilares da boca com força segurando seu urro de dor. Os olhos se mantiveram abertos apesar da dor. Os dedos se apertavam deixando as pontas vermelhas.
– Um guerreiro nasceu da carcaça desse menino! – Gritou o magro.
– Um irmão pelo qual morrerei sem hesitar. – Repetiu os demais homens e jovens em coro tirando seus capuzes.
– Um irmão para honrar, para partilhar e brindar!
– Um irmão para enterrar e vingar com sangue – disse o coro.
– Por que só o sangue pode pagar pelo sangue!
– E o seu sangue agora é o nosso sangue. – completou novamente o coro.
– Um escorpião dá a vida pelos seus. Um escorpião nasceu entre nós e foi selado conosco pelo ferro e pelo fogo. Saudem Fergo, nosso novo escorpião vermelho!
Os veteranos deram risadas, vivas e abraçaram o garoto; outro trouxe cerveja preta artesanal para o novato beber. Todos gritaram histericamente para que bebesse num gole só, e quando finalizou deram mais vivas e abraços. Era uma prática comum entre os Escorpiões Vermelhos e a maioria das Irmandades e facções criminosas que vagavam do Deserto Caudaloso à Mésola. Enquanto os soldados recebiam medalhas e insígnias pelos seus feitos e progressos, os Escorpiões Vermelhos recebiam medalhas de couro queimado na pele. A honraria que o rapaz recebia era a de Aceitação, uma cicatriz no formato de um escorpião em posição de ataque.
O estranho forçava a corda que atava seus punhos sem sucesso. Estava muito bem amarrada. Ele ouviu os homens ao seu redor gritar saudações em palavras enroladas que desconhecia. O complicado dialeto Hrogrûhl, antigo como as areias do deserto.
O estranho viu o homem magro pousar uma pistola na mão do garoto. Ele disse qualquer coisa para ele e pediu silêncio aos companheiros. De repente a cripta havia ficado silenciosa e o novo escorpião veio junto com o magro na sua direção. Fergo deu o golpe na arma e o encarou frio como aço.
– Você matou um dos nossos... como é seu nome mesmo? – Falou o magro.
– Tchaga, se lhe aprouver.
– E por que diabos Tchaga – disse com desdém – matou um dos nossos escorpiões vermelhos duas conjunções lunares atrás? – O magro era severo apesar do corpo esquio e do braço direito mutilado.
– Então aquele imbecil era um dos seus? Eu já devia esperar...
– Sim, ele era um esperto, um soldado valioso. Rendeu-me muitas moedas desde a primeira que lhe dei. Um bom investimento.
– Então você também anda treinando seus galos para violar mulheres além de roubar?
Galo era um termo pejorativo. Queria dizer bandido de pouca inteligência ou pequeno, que furtava apenas coisas de pequeno valor, como galinhas e roupas do varal. Também queria dizer ladrão covarde que só persegue presas fracas, uma forma fácil de afrontar um orgulhoso. Muitos recebiam a palavra como uma provocação séria e às vezes recorriam ao acerto por duelo com lâminas para limpar a honra, como se um ladrão pudesse ter alguma honra para limpar.
– Um homem tem suas vontades, você também não tem as suas? – Ele olhava com uma tranquilidade medonha. – Creio que tenha, ou você é um maldito eunuco?
Os homens riram. O chefe levantou a mão e logo silenciaram.
Tchaga se lembrava da noite fria e cinzenta em que chegara à vila pela primeira vez. Foi nessa noite que viu o homem de cabelos desgrenhados meio ruivo e sorriso perverso perseguindo uma garotinha de pequena estatura pelas ruas. Ela corria ofegante dobrando cada esquina que encontrava pela frente. Já era alta madrugada e tudo dormia menos ela e o pervertido em seu encalço. Por que ela não gritava? Ele perseguiu a investida do ruivo pulando de um telhado para outro, silencioso como um fantasma.
A garota havia dobrado uma esquina que dava para um final de rua. Se ela gritasse as pessoas nas casas ouviriam, mas ela não gritava. Seu cabelo curto e negro estava colado no rosto suado e oleoso; a maquiagem dos olhos borrada ressaltava sua expressão de desespero. Tentou subir pela parede que dava no final da rua pelas fendas que havia entre os tijolos onde havia faltado argamassa. Caiu três vezes e a cada queda tentava subir mais rápido e acabava caindo mais vezes. As pontas dos dedos estavam manchadas de sangue e a boca tremia em um choro mudo. Os olhos cintilavam de tão úmidos e algumas lágrimas começavam a brotar dos olhos. Soprava um vento frio do mato e a garota fechava os braços contra o busto para esconder um seio que pulava de um rasgo feito na blusa azul sem mangas.
O ruivo andava devagar, saboreando o desespero da vítima como um gato que brinca com a comida. Atrás dele surgiu outro garoto da sua idade com um chapéu de vaqueiro e um punhal tão prateado que capturava o brilho da lua menor. Cada um foi para um lado do estreito corredor que não daria para passar um carro comum sem quebrar os para-brisas e arranhar as laterais. A menina se apertava contra um canto chorando de um jeito feio como se não tivesse língua.
Ela era muda, a pobre garota era muda.
– E então, querida. As coisas agora estão ao nosso favor, a não ser que saiba voar. – Desdenhava o ruivo umedecendo os lábios com a ponta da língua.
– Fácil demais, presa fácil como criança. Ela deve ser louca por esta na rua uma hora dessas – Comentou o de chapéu. – Acho melhor a gente não mexer com ela, os outros podem não gostar disso. Eu não estou a fim de levar uma surra de novo. Vamos?
– Não. O medo dela me deixa excitado. – Olhou com um sorriso perverso no canto da boca.
A garota achou uma pedra solta na parede e tentou forjar uma expressão ameaçadora; eles ficaram aparentemente amedrontados e depois riram como crianças. Ela mantinha a postura. Sua expressão era agressiva, apesar de ela não intimidar nem um vira-lata de rua.
– Acha que vai nos derrubar com uma pedra? Você precisará abater nós dois com uma única pedrada se quiser fugir, sua maluquinha... – Os dois riam.
Ela aproveitou o momento e jogou a pedra, mas ambos desviaram com facilidade. Agora ela parecia ter desistido, não conseguia achar mais nada que pudesse arremessar. Apalpava mais uma vez a parede para subir. O seio ficou à mostra novamente enquanto enlouquecia tentando andar como lagartixa na parede.
Foi nesse instante que Tchaga pulou de cima da laje onde estava. O ruivo puxava os braços dela quando ele pulou logo atrás dele. Depois disso a única coisa que lembrava era do chafariz de sangue que virou a ruína do pescoço degolado do garoto. Ele tinha um rosto inocente e olhos infantis; agora estava pálido e se engasgando com o sangue em golfadas convulsivas; o outro que estava com ele fugiu como um vulto deixando o chapéu para trás, mas agora ele estava entre as figuras duras e assombrosas pelas sombras da fogueira que bruxuleava na cripta.
– De onde eu venho violação é algo grave e digno de punição até entre os ladrões. – Disse Tchaga para o seu inquisidor e encarando Fergo, que ainda apertava os dedos pela dor da marca do ferro. – Não se força uma mulher a abrir as pernas
– Receio que esteja longe de casa, forasteiro. Aqui eu mando. Aqui eu faço as leis e escrevo as tradições, e pouco me importa essa garotinha. Se ela quisesse guardar a boceta, deveria ficar em casa, não vadiando pela madrugada.
– Então o que pretende fazer de mim?
– Sangue só pode ser pago com sangue, assim diz nosso juramento de ferro e fogo. Sua vida pela vida do meu soldado.
– Reze para que meu bando não encontre essa sua estúpida trupe de circo com meu sangue em suas mãos. – Disse erguendo a cabeça. – Caso contrário terá muito sangue para derramar em honra dos seus. Provavelmente morrerá antes de saldar a dívida.
O magro riu e com ele os demais; Fergo não. Seus olhos não mostravam nenhuma emoção que se pudesse ler, apenas a desconfiança de sempre. A boca era azeda para sorriso e os músculos da face eram indiferentes.
– É mesmo? Nunca vi um bando com um único homem. – Os outros riram mais alto. – A única coisa que vejo em minha frente é um morto que respira e fala.
– Morto estará você se me apagar. Os meus sabem que estou aqui. Se eu não retornar, eles virão atrás de mim, e descobrirão vocês e os matarão. – Tchaga arquejava.
– Oh ho! Seu bando é assim tão numeroso e estúpido para defrontar os Escorpiões Vermelhos?
– Pode não ser numeroso, mas nosso armamento faz o seu parecer um fuzil de elástico e madeira.
– Essa conversa está bem interessante. Qual o nome desse seu bando tão bem armado? Por que a única coisa que achei de mortífero em você foi uma adaga. Por acaso vocês atiram facas no lugar de balas?
O bando riu histericamente.
– O meu bando são os Corvos da Noite, somos especialista em espionagem e infiltração.
– Mesmo? – O Escorpião Maior forçava uma expressão infantil de surpresa – E por que diabos eu nunca ouvi falar de vocês?
– Por que somos da Terra do Fogo. Um dos nossos descobriu que em algum lugar a leste do Deserto Caudaloso existe uma base secreta com tecnologias de armamento, munição entre outras coisas, inclusive centenas de painéis solares nagarianos em perfeito estado. A cidade é energeticamente autônoma. As Cidades do deserto mantêm uma vila em algum lugar daquele Inferno dos Extremos, que guarda seu arsenal e indústria dos olhos do Distrito Militar e das Trezes Repúblicas do Novo Mundo. Alguns dizem que o Distrito na verdade é uma maquiagem para o plano real criar um segundo Império Ganeriano. Todos nós vamos viver sob ditadura quando acontecer. A Mahasta está se preparando e fazendo alianças comerciais atrás de recursos para financiar essa tal base secreta. Os Corvos da Noite estão espalhados atrás de mais pistas e gente que saiba algo. Hoje a tarde uma criança na feira me garantiu que alguns mercadores de Qued Narfir estarão por aqui na próxima semana para comprar peixe pra Mahasta. Pretendo segui-los.
– É uma história extremamente interessante, caro Tchaga, – estalou os dedos – mas provavelmente não devem passar de mentiras bem contadas.
– Imaginei que não acreditaria. Não importa, sou só um morto que respira e fala, então acabe logo com isso. Meu único lamento é não poder ver meus irmãos esfolando seu rabo.
Os Escorpiões não riam agora, eles se entreolhavam cochichando. O líder deles percebeu e coçou a cabeça com a mão que lhe restava, franzindo a testa. Tchaga abaixou a cabeça e fitou o chão. Esse é o fim da linha para mim? Nem sequer paguei minhas dívidas...
– Estamos falando de armas industrializadas e grosso calibre?
– Provavelmente. Armas que ninguém tem além do Distrito.
– Isso soa como música para os meus ouvidos. – O magro deu um sorriso careado – Apague esse tal corvo da noite, Fergo. Precisamos preparar alguns carros de esteira e seguir para Qued Narfir.
Ele mordeu a isca.
–Você e mais quantos. – Perguntou o corvo.
– Tanto quanto eu quiser.
– Muitos homens são bons para ganhar batalhas, mas não para desenterrar pistas. Você nem sabe qual carro está os mercadores que vão seguir para a Cidade Secreta da Mahasta.
– Meu amigo poderia me contar antes de se tornar um morto que não respira e tampouco fala?
– Bem que eu gostaria, mas o que ganho com isso? – Disse Tchaga levantando novamente a cabeça de encontro aos olhos do chefe dos escorpiões.
– Talvez eu deixe você respirar por mais alguns dias. – Os homens saíram dos cochichos e riram novamente – Está bem assim?
– É uma oferta tentadora, mas não. Prefiro que vocês morram cobertos pelos ventos de areia no inferno dos extremos. Com certeza você não sabe como é a dança das dunas. Vão enguiçar no meio do deserto, fritando de dia e morrendo de frio à noite quando suas baterias acabarem e tiver que recarregar de novo. Ou você tem uma extensão de energia suficiente para atravessar o Caudaloso?
– Está bem. Você me convenceu. Prefiro dividir a carne a morrer de fome, se é que me entende... – Olhou para trás – Mas antes, gostaria de saber o que meus irmãos pensam.
Todos concordaram em manter o estranho vivo e seguir na aventura.
– Sairemos nessa sua aventura, mas se você estiver brincando conosco... – simulou um disparo de pistola com a mão – Mas... se sua história tiver fundamento, podemos dividir os espólios. Entendido?
– Entendi que precisa de alguém que já andou pelo Deserto Caudaloso. Todos sabem que bússolas lá são tão úteis quanto um guarda-chuva.
– Exato. – Disse estalando os dedos – Nicsu, leve esse homem para nossa cela menos fedida. Pode desamarrar as mãos dele depois de preso. Quero que nosso hóspede fique bem à vontade quando seus supostos companheiros com penas negras vierem à sua procura.
A touca foi colocada em sua cabeça novamente e Tchaga foi levantado do chão como um saco de fibra e jogado numa cela nos subterrâneos com uma réstia de luar entrando por um respiradouro no teto. Havia ossos humanos com pedacinhos de carne decomposta amontoados em um canto e um vaso sanitário espantosamente limpo do outro. Abaixou uma cama suspensa por correntes que estava encolhida na parede e se sentou por alguns instantes vendo os ratos roerem os ossos.
O antebraço direito amputado desse líder parece recente. Será se é o que procuro? Pensou Tchaga. Estou chegando perto do meu alvo...
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Capítulo 01 - Johrei
Ano 491 do 10º milênio
Dois meses e nada de reforços...
As nuvens estavam negras e baixas, e se moviam pesadamente pelo céu, como se fossem esbarrar nas colinas do lado do continente; os homens olhavam para o mar às vezes com uma fagulha de esperança. Não se via navios aliados, apenas um mar sem fim de águas cinza esverdeadas que se estendiam até onde a vista alcançava; confundindo-se com o céu nebuloso em uma fronteira imperceptível. Os ventos marítimos enchiam o ar com sons guturais e cheiro de sal, o vento batia na pedra fria, fazendo sussurros que pareciam dizer que estavam condenados. Já estava anoitecendo.
A 1ª Companhia Expedicionária Nagariana (1ª CEN), liderada pelo major Lino, após a morte do coronel C. Tiggar, contava com seis pelotões dos melhores fuzileiros navais da ilha, quase metade tinham no peito a salamandra alaranjada, que era o símbolo dos OpAnfs (operações anfíbias) e alguns o falcão de pedra dos atiradores de precisão. Todos começavam a passar fome. As rações e outras provisões estavam esgotadas. Os ratos se esgueiravam em menor quantidade pelos cantos do forte à medida que a fome dos homens se agravava. Alguns soldados se arriscaram a mergulhar pelo fosso no andar subterrâneo atrás de peixes no rio, mas um dia em que dois homens não retornaram, aquela saída se tornou um atrativo para quem desejava se arriscar pela última vez ou pôr fim à espera pela morte.
Os soldados da desenvolvida ilha Nagaris estavam acuados no continente, numa monumental ruína da Era dos Reis, na costa leste da Aléria, cercada por um fosso lamacento de água do mar misturada com a do rio. Havia uma grossa muralha de doze metros que emergia de dentro do fosso, e depois de mais uns quinze metros de água se chegava finalmente ao forte.
O forte Rowk no passado serviu de fortaleza para dezenas de reis e para cobrar pedágios para mercadores entrarem por rio no continente. Era uma grossa torre aredondada de setenta e oito metros de diâmetro na base, toda feita de pedras cinzentas gigantescas empilhadas sem argamassa, que se encaixavam perfeitamente, moldadas pelo peso de quatro séculos de existência. Havia ranhuras esculpidas pela chuva e o vento, subindo até setenta e sete metros de altura nas ilhas maiores do delta do rio Astalus – Um ponto estratégico que protegia o principal acesso fluvial à capital Dibokraio, a seiscentos e vinte e dois quilômetros rio acima – Era uma construção sem beleza, seca de detalhes, mas um terremoto dificilmente a derrubaria. A base era pintada de liquens. Seteiras se espalhavam por todo o lado como cicatrizes verticais para as balistas e besteiros. Os nagarianos espiavam por elas, presos no continente inimigo após uma operação fracassada contra os alerianos. Agora sonhavam com o resgate dos seus compatriotas.
O ataque a UHEM Nassaris (Usina Hidroelétrica Marítima) provou que o ditador Rakah Arlanproshlogo também dispunham de tecnologias para servir seu aparato bélico, e o Serviço de Inteligência de Nagaris, cruzou informações e apontou para a existência de um suposto Centro Secreto de Pesquisas Bélicas Avançadas na Aléria numa região rochosa e inóspita no interior da Aléria, próximo as Colinas de Nain. A 1ª CEN, com seu contingente, foi incumbida de encontrar esse lugar enquanto a guerra se desenrolava continente acima. Foram surpreendidos por duas frentes inimigas que os espremeram em um vale; os poucos que conseguiram fugir encontraram o centro, encontrando lá apenas papéis queimados e objetos jogados ao chão, exceto por um projeto que estava lacrado em andares inferiores escondidos, encontrado somente pela leitura térmica do local, que apontavam para um alçapão escondido. Foram identificadas manchas de calor no formato de mãos humanos nas paredes até que alguns andares abaixo todo ambiente se tornava uma grande mancha de calor. As paredes estavam quentes. Lá encontraram um projeto secreto altamente sigiloso.
Estavam muito distantes dos aliados, de modo que o major Lino deu ordens para retornar ao litoral e embarcar novamente nos navios que estariam ancorados sessenta quilômetros ao sul em dois dias, como foi combinado no planejamento da missão. O retorno foi um desespero. Nenhum sinal dos navios aliados, sequer sinais de combate ou presença humana além de restos de ossos espalhados, o mesmo destino tomou as baterias de obuses e seus homens que haviam montado resistência. Começaram a vagar pela costa pensando que haviam saído da rota, mas mesmo depois de dois meses procurando, nenhum aliado foi avistado, de forma que se abrigaram em um Forte cuja inscrição em mármore negro acima do portal dizia Forte Rowk na língua do continente. Batedores se revezavam entre explorar a costa e procurar por aliados. Os que conseguiam voltar traziam sempre com a mesma notícia: a costa permanece desocupada e nenhum sinal de presença aliada ou inimiga – a guerra estava acontecendo muito longe –. As pequenas missões serviram apenas para identificar rotas de migração de algumas espécies de aves para caçar e obter água que não tivesse gosto de cadáver. Mas no quarto mês, o inimigo os encontrou e montou um cerco, o que os empurrou para o forte, no entanto estavam igualmente debilitados de armamentos, o que em muito intrigou os nagarianos. O exército da ilha não estava habituado a se mover por uma terra tão vasta, mas parecia estar vencendo a guerra. Aquilo animou os homens para esperarem mais um pouco.
Foi uma espera entediante de cinco meses, um observando o outro para ver qual dos dois lados morreria de fome primeiro ou se renderia. Algumas noites, os soldados do cerco faziam invasões durante a conjunção das luas novas, usando cordas e ganchos para escalar – alguns caiam atingidos pelos guardas que estavam no turno; os demais invasores conseguiam passar alguns minutos antes de ser atirado de volta – Aparentemente o cerco não dispunha de nenhum armamento que pudesse comprometer as grossas paredes do Forte, tampouco se via tanques de guerra ou artilharia pesada sendo manuseada, porém começaram a cavar uma vala enorme com pás e homens para desviar o curso do rio para longe do forte, assim os nagarianos ficariam sem peixes e água potável. O solo ficou seco e rachado.
No Salão Menor do Forte, usado outrora para os banquetes da corte e recepção de governantes estrangeiros, um clima de tensão se inflamava. Hora e outra alguém gritava ou batia na mesa. As portas continuavam fechadas. No início os soldados se dividiam entre os que desejavam se render e os que preferiam morrer lutando, mas isso dois meses atrás, quando as duas opiniões dividiam os soldados em partes iguais. Não havia outra coisa para comer além de peixes migratórios cada vez mais escassos no rio, e agora o próprio rio estava secando com o seu desvio arquitetado pelos inimigos. Aquela era uma terra morta, somente o amargo capim-de-boi crescia nela. A fome deixou os homens fracos tanto de corpo quanto de espírito, a grande maioria pensava em rendição ou suicídio. Por sorte haviam juntado bastante comida das lavouras próximas que estavam abandonadas, no entanto não durariam por muito tempo.
Doenças se espalharam, uns tossiam sangue, outros eram afligidos dia e noite pela disenteria. Havia um cheiro de merda e doença no ar. Os doentes foram levados para os níveis inferiores na tentativa de controlar a epidemia, mas a estratégia não teve muito sucesso. Alguns em seu leito de morte perdiam totalmente o juízo ou a fé, imploravam por uma morte rápida e limpa; seus companheiros, ainda sadios, lhes davam a misericórdia de partir para o mundo dos mortos com um projétil no crânio.
– Eu disse que ia dar nisso. Estamos esquecidos nesse buraco de pedra – cuspiu – Fomos usados como peça de sacrifício! – dizia o 2º sargento Heigon, vendo as sombras dos acampamentos inimigos montados acima das colinas – Aposto que estão comendo carne assada com cerveja enquanto apodrecemos aqui, roendo nossos dedos. – apontou para o cerco – E agora nem água teremos quando completarem aquele maldito desvio.
– Nós vamos nos render, precisamos se render. Não podemos mais aguentar isso por muito tempo. Nunca imaginei que fosse comer meu cachorro. – murmurava Anevi sentado no chão com as costas na parede abraçando o próprio corpo com o casaco – Eu tinha esse cachorro...
–Desde os doze anos – interrompeu o sargento – Eu já sei Anevi. Você me disse a mesma coisa ontem, anteontem e no dia anterior a esse. Quer me deixar louco com esse seu maldito cachorro? Essa hora ele já virou excrementos nas nossas barrigas. Pare de delirar e esqueça isso.
– Ele está ficando mal mesmo, não para de tremer as mãos. – Dizia alguém ao lado tirando a temperatura do jovem. Sua braçadeira com uma cruz vermelha em fundo branco indicava que era um enfermeiro oficial de saúde.
Arregaçou as mangas do jovem e aferiu sua pressão. Pegou alguns remédios e preparou uma injeção, depois pegou a ponta da seringa com uma pinça dentro de uma pequena cuia de alumínio que estava sustentada por um tripé improvisado, aquecida por uma lâmpada de óleo querosene. Sua expressão era ao mesmo tempo delicada e indiferente à dor alheia. Um médico precisava ser assim. Alguém precisava manter a calma em meio tanta desgraça.
Anevi era um dos milhares de recrutas convocados às pressas pelo Exército Nagariano. Havia servido alguns anos atrás pouco tempo nas fileiras, apenas seis meses, o obrigatório, depois fora dispensado instantaneamente. Era magro como um espeto e de cabelos ralos, conhecendo a guerra mais na teoria. Tinha uma voz melancólica, enfraquecida pela fome. Algumas costelas podiam ser contadas de longe mesmo se estivesse vestido. Tinha olhos tão redondos quanto assustados. Um antebraço estava sustentado por uma tipóia e um fuzil de precisão estava preso na bandoleira, era de um soldado com brevê de Falcão morto. Apesar da sua constituição física esquia para um soldado, Anevi desenvolveu uma precisão aguçada no rifle de tiro longo, o que era mais impressionante pelo fato de ele ter se adaptado a atirar com apenas um braço. Foi o soldado que mais abateu pássaros nas missões de busca por suprimentos nas rotas migratórias, no entanto não revelou esse talento durante o serviço obrigatório.
Heigon era segundo-sargento temperamental, veterano de muitas batalhas, com um princípio de calvície nas têmporas. Era forte como um urso e exibia uma barba desgrenhada entrançada em duas pernas, amarradas nas pontas com pequenas e finas tiras de seda azul, um costume dos nagarianos das montanhas do norte. Algumas olheiras rabiscavam tons de cinza abaixo dos olhos e tinha um nariz largo amassado e uma barriga de cerveja.
Para todo lado homens se arrastavam desiludidos, cada um com uma carranca maior que o outro. Uniformes sujos e olhos fundos que pareciam maiores com a magreza dos crânios. Os rostos de alguns eram cadavéricos, e parecia não terem nada por baixo da pele além de ossos. Quase não conversavam mais, tampouco riam. Ficavam em suas sentinelas escuras esfregando os fuzis, como se desejasse serem logo mortos e por fim àquela espera.
De repente, um disparo é ouvido do andar inferior. Ninguém esboçou reação senão o reflexo natural de susto, mas até esse estava fraco.
– Quem foi dessa vez? – Perguntava um soldado alto para outro que vinha subindo a escada em caracol situada no meio do salão velho e fúnebre cheio de sombras encostadas nas seteiras.
– Foi um verdinho. Normal... – Murmurou de volta o que subia.
Os homens se olhavam consternados, numa tristeza muda que pairava no ar como um fantasma, um mau agouro radiando de seus olhos e se materializando em suspiros e rostos torcidos de indignação. Sentiam-se impotentes, acuados. Já havia se tornado uma rotina diária homens se matando para pôr fim ao tormento.
– Que Deus o tenha... Seja lá qual deus ele adore... – Consentiu Anevi sem esboçar nenhuma surpresa. A morte já o acabrunhava dia e noite, suspeito de pneumonia. O “da cruzinha”, como chamavam os militares da saúde, não havia dito nada a ele, mas nem era preciso.
– Eu não entendo. Será que os bastardos estão querendo nos matar de fome pra economizar munição? – Heigon sentou no frio chão de pedra e pegou alguma coisa de lá – Como alguém pode ter tanta disposição pra esperar? Eu acho que devíamos pegar as dinamites e explodir eles.
– Isso é suicídio, sargento Heigon. O senhor pretende mesmo abrir uma brecha num cerco de trezentos soldados? Eles nos fechariam antes que conseguíssemos passar – disse um garoto de dezenove com cara de dezesseis e barba quase invisível da outra seteira. – Precisamos de bem mais do que cinco dinamites pra isso.
Um soldado comum falando dessa forma com um sargento seria repreendido e humilhado, mas os soldados voluntários tinham bastante respeito entre os veteranos, pois estava ali por gosto, não obrigação como a grande maioria.
Esse era Johrei, soldado voluntário. O serviço militar era obrigatório apenas para maiores de dezoito anos, mas era facultativo a partir de dezesseis, e em estado de guerra, bastava ter 1,55 metros, não importando a idade. Mal havia ingressado no 15ª Batalhão de Infantaria Nagariana, na cidade de Dotzkin, foi movido para 1ª CEN para enfrentar logo de cara uma guerra intercontinental. Isso sim é um estágio decente, pensava o jovem soldado animado em como se gabaria dos seus feitos. Ele tinha um olhar obstinado e teimoso. Magro e baixo, de cabelos pretos e finos de traços nipônicos. A pele era um pouco morena, mas estava cor de leite pelos meses sem ver o sol dentro do forte. Observava o acampamento inimigo com um binóculo através de uma seteira móvel, onde ficava uma balista quebrada que ele adaptou como suporte para seu fuzil de precisão.
– Acha mesmo que vai chegar alguém? Isso é uma guerra, garoto. Cada dia que ficamos aqui enfraquecemos. Ninguém veio nos ajudar, já faz cinco meses. Eu risquei os dias na parede e contei as luas. Já estou cansado de esperar. Quanto tempo o velho Lino vai continuar se escondendo de nós na droga do seu Salão de Guerra? – Levantou-se num salto e cuspiu – Um oficial superior de verdade devia tomar decisões em momentos assim, não ficar se escondendo como uma menininha assustada.
– Eu também pensei que o Major Lino fosse alguém voraz. Esse major... – Johrei contava algumas balas que restavam no bolso. – Nem chega perto daquele que contam nas histórias. Se eu vi ele duas vezes depois que ficamos presos aqui foi muito.
– Isso foi quando ele era jovem. O Agora ele não passa de um velho assustado e cansado, e o fracasso dessa última campanha, pelo visto, deu um nó no resto de virilidade que ele ainda tinha. É mais fácil nos rendermos, isso sim. – Interrompeu Heigon – O inimigo come a nossa mente a cada dia.
– Precisamos manter a calma, senhores. Os capitães Neperin e Vallen estão preparando um plano. O próprio Neperin me agradeceu pelo esforço no trabuco de lastro. Disse que vai falar com o Major e me promover a cabo! – Johrei desapertava o cadarço do coturno e sorria com uma faca entre os dentes.
– É mesmo? Bom pra você, lobinho. Espero que encha sua barriga com essa divisa. Não tenho dúvidas de que suas divisas enfeitarão lindamente seu corpo definhado no andar debaixo. Você pensa que divisas dão superpoderes? Já faz cinco meses que estamos na droga desse lugar úmido – Ralhou Heigon em voz baixa – Precisamos de ação, não a porra de uma formatura de promoção.
Os dois se olharam numa fulminação que pareciam lutar mentalmente.
– Ele irá reunir todos no Segundo Salão para explicar nossa situação. Eu ouvi alguns caras comentando na hora da sopa ontem – Disse Anevi em meio uma crise de tosse. Esfregou a manga da camisa na boca e se recompôs.
– Como vocês ficam tão calmos presos nessa gaiola de pedra! Eles zombam de nós enquanto perecemos aqui – Heigon se levantou abruptamente. – Eu lhe daria minhas divisas de sargento se você fosse lá e buscasse uma marmita bem servida pra mim – Apontou irritado para o cerco inimigo.
– Está pensando em ir pescar, sargento? – Anevi levantou a cabeça de repente do meio dos joelhos.
– Sim, estou se é o que quer saber. Daria um braço inteiro para comer comida de gente novamente antes de morrer. A morte dança conosco todos os dias. Olhe para o Touro – Apontou para um soldado que passava carregando outro para baixo – Não pesa mais do que um bode agora. – Heigon olhou para Johrei, que mantinha os olhos colados no binóculo oleoso – Por que você tanto olha para o acampamento deles? Eles estão enchendo a barriga, não estão?
Você só pensa em comida, sargento... O inimigo já comeu sua mente faz tempo, pensou Johrei olhando para a barriga pequena e redonda do homem.
– Acho que estou sentindo o cheiro. Pão assado, ou bolo... Não sei, faz tanto tempo que não como nada... – Anevi olhava para fora de sua seteira colando o rosto na fenda. Os olhos amarelados lacrimejavam com a luz. A barba desgrenhada e rala acumulava caspa e sujeira de semanas. Os cabelos pareciam serpentes que caíram em um caldeirão de água fervente.
–Acho que o trabuco deu certo, sargento. Olhe aqui – ofereceu o binóculo com um aceno curto para Heigon.
Heigon pegou o binóculo revirando os olhos de tédio. Olhou para o acampamento inimigo por meio minuto e jogou o binóculo de volta.
– Não vejo diferença alguma...
– Como assim, sargento? Tem menos homens transitando pelas tendas. Pelo menos um quarto deles deve estar enfermo dentro delas.
Seis semanas atrás Johrei andava pelos pisos inferiores do Forte levando mingau de milho e peixe assado aos doentes, quando encontrou algumas partes de trabucos de lastro. Convenceu uma dúzia de soldados, os cabos Aminsk e Roterzvan, e o tenente Lamar a levar as peças para o topo do Forte e remontá-la. Foi um trabalho árduo arrastar aquelas peças de madeira pesada pelas escadas de degraus quebradiços; os demais acharam uma perca de tempo àquela idéia. Como eles acham que se faziam as guerras antigamente? – dizia Johrei para si toda vez que alguém dava risada.
Após uma semana arrastando peças de madeira, pregos de ferro grosseiro, dobradiças velhas e cordas, levou uma semana para montar um trabuco que funcionasse. Alguns soldados iam apenas dar risadas dos insucessos. O primeiro trabuco quebrou o braço na hora de levantar o lastro cheio de pedras quebradas, uma cena ridícula. Isso levou os incrédulos a caírem na gargalhada.
No outro dia, o segundo trabuco ficou pronto no entardecer, mas logo entortou para um lado a cada ensaio de lançamento, até que finalmente cedeu e desmontou. O terceiro trabuco ficou pronto seis dias depois, foi reforçado e ganhou um braço maior que os anteriores. O sargento Heigon admirou o esforço do soldado Johrei e dos demais, prometendo atirar de cima do Forte qualquer um que estivesse livre e caminhando e se negasse a ajudar.
Esse terceiro trabuco tinha uma base mais larga e era fixada com cordas em quatro ameias para não se descolar com o recuo dos arremessos, mas acabou quebrando também após quatro dias de uso. No primeiro dia testaram com pedras do tamanho da palma de uma mão, então aumentaram gradualmente o tamanho das pedras até encontrar um ângulo que alcançasse a linha do cerco. Foi um dia inteiro atirando pedras em todas as direções e colocando mais peso no lastro, mas no terceiro e quatro dias Johrei e os outros soldados que não estavam com outra ocupação, arremessaram pedaços esquartejados dos seus companheiros mortos dentro de sacos de fibra que guardavam nos estoques de milho, com pedras e terra úmida. A idéia era que as doenças se alastrassem entre os inimigos e enfraquecesse o cerco.
Aquilo gerou bastante burburinho entre os homens. Já não bastava comer a carne dos companheiros mortos, agora tinha de esquartejar os doentes que morriam e jogar seus pedaços aos inimigos. Alguns diziam que aquilo era uma grave profanação, outros que suas almas não encontrariam descanso e que virariam assombrações a vagar pelo mundo procurando seus pedaços para finalmente entrar no mundo dos mortos. Nagaris foi uma terra colonizada três vezes, o que fazia dela um caldeirão cultural, a tal ponto que existiam quatro religiões diferentes, sendo a religião nativa a com menos adeptos.
– Como as pobres almas vão encontrar descanso na terra aos pedaços? Se a alma ficar espalhada, não reencarnará novamente. Ela precisa ficar inteira para ser acolhida pela Mãe-Terra. – Diziam alguns.
– Que bobagem é essa de reencarnação?
– Uma alma dividida sempre reencontra seus pedaços – Diziam outros – A alma não depende do corpo para encontrar a escada do céu.
– Quem garante? Sua fé pagã de além-mar?
– É melhor queimar logo eles, senão nós é que vamos morrer doentes. O fogo purifica a alma e o corpo da perdição do pecado original.
Os homens se atacavam por horas com os mais variados argumentos, um tentando convencer o outro, até que Johrei falou. Por alguma razão, todos se calaram.
– Se queimarmos nossos mortos, ficaremos com menos lenha para se aquecer a noite, mas se construirmos um trabuco com as peças, podemos nos livrar dos corpos mandando eles junto com as doenças para o cerco inimigo, como nossos ancestrais fizeram a 800 anos na invasão dos maleitas, liderados por Trobi Rato-do-Mar, e ainda teremos lenha pra se aquecer – disse Johrei antes que o capitão Neperin questionasse sua ideia. – Matamos dois ratos com um único tiro.
Alguns insistiam em defender suas crendices, mas a maioria viu sentidos nas palavras de Johrei.
– Estamos em guerra, caramba! Deixem dessas bobagens. Não interessa se o deus dos maslainos diz isso e o deus dos ashmaitas diz que não. É tempo de guerra! Se os deuses são bons como dizem ser, eles irão entender, oras! Não podemos numa guerra se dar ao luxo de fazer o que se quer, mas o que é preciso fazer. Rezem suas preces e pronto. Os deuses não são piedosos? – Dizia um soldado moreno magro que ajudou Johrei nos trabucos – Eu não sei vocês, mas eu não acho que discutir crendices e ficar definhando dentro desse Forte vai ajudar em algo...
No dia seguinte ao alvorecer, o capitão Neperin, Tenente Lamar, Sargento Heigon e o soldado Johrei foram convocados à presença do major. Enquanto o capitão e o tenente falavam para o major dos progressos feitos pelo trabuco idealizado por Johrei, os olhos do major derrotado pareciam lacrimejar. A boca se torcia em rugas e grossas olheiras davam a impressão de que seus olhos derretiam como cera quente.
– Onde aprendeu a fazer trabucos, rapaz? Sou muito velho nas fileiras e ainda assim não me recordo de ter visto essa aula na academia...
Alguns presentes sorriram discretamente.
– Sempre fui fascinado por histórias antigas, senhor. – disse em bom tom tomando posição de sentido – Em como os bravos nagarianos de outrora erguiam suas defesas antes da chegada da pólvora. Leio muito sobre projetos antigos de guerra.
– Ah sim, foram brilhantes engenheiros de guerra, eu diria! - sorriu o major mostrando metade dos dentes.
O homem já estava velho por dentro e por fora, contrastando com um amontoado de honrarias presas ao uniforme camuflado em tons de verde, cinza e azul. Pouquíssimos soldados lhe sobraram com o rumo inesperado que a guerra tomou. Sua companhia contava seis pelotões, que somavam 360 soldados, isso antes de ser dividida em um rápido ataque inimigo em pinça, usando táticas de guerrilha: duas frentes de ataque nas direções norte e leste, através dos vales nas montanhas rochosas de Nain, forçarem uma companhia a se dispersar. Agora não restavam mais do que oitenta vivos, contando com os doentes. Sua cara não negava que já estava cansado de tudo aquilo, que não tinha mais a força e o ânimo de antes para liderar, somente a honra ainda lhe prendia ao dever. A maioria esperava que o major fosse dizer um sermão daqueles para Johrei, o furioso e inflexível Lino, mas para espanto de todos, ele consentiu com a estratégia do jovem.
– Certo, tem minha permissão para prosseguir, capitão Neperin, contanto que o soldado Johrei esteja presente. – disse Lino com a voz pesada e o semblante cansado de um velho de setenta e seis anos. – Se você causar uma epidemia neles como nós estamos sofrendo agora, talvez possamos enfrentá-los em pé de igualdade numérica daqui a próxima conjunção das luas... – Tossiu brevemente – Estamos todos famintos, creio eu.
Todos assentiram fazendo sinal com a cabeça.
O major tomou uma pistola que pousava sobre o tampo da pesada mesa de mármore marrom. Girou o tambor e conferiu o cão.
– A propósito, só mais um assunto pelo qual chamei os senhores. Soldado Johrei, agora todos devem se dirigir ao senhor através da palavra cabo – Disse o major Lino – Meus parabéns... Assim como o sargento Heigon. Agora você é subtenente, homem.
– Subtenente, eu? – Disse Heigon surpreso com os olhos esbugalhados – Mas ainda sou 2S.
– Se não se acha capaz de...
– Não, senhor. Eu aceito a promoção de bom grado. O senhor não irá se arrepender! – Disse prestando continência.
– Eu sei disso, subtenente Heigon.
– Também fico agradecido pela sua confiança, senhor – Agradeceu Johrei.
Johrei sorriu sem perceber, prestou continência e agradeceu; Lino sorriu da expressão do rapaz.
– Tenente Lamar, ao sair por aquela porta, diga a todos que você foi feito capitão. – Assentiu com um aceno e virou para Neperin – E capitão Neperin, ah... Você está praticamente carregando o remanescente dessa companhia nas costas; já eu, mal tenho forças pra levantar a cabeça, quanto mais aumentar o moral dos homens...
– Isso não é verdade, senhor. Todos sabem que... – tentou desdobrar.
– Não seja piedoso, capitão – Interrompeu o major – Não gosto que tenham pena de mim. Um homem que se deixa arrastar pelo esforço de outro, não merece o ar que respira, eu cansei de dizer isso nas fileiras, e agora me vejo nessa situação, e não posso voltar com minhas palavras – Cerrou os olhos com ar de seriedade – Aprendam essa lição. Enfim, vendo seu esforço, capitão Neperin, eu lhe passo a função que cabia a mim. Espero que o homem não lhe dê tanto trabalho. A partir de agora o senhor passa a se chamar major Neperin – disse prestando continência sentado com a mão trêmula e manchada pela velhice tentando em vão ficar de pé – Está na minha hora, senhores. Que os deuses os protejam! – Levou o cano da arma rapidamente até o céu da boca, pintando a parede atrás com seus miolos ensanguentados.
Gerou-se um burburinho entre as praças, onde alguns dizia que haviam matado o major para se promover, os mesmos que esperavam ele morrer para as coisas começarem a andar. Mas o major morto estava tão inerte a tudo que sua passagem de comando foi um alivio tão grande que em poucos dias todos concordavam que ele tinha realmente se suicidado, ou pelo menos concordado com a própria execução.
Quatro dias depois de o trabuco quebrar novamente, os inimigos avançaram durante a madrugada pelos campos de capim-de-boi, com ganchos, cordas, ferramentas, armas e máscaras de gás. Quando viram que os quatro portões correspondentes aos pontos cardeais, estavam entulhados com rochas, decidiram por escalar, mas só os que preferiram escalar sem cordas conseguiram atingir o topo do Forte sem janelas. Os nagarianos jogavam pedras do alto do Forte contra os escaladores, que iam ao chão num baque estrondoso; os inimigos que chegavam ao topo eram surpreendidos com a ponta das baionetas. Suas gargantas e peitos eram transpassados enquanto outros dois o agarravam pelo uniforme e o puxavam para o topo. Depois eram jogados abaixo seminus e sem nada de útil.
– Que diabos! Por que os bastardos demoraram tanto a dar às caras? Já estava ficando maluco. – Ria subtenente Heigon puxando os escaladores para serem abatidos.
Johrei riu também com a expressão de satisfação do veterano. Você nasceu mesmo pra isso, sargento, quer dizer, subtenente. Pensava enquanto um dos inimigos o pegou pela gola e o puxou para a queda. O inimigo era um soldado apenas dois anos mais velho, mas três vezes mais forte e inchado como um sapo boi. Por um momento viu a queda e alguns que caiam rasgando a noite em gritos desesperados. Teve vontade de gritar. Pancadas faziam seu rosto encontrar a rocha e sentir gosto de sangue. Cerrava os dentes enquanto se esforçava dando cotoveladas nas costelas do invasor, mas ele parecia nem sentir. Um braço estrangulava sua garganta e seu corpo estava cada vez mais perto de cair. O vento frio lhe soprava a pele provocando um arrepio que só se sente à beira da morte.
– Johrei! – Gritava alguém. Não conseguiu discernir quem. A pressão na cabeça aumentava. Sentia o sangue preso e a visão começar a falhar.
Sentiu um solavanco puxando de volta para o centro do Forte. Um líquido espesso e morno encharcava sua nuca enquanto o inimigo soltava seu corpo e caia à sua frente com uma perfuração abaixo do maxilar jorrando sangue.
Na manhã seguinte, o fosso estava cheio de corpos amigos e inimigos inchados, boiando na pouca lama salgada da água que conseguia passar pelo quebra-mar meio arruinado. Os homens contavam e separavam munições, armamento, rações, roupas, acessórios, cantis, facas, coletes, granadas, pistolas, roupas e qualquer outra coisa que pudesse ser útil. Os corpos eram içados, esquartejados e lançados para o cerco. Foram conseguidos dois rifles cujo alcance se contava em quilômetros, junto de mais sete cartuchos, cada um com catorze tiros.
– Por que está com tantas chapas de identificação, Raspu? – Perguntava Anevi ao ver Rasputzen com um grosso molho de cordões no pescoço.
– Ora, pra impressionar as garotas quando voltarmos. Direi a elas que são dos inimigos que matei – Disse dando sua risada cômica de hiena.
– Tem mesmo fé que vamos sair daqui? – Dizia Anevi olhando para um crânio canino que pousava sobre sua mão.
– Anevi, pelo amor dos deuses, larga essa coisa. Seu cachorro vai acabar não achando a droga do caminho dos mortos, o céu dos cachorros, seja lá o que for. – Dizia o subtenente Heigon puxando o crânio da mão do rapaz. Arrancou um dos caninos da arcada dentária e atirou o crânio pela seteira até o fosso de lama – Tome. Um dente é o suficiente para você se lembrar do seu cachorro. Se um vivo pode viver sem um dente, não vai lhe fazer falta no outro mundo. Faça um furo e prenda no seu cordão, isso basta!
– Quem quer carne de recruta? – Passava alguém com uma tigela cheia tiras de carne frita.
Muitos corriam instantaneamente para pegar um pedaço. Parecia uma horda de cães famintos se atirando na carniça.
– A que pontos nós chegamos... – Dizia o soldado branco de cabelos de anjo chamado Rasputzen. – A cada batalha tratamos nossos companheiros e inimigos como cabra e comemos. Se meu pai souber disso, pode até me banir da família...
– O que trouxe para nós, cachinhos? – Desdenhava Heigon.
– De novo essa piada infame, sargento? A expedição foi longa como a estrada do inferno, obrigado por perguntar. Só trouxe água com gosto de poço velho, uma delícia. Podem beber – Dizia Rasputzen oferecendo o cantil – Já estou enjoado de beber esse troço. Alguma novidade?
– Muitas! Major Lino se matou poucos dias atrás. Capitão Neperin agora é o major. Tenente Lamar agora é capitão, e eu, seu vermezinho, sou subtenente agora! – Sorriu Heigon como uma criança – Então na próxima vez que me chamar de sargento lhe arranco esses cachinhos dourados.
– Olha só! Então devo agora chamá-lo senhor com mais veemência? – Sorriu Raspu contente.
– Ai de você se me chamar de sargento de novo! – disse apontando uma faca pequena que usava para descascar um fruto meio apodrecido.
– Poxa, se eu soubesse que o major Lino andou espalhando promoções, teria me recusado a vaguear por essa costa fria atrás de sabe-se lá o quê...
– Não é só pra mim que você vai prestar continência agora, soldado. Johrei agora é seu novo cabo. O lobinho mais moderno que você. Chupa essa! – gargalhou.
– Caramba! Muita coisa mudou realmente enquanto estive fora. - virou-se para Johrei em posição de sentido em tom alegre de locutor de jogo – Meus parabéns, senhor cabo Johrei. Tenho certeza de que fez mais do que reclamar por aqui – disse olhando para o subtenente – E então? Vamos fazer algo?
– A mesma coisa de sempre. O capitão Lamar quer voluntários para dar uma volta fora de casa, fazer uma visita ao cerco para colher informações – Disse Johrei sério – Agora temos alguns uniformes do inimigo. Quer vir?
– Ótima forma de matar o tédio... mal virou cabo e já está procurando morrer? É algo nobre, visto que provavelmente vamos morrer de qualquer maneira... – Riu se deitando no chão e puxando uma pedra para apoiar a cabeça – Sei que vocês ligam bastante pra essa coisa de honra, e que se sente grato pela promoção, mas eu não dou à mínima.
– Até parece que você vai se negar a alguma aventura... não o Raspu que eu conheço
– Eu? Claro que vou, senhor cabo – disse sorridente – “Um soldado nasce morto, mas vive quando morre”. Não é o que dizem nas fileiras?
– Quero ver dizer isso quando estiver bem de frente com a morte. É muito fácil desdenhar dela quando se está bem vivo, mas quando se está por um fio, todo mundo se borra – Heigon encostou-se à parede.
Algumas horas depois, os refugiados do Forte acordaram na escuridão, antes da alvorada, com explosões de dinamite. O portão norte tremia e as rochas trincavam e se despedaçavam, deixando passar os primeiros lampejos de luz do dia no primeiro nível. Soldados subiram até o topo com ordens de lançar pedras, enquanto os demais se espremiam entre as seteiras com a ponta dos fuzis aparecendo do lado de fora, mas os inimigos não estavam tão próximos. Eles construíram uma catapulta grosseira e arremessavam sacos cheios de terra com o formato das dinamites na base do Forte, até que encontraram o ângulo certo.
– Atiradores – Gritava o novo capitão Lamar – Subam o Forte e acertem os inimigos que estão disparando as dinamites os demais se preparem para investir contra o inimigo.
Os tenentes repetiram as ordens para os sargentos, os sargentos para os cabos e os cabos para os soldados, juntamente com vários “sim senhor”.
Os atiradores de precisão que ainda restavam eram Dairo, Icaevis e novato Anevi. Abateram com sucesso os operadores da catapulta e mais cinco quando tentavam fugir; só três se salvaram e a catapulta foi abandonada.
– Eles tentaram mesmo reproduzir sua catapulta, cabo Johrei – Riu Denos – Só que com um alcance muito curto.
– Não era minha catapulta, eu só juntei peças que já estavam moldadas. – explicou Johrei. – Eu não conseguiria inventar algo assim.
– De qualquer forma, a sua funciona melhor que a deles.
– Por que a nossa está no alto, isso aumenta o alcance dela – disse Icaevis – Por isso concordei em ajudar quando você teve a idéia. Estamos bem alto, e eles não estão muito longe.
Ao anoitecer, cabo Johrei, subtenente Heigon, soldado Rasputzen e mais três soldados desceram o Forte Rowk com cordas e ganchos para averiguar a catapulta deixada pelo inimigo. Vestiam fardas dos inimigos.
– Eu disse que eles tinham esquecido dinamite aqui. – Johrei puxou um saco de fibra cheio com ajuda de outro soldado.
– Valeu a pena essa descida. – Concordou Rasputzen. – Agora sim o nosso querido subtenente Heigon vai explodir a cabeça deles como estava querendo. Vai ser um espetáculo e tanto. Comprem suas entradas, homens. Antes que acabem!
Entreolharam-se por um instante e riram.
Foram surpreendidos por uma lanterna do acampamento inimigo. Tentaram fugir da visão deles se arrastando abaixados pelo cortante capim-de-boi. Inimigos gritavam eufóricos e projetavam sombras gigantescas pelo capim.
– Droga! Vamos sair daqui. – Gritava Heigon levantando o saco com dinamites.
Saraivadas de tiros faziam a terra subir como se fosse água respingando. Sons agudos de bala zumbiam bem perto de seus ouvidos. Os seis se protegiam atrás da pequena catapulta enquanto ela dava solavancos com os disparos e recuava.
– Vamos correr. Se ficarmos presos aqui será pior. – Dizia Rasputzen assustado.
– Ta maluco? Vai acabar levando um tiro. – Ralhou Johrei.
– Se ficarmos aqui vamos levar um tiro.
– Temos que pensar em algo para distrair eles, senhores. – Heigon olhava para os lados com o binóculo pendurado no pescoço de Johrei.
– Estamos perdidos. Que droga, vou morrer virgem! – Lamentava Rasputzen encolhido.
O clarão da lanterna os cegava. Heigon acendeu três dinamites e arremessou em seqüência para o rumo de onde os tiros vinham. – Corram ao som da primeira explosão. Isso vai aturdi-los.
Ouviu-se um som forte e a terra tremer. Houve chuva de barro e capim por alguns instantes. Os seis correram acompanhados de mais explosões, mas os tiros continuaram a persegui-los. Alguns atiradores corriam pelos flancos para encontrá-los na muralha, ao redor do fosso de lama cheio de corpos.
– É sério. Já me cansei desse joguinho de gato e rato. Detesto ficar correndo pra lá e pra cá. Queria ter uma artilharia pra esquentar a bunda desses imbecis. – Resmungava Heigon.
Ao amanhecer, o trabuco no topo do forte foi retificado e arremessaram dinamites contra o cerco, deixando mais ou menos um terço dos inimigos feridos, segundo alegava o cabo Johrei ter contado pelo binóculo. As coisas ficavam intensas à medida que a fome apertava cada vez mais ambos os lados. A única coisa que se tinha para comer era capim e peixe, quando tinha sorte. Havia agora dois mil e oitocentos soldados aptos no acampamento inimigo recém-chegados, contra sessenta nagarianos raquíticos em pé.
– Nuvens negras no céu. Os próximos dias serão bem molhados. Pelo menos água limpa pra beber! – observou Rasputzen – Não quero morrer com sede.
Johrei olhou para cima e ficou instantaneamente renovado. Trovões ao longe tremiam o céu e grossas nuvens pareciam anunciar um dilúvio.
– Finalmente uma chuva!
– E daí? –Heigon quebrava pedras em pedaços menores.
– Droga, tinha de chover logo agora... – Anevi tencionava a corda do lastro da catapulta no topo do forte. – Os sacos de dinamite com pedras estavam dando certo. Olha só como eles se afastaram! – Indicou o acampamento inimigo.
Os inimigos, sem poder revidar o ataque de cima do Forte, igualmente desprovidos de artilharia, recuaram e quase não se via ninguém no horizonte.
– Isso vai afastá-los por alguns dias, assim espero – subtenente Heigon amarrava mais um saco com pedras, deixando apenas o pavio da dinamite à mostra. – Isso é que é granada de estilhaço! Eles ficaram apavorados. Uma pena não termos vidro também. Faria bastante estrago neles.
Ao entardecer, em um dos salões do Forte, o major Neperin chamava todos para finalmente saírem e atacar.
– Conseguimos coletar um número de armas e provisões razoável das últimas investidas do inimigo. A tática da última investida deu certo. Eles recuaram bastante após lançarmos dinamites contra o cerco, o que significa que estão mais dispersos, então nossas chances aumentam – major Neperin olha a todos por um instante e continua – Quero vinte e quatro soldados para bater o terreno. Não vamos chamar atenção deles ainda. Somente quando soubermos a situação deles, iremos planejar um ataque direto. Essa será apenas uma missão de reconhecimento. Precisamos descobrir qual ponto do cerco está mais enfraquecido para escaparmos por ele.
Os homens se olharam por alguns instantes. Ninguém queria ser o primeiro a levantar a mão e se oferecer para a missão de reconhecimento.
– Serão três grupos de oito, partindo em direções diferentes da rosa dos ventos. – Sua feição magra e severa dava a ele um ar sombrio, no entanto sua ferocidade era a de um pai que acolhe os filhos e castiga sem titubear quando necessário. Uma expressão fria como mármore e a postura reta, mas para inspirar fortaleza nos homens – Apenas vejam como está a situação deles e retornem imediatamente. Estamos numa situação que não podemos nos demorar, como todos bem sabem.
Os soldados sentados pelo chão frio assentiram e já se conseguia ver certo ânimo subliminar entre eles. Apesar de as provisões terem acabado e o inimigo ter ganho reforços, agora havia um comando ativo. Parecia que as coisas finalmente tomariam um curso diferente, não necessariamente favorável.
– Levaremos munição conosco? – Perguntou alguém atrás. Era o capitão Vallen.
– Sim, capitão, mas somente para o caso de necessidade. Temos que passar o mais despercebido possível por eles, então não tentem abater ninguém durante essa missão. Quando mais ocultarmos nossa presença, melhor.
Major Neperin chamou alguns nomes para se destacarem e formar os grupos, mas foram apenas vinte e três.
– Nelio e Jingo, eu irei com vocês à direção noroeste. – Disse o major – Na minha ausência, todos receberão ordens do Capitão Vallen e do capitão Lamar. Qual dos senhores se dispõe ao comando da companhia?
Os dois capitães se entreolharam nervosos e conversaram rapidamente, até que o capitão Vallen se dispôs a falar.
– Senhor, eu fico no comando – disse se colocando em posição de sentido – sou o mais antigo.
– Pois muito bem. A companhia é sua durante minha ausência, capitão Vallen. Agora que estamos do tamanho de um pelotão, não será uma tarefa difícil – disse Neperin com a voz entristecida – capitão Lamar será seu braço direito.
– Sim senhor! – disseram os dois capitães em uníssono.
– Senhor, por que eu não fui chamado? – Perguntou o cabo Johrei tirando a bandoleira do ombro.
– Preciso de alguém no trabuco, cabo – disse secamente – Se a missão não for bem sucedida, e os inimigos retornarem, eu quero que acerte os malditos com aquele braço de madeira, entendido?
Dois dias depois e todos no Forte estavam apreensivos. Nenhum dos grupos havia retornado ainda. Faziam as mais variadas suposições para demora, desde estarem todos mortos a mudarem de lado, inclusive o próprio major. Alguns pensavam em sair do Forte.
–O major Neperin me deixou aqui para comandar. Ninguém irá desobedecê-lo em minha presença. – Ralhava o capitão Vallen com dois soldados pegos fugindo com metade das munições que restavam na companhia.
– Ele mudou de lado, o que ainda estamos fazendo aqui? Vamos nos entregar e dar logo um fim nisso. – Resmungava um dos acusados delirando. Esse era Viskerin: um olhar de peixe morto e maxilar largo lhe rendeu o apelido de Peixe Sonolento. Seu rosto estava fundo, descorado e com a carne em início de atrofia.
– Precisamos esperar mais, ter paciência. Alguém vai retornar com certeza.
– Eu não disse, Johrei? Essa missão de reconhecimento está mais pra missão suicida. Ainda bem que não fomos escalados. – Sussurrava Rasputzen puxando os cabelos volumosos da testa.
– Mate os dois, senhor. Eles iam nos entregar por privilégios com os inimigos. – Disse outro soldado com uma expressão furiosa. Provavelmente acordou e não achou suas munições.
– Tem certeza de que eles já não fizeram isso? Por que ele insistiu pra que não saíssemos do Forte? Por que o major saiu ao invés de ficar no seu lugar? Por que somos a garantia dele, não é óbvio? Vocês são muito burros mesmo em acreditar nesse major de merda. E além do mais, o patife foi junto com eles, querendo mostrar bravura. É só isso que temos por aqui: oficiais de merd... – Foi interrompido com uma coronhada que o fez beijar o chão com os dentes.
– Fuzilamento, senhor? – Perguntou o cabo Kaleon; alguns dos seus amigos ficaram apreensivos – Esse homem se comporta como um amotinado.
Houve uma tensão no ar. Olhos sérios faiscavam ao se encontrar; os dedos ensaiavam tocar as armas. As dúvidas dividiam até os que queriam crer na honra do major desaparecido. Os homens se olhavam com as mãos próximas das armas, cada um esperando o movimento do seu vizinho para ter motivo para brigar.
– Parem já com isso. – Ralhou o capitão Lamar antes que começassem. – Prendam eles e não os machuquem. Eles serão julgados quando tudo isso terminar, isso é tudo. Voltem para seus postos.
O cabo Kaleon e mais três levaram os soldados detidos para os níveis inferiores através da escada em caracol. Alguns sussurravam sobre as prisões nas sentinelas. Alguns queriam fugir, desertar.
O tempo roeu durante muito tempo a paciência dos nagarianos, por muitos dias e noites. Passada duas semanas, Johrei ouviu gritos e tiros de dentro do Forte. Homens saíram apressados de suas sentinelas e encontrou o capitão Vallen com uma perfuração no peito, o sangue ainda quente jorrando.
– Puta que pariu, inimigos no forte! – Gritava alguém colocando a bandoleira.
– Como assim? Ninguém foi visto escalando o Forte, a não ser que tenham descoberto entrada submersa pelo fosso. – Rasputzen comentou enquanto enchia os bolsos de munição. Estava com o uniforme mal arrumado, aliás, todos estavam.
– Nenhum sinal foi tocado. Isso é muito estranho. – Anevi se esforçava para ficar de pé nas duas pernas magras que mais pareciam gravetos.
– Os prisioneiros fugiram! Os prisioneiros fugiram! – Gritava o guarda de cela, Kaleon.
– Mas que diabos, o que está acontecendo aqui? – Praguejava Heigon.
Os homens vasculharam cada centímetro do forte, num medo extremo de quem luta contra sombras, mas nada nem ninguém foram encontrados de estranho além do tenente esfaqueado e a ausência dos prisioneiros. Agora a palavra traição tinha um significado mais claro. Todos temiam uma punhalada pelas costas a qualquer momento. Alguns momentos depois, todos estavam se alimentando de um pedaço do capitão morto.
A chuva vinha com a noite acompanhada de trovões ensurdecedores. Os corações dos homens tremiam a cada raio que ofuscava o tempo de luz, como se por alguns segundos, a noite virasse dia. Alguns continuavam olhando para o tempo lá fora, enquanto outros jogavam cartas no chão frio de pedra, forrado às vezes com cobertores. Aproveitando a confusão, alguns deixaram o Forte na última madrugada.
– Alguém está vindo da leste! – Gritava as sentinelas e os outros repetiam para passar a mensagem.
Johrei ouvia as sentinelas relatarem que o homem estava passando pelo muro e entrado no fosso. Todos pegaram suas armas e alguns correram para os níveis inferiores fazendo a escada de caracol tremer. Johrei olhava para Heigon, Rasputzen, Anevi, Denos, Kaleon: todos estavam agora com medo. Todos sentiam a mesma coisa, aquela premonição vertiginosa de que algo muito sério está para acontecer. Aquele cenário negro trovejante pintado no céu, a sombra cambaleante se aproximando pelo campo de capim-de-boi, tudo parecia cada vez mais assustador.
– Inimigo vindo pelo horizonte! Estão com tanques!!! Estão com tanques!!! – Gritava Nashe da seteira sudoeste.
Não demorou muito, todas as sentinelas começaram a gritar a mesma coisa: inimigos com reforços. Johrei sentiu cada pelo do seu corpo arrepiar, como se a própria morte o abraçasse. Correu para seteira norte e confirmou o que diziam. Havia tanques, muitos deles se aproximando. Estão todos mortos, até o major Neperin, pensou. Johrei correu para os níveis superiores enquanto todos faziam o contrário para escapar pelo forte.
– Pra onde você ta indo, maluco? Você será sepultado junto com o forte quando eles começarem a disparar com os tanques.
– Vou vestir a kaitos.
– O quê? Você pirou de vez, Johrei? Não há mais nada que possamos fazer. Não temos apoio aéreo nem navios. Estaremos perdidos se continuarmos aqui. Vamos logo escapar com os outros pelo fosso, é a única opção. – Insistiu Rasputzen puxando o amigo pelo braço – Isso não é hora de bancar o herói.
Kaitos era o nome de um symbiont: um traje que parecia um macacão preto apertado, mas uma vez vestido pelo seu usuário, ficava rígido acompanhando a musculatura e articulações. Ampliava a força, velocidade e resistência. Ao mesmo tempo um escudo e uma arma que fazia do mais fraco soldado, um herói legendário. A kaitos era um symbiont do tipo EXM (Exoesqueleto Militar), devido às peças rígidas de armadura coladas à pele do symbiont. Encontrado no Centro secreto, abaixo das montanhas de Nain, uma longa conexão de túneis cavados na rocha. A entrada única ficava depois de uma longa e escura caverna banhada por uma gruta. Era preciso mergulhar para emergir em sua entrada.
A origem do symbiont era um mistério para todos, não sendo sequer possível definir se era uma tecnologia desenvolvida em segredo pelos alerianos ou outro povo. Apenas foi possível saber sua utilidade pelos relatórios encontrados em sua sala de testes, mas havia um trecho em falta nos relatórios que assustou todos de vesti-la: criptografia genética. Um usuário de DNA diferente do programado pela armadura poderia prender o usuário e iniciar algum protocolo de autodestruição, consumindo toda energia dos módulos e matando todos que estiverem próximos.
– E se a armadura te rejeitar e te matar? Não sabemos se alguém a usou antes e colocou assinatura genética. Além do mais, estava em teste no laboratório que reagrupamos com as tropas dos aliados. É provável que essa coisa esteja desajustada.
– Eu li todo o relatório de testes dela. Dizia que estava sendo desenvolvida para ionizar o ar e criar diferenças de potenciais capazes de...
– Está pensando que vai atrair os raios dessa tempestade pra nossas cabeças? Isso é suicídio, Johrei. Pare de delirar e vamos logo sair daqui.
– Como vamos sair daqui, Raspu? Só existe água salgada a leste e capim-de-boi cheio de inimigos nas demais direções – Disse com a armadura quase completamente vestida – Eu farei o meu possível para impedir os homens do continente. Se o que li nos diários do laboratório for verdade, posso fritar eles.
– Mas isso também vale para você, Johrei. Vamos logo embora daqui. Rápido!
O mundo parecia pulsar a cada impacto. A estrutura do forte começava a envergar sobre si como um castelo de cartas. Um grande coração pulsava em fúria nas fundações do Forte Rowk.
A kaitos tinha uma aparência rudimentar. Era coberta de uma armadura de metal preto fosco sem curvas, um design reto e quebrado. Johrei vestido nela dava a impressão de que tinha encolhido a cabeça devido à espessura das peças da armadura que cobriam o symbiont e pareciam inchar. A roupa estava folgada, mas aos poucos o tecido encolheu até se ajustar perfeitamente à sua fisionomia.
– Caramba! A bateria está quase acabando – viu uma luz vermelha que pulsava na manopla direita – Tenho que subir para recarregar então.
– Johrei, Rasputzen, o que pensa que ainda estão fazendo aqui? – Gritou Heigon subindo a escada em caracol.
Ouviu-se um assobio rasgando o céu e logo após uma explosão que fez o Forte inteiro tremer. Todos se abaixaram. Algumas pedras no teto se soltaram e outras na parede racharem.
– Temos que dar o fora daqui. Vamos logo com isso! O capitão deu ordens para todos se retirarem.
– Vocês podem ir, eu vou deter os inimigos! – Gritou Johrei subindo as escadas.
– Maldição! Como você teima em arriscar a vida enquanto eu quero fugir? Isso é um insulto terrível – Gritou Heigon indignado – Vou arrebentar sua cara se me fizer de covarde!
Um barulho de besouro alçando vôo era emitido da armadura. Luzes vermelhas pulsavam mais rapidamente. Johrei sentia várias agulhadas por seu corpo, ao mesmo tempo uma queimação por todo corpo, como se o traje estivesse cozinhando. Olhava para as mãos engrossando, as pernas. Sentia uma pressão sobre seu corpo que vinha de todos os lados ao mesmo tempo. Pensou em gritar por ajuda; os amigos olhavam apreensivos, mas o barulho ficou menor como uma brisa suave e contínua do litoral. As luzes ficaram verdes e logo após apagaram. Johrei ouviu sua mente dizer: leitura do código genético finalizada, usuário número um inicializado. Bem-vindo ao traje de combate avançado.
– A kaitos me aceitou, Rasputzen.
– Parece que sim, ela ficou mais calma... Parou aquele barulho. Mas como sabe disso?
– Ela falou. Você não ouviu? Acabou de dizer.
– Acho que só você ouviu essa voz...
– Eu vou usar os raios para recarregar a kaitos. Se conseguir, poderei detê-los.
– Está pensando que vai mesmo virar o deus Kaitos dos Brajavawans? Isso são fantasias, Johrei. Ninguém pode pegar raios dos céus e se fortalecer com isso. É mais fácil você fritar e ficar com cheiro de frango queimado.
– Kaitos é filho de Maitos, o destruidor de mundos. Os cientistas que desenvolveram esse symbiont não devem ter dado a ele esse nome à toa.
– Como pode ter tanta certeza disso? Não me lembro de ter lido nada assim no projeto.
– Eu não tenho, mas se vamos morrer de qualquer forma, que seja em combate.
Johrei subiu as escadas e logo outro disparo uivante acertou o Forte de cheio.
– Maldito Johrei, não morra à toa! – Gritava Heigon enquanto as paredes trincavam e desmoronavam.
Johrei subiu até o topo do forte. Ele se sentia mais forte e leve. Era essa a impressão que um symbiont dava. Virar um deus com força sobre-humana. Lembrava-se Johrei dos trechos que havia lido no diário de testes.
Os campos de capim-de-boi estavam tomados de manchas escuras que se moviam pesadamente, até que relampejava e as sombras viravam soldados acompanhados de tanques. Eram ao todo eram quinze tanques, não havia como vencer ou fugir deles com tão pouco armamento e contingente. Era uma cena apavorante para quem ainda pensava em resistir.
Johrei empunhou as duas espadas que ficavam cruzadas nas costas da armadura e estendeu os braços. Sentia as correntes elétricas percorrendo seu corpo. Um formigamento se estendia pelas extremidades e fazia os cabelos arrepiarem. Os céus pareciam responder àquele chamado e logo os trovões chegavam mais perto do forte. Aquilo assustou bastante o avanço dos inimigos. As nuvens lentamente desenhavam círculos concêntricos nos céus. Raios vindos de longe cruzavam o espaço e caiam cada vez mais perto. Trovoadas tremiam o ar num rugido de milhões de leões ferozes. Clarões repentinos pintavam de branco a paisagem e fazia os homens ver manchas de luz por instantes.
Os nagarianos que estavam fugindo do forte, agora davam meia-volta. Os inimigos caiam atordoados no chão e tapavam o rosto com o que podia. Os raios aumentavam em número e se aproximavam, até que começaram a atingir a linha inimiga e as proximidades do Forte. Cada impacto sacudia o mundo.
Os raios começaram a convergir para as espadas de Johrei. Um barulho ensurdecedor fazia seu corpo vibrar como um tambor. Já estava completamente cego, mas de alguma forma conseguia sentir quem estava perto ou longe, como um sonar. Perdi a visão ou ganhei uma nova? Pensava Johrei sem conseguir discernir o que havia acontecido consigo. Sua percepção havia melhorado a um nível intangível para a visão comum. De súbito, vários raios convergiram e mantiveram o fluxo elétrico circulando pela armadura por vários segundos. Sentia os cabelos arrepiarem e uma energia gigantesca dentro de si. Foi capaz de pular do forte e parar em pé no chão sem danos, uma altura de mais de quarenta metros. A armadura soltava faíscas e rugiam como um transformador elétrico.
Inimigos se rastejavam pelo chão como bebês recém-nascidos. Alguns se encolhiam no chão e outros já estavam estirados fedendo a corpo carbonizado. Os tanques de guerra, pretos e ligeiros chamados Panteras, moviam seus canos em sua direção. Percebia os olhos dos amigos postos em si atrás das ruínas do Forte Rowk. Sentia o calor dos tanques, o arrastar das balas na parte interna da máquina. Johrei viu pessoas desesperadas dentro deles se moverem rapidamente. Os inimigos saíram pelas escotilhas e abriram fogo com munição pesada sobre ele. Descargas elétricas saiam de dentro de si dançando aleatoriamente. Johrei ficava incandescente e se moviam numa velocidade assustadora. Nada o acompanhava, e tudo se movia para ele lentamente. Podia sentir a respiração de cada um e a agonia presa nos olhos. Subiu sobre os tanques e executou todos enquanto as balas varavam o ar para longe. Rajadas de tiros costuravam o ar e mesmo assim não o atingia. Agora entendo por que esse symbiont se chama kaitos, pois me sinto como se eu fosse um deus!
Johrei podia prever com facilidade a trajetória das balas, a presença dos tanques, os corações batendo agoniados e a pólvora liberando energia no momento do disparo. Os tanques estavam destruídos, torcidos e chamuscados. Não se moviam, assim como nada se movia naquele cenário fúnebre, apenas o capim que ondulava com o vento e a chuva que banhava a terra num choro pesado. A chuva agora fraca afugentava o cheiro de carne frita e formava poças entre os corpos. O cerco finalmente havia sido derrotado. Johrei sentia seu corpo por dentro envolvido de dor. Suas vísceras pareciam estraçalhadas. Uma golfada de sangue minou de sua boca numa tosse convulsiva de afogado. As mãos encontravam o pescoço e a boca. Olhava para as espirais no céu se desfazendo e o mundo cair rapidamente. A boca se encheu de lama e seu corpo afundou no chão.
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