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costura de mim
tenho as mãos atadas quando falo de mim mesma. palavras me escapam, enquanto o silêncio permanece.
como ousaria entender-me, quando olhar para dentro exige coragem — e coragem nem sempre me visita?
que grande tribulação insiste em me rondar: a de me reconhecer no espelho sem desviar os olhos.
às vezes, passo por mim como quem não se nota, como quem tropeça em um reflexo esquecido. sou tantas versões mal costuradas, que até o tempo hesita em me chamar pelo nome.
há dias em que quase me alcanço, mas escorrego no medo. e volto a me esconder atrás de gestos automáticos e frases decoradas.
a verdade é que me entendo aos pedaços. e, mesmo assim, insisto em costurar poesia.
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posso repetir as palavras. posso repetir os sentimentos. posso repetir as ideias, os temas, as mesmas linhas que já escrevi antes. posso até reconstruir o mesmo poema várias vezes, porque escrever sobre mim é também escrever sobre essa insistência — sobre a busca constante de entender quem eu sou.
se quiserem me acusar de repetitiva, que acusem. a repetição faz parte do processo, porque não existe ponto final na compreensão de si mesmo. a vida, assim como a escrita, é feita de tentativas, de revisitar o mesmo lugar várias vezes, na esperança de que algo novo apareça, mesmo que sejam as mesmas palavras, as mesmas emoções que já me habitaram.
cada poema que compartilho carrega um pedaço dessa insistência, dessa necessidade de me encontrar nas minhas próprias linhas, mesmo que isso signifique voltar sempre ao mesmo ponto. e não vejo isso como erro ou fraqueza, mas como uma forma de resistência, uma maneira de costurar sentido dentro de mim mesma.
então sim, repito, revisito, reconstruo. porque é na repetição que eu me escuto de verdade, não no instante fugaz da novidade, mas no teimar cansado das mesmas palavras.
repetir não é falta de criatividade, é a única forma que encontrei para sobreviver num mundo que insiste em me querer inteira, pronta, definitiva — quando eu mesma ainda estou me desfazendo, refazendo, todo dia.
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ao toque
eu quero sentir mãos despindo minha pele.
não com ternura excessiva, nem com pressa mecânica —
mas com a urgência de quem descobre um mapa no escuro
e segue, mesmo sem saber o destino.
quero que encontrem meus ossos
e os tratem como santuário e ruína ao mesmo tempo.
quero o toque que treme, que exige,
que não se contenta com superfície.
quero o desconforto de ser observada demais,
de ser lida em silêncio
como quem lê um diário roubado.
quero o susto de ser vista inteira,
até onde eu finjo não existir.
quero o risco.
quero o corpo rejeitado num dia, desejado no outro.
quero a contradição de me entregar sem convite,
de esperar um retorno que talvez nunca venha.
quero não saber se estou sendo lembrada ou esquecida.
quero a dor pequena de não ser a primeira,
e o prazer secreto de talvez ser a última.
eu quero que toquem minha alma.
sem saber o que procuram.
sem saber se vão suportar o que encontrarem.
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fantasmas
mas como você é insistente, de tantas paisagens que podíamos traçar, de tantos silêncios que poderíamos cultivar, você prefere sempre voltar.
revira gavetas, sopra o pó das memórias, remexe cartas que já não quero ler. se demora no que acabou, se prende no que não cabe mais.
já tentei te acalmar com cuidado, sussurrar que o agora também merece espaço, mas seus dedos voltam ao que se perdeu, como se lembrar fosse um jeito de não perder.
e eu, às vezes, cedo — sento ao seu lado na beira da lembrança, te ouço contar, de novo, o que já sei de cor, como se fosse verso inédito.
não bastam os sonhos que temos? por que essa dança com os fantasmas?
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non formosa
você quer falar de poesia. eu te digo que a poesia é amurca, você reclama.
diz-me que a poesia tem de ser limpa, bonita. mas como bonita?
bonita como o quê? como o espelho que mente? como o jardim que esconde o mofo sob a raiz?
não. a poesia é o gosto da fruta passada, é a água turva que insiste em espelhar o céu.
ela é o que sobra. o que ninguém quer. mas que insiste em dizer: aqui estou.
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entre o mar e o corpo
estou dançando com o mar. suas águas esculpem meus passos com a precisão de um gesto contido, irremediável.
deslizam pela pele como sentença, silenciosa, inflexível.
o vento atravessa o corpo e se entranha, áspero, absoluto.
não há refúgio, nem direção. apenas o compasso exato do que vibra sob a carne e não se revela.
estou dançando com o mar. e persisto. há algo no ato de parar que sufoca mais que o sal, mais que a água.
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código do sentir
e será que realmente existe uma maneira certa de fazer isso que chamamos de sentir? digo, será que há um código padrão para como devemos reagir a certos comportamentos?
se nos asseguram que as emoções são respostas primordiais, por que, então, erguemos muros invisíveis para conter o que pulsa livre? por que tentamos aprisionar o indomável num molde que desconhece a alma?
sentir não é ciência exata, nem equação resolúvel, mas antes um labirinto de ecos e sombras, onde cada passo revela mais dúvidas que certezas.
talvez o sentir seja o toque invisível que faz as folhas suspirarem, uma dança errática entre a luz e a penumbra, um segredo que se desenha no instante em que ousamos abandonar o controle.
quem poderia traçar um mapa para o coração, se este é um território em constante mutação, feito de silêncios densos e gritos contidos, de vazios que preenchem, de encontros e desencontros que não se explicam?
talvez o único código verdadeiro seja o da coragem: de aceitar a própria desordem, de viver o caos íntimo sem medo de se perder — pois é na entrega do vazio que, às vezes, nasce a descoberta.
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rouca de rosas
cuspi pétalas de rosa sobre a pia.
eram suaves, mas carregavam espinhos —
eles rasgaram minha garganta como o silêncio que me consome.
o sangue escorreu entre as louças,
tingindo a porcelana de um vermelho impensado.
tentei calar o que me sufocava,
mas a flor, ainda que bela, feria.
engoli promessas cheias de perfume
e devolvi dores travestidas de beleza.
na pia, as pétalas se abriram como confissão,
e os espinhos, impiedosos, disseram o que eu nunca ousei.
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borboletas
tenho pensado muito nas borboletas. nessa coragem que têm de se desfazer. de se trancar por um tempo em silêncio, para depois nascer de novo — mais leves, mais amplas, com asas.
às vezes, confesso, tenho inveja. a maneira como abandonam aquele casulo apertado, como deixam o que foram, sem medo de voar em outro corpo.
eu, não. carrego a pele antiga como se fosse abrigo. tenho medo de desaparecer demais, de não saber voltar.
elas se recolhem por instinto. eu me recolho por cansaço. sem asas me esperando do lado de fora.
sou feita de pausas longas, de esperas que não se justificam. meus casulos não cicatrizam — eles viram quartos sem janelas, onde tudo continua sendo eu.
as borboletas, ao menos, esquecem. ou talvez nem lembrem do que eram antes da cor.
eu lembro demais.
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quando as palavras me vestem
acho que sou apaixonada pelas palavras.
e digo, apaixonada mesmo.
não é o tipo de paixão breve, rasa ou boba.
é paixão verdadeira — daquelas que nascem quietas,
mas crescem feito raiz em terra fértil.
aquele tipo de paixão que inunda o corpo
e transborda na alma.
sabe? aquele tipo de paixão que não se explica,
só se sente.
ela me encontra no silêncio,
me acalma na confusão,
me salva sem fazer alarde.
palavras me tocam onde ninguém alcança.
elas me vestem quando o mundo me despe,
me dizem quem sou, mesmo quando me esqueço.
sim, sou apaixonada por elas.
e, sinceramente, acho que elas também me amam.
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madeira molhada
quatro noites seguidas,
ininterruptas, incansáveis.
o cheiro de madeira podre e molhada
continua subindo até meu quarto.
tento ignorar.
hoje a noite está sendo pior.
a síndica do prédio disse que
não há vazamento,
que tudo está seco no porão,
e que talvez eu devesse descansar melhor.
mas o cheiro permanece,
ácido, úmido, íntimo.
como se algo vivo apodrecesse
lentamente, atrás da parede.
ou como se a casa respirasse por dentro,
guardando umidade e silêncio.
coloco toalhas sob a porta.
abro a janela.
rezo, mesmo sem fé.
tento pensar em outra coisa.
mas a madeira,
ela geme.
não sei mais se é o vento,
ou se são os ossos da casa,
lembrando a cada estalo
que certas presenças não vão embora —
só aprendem a se esconder
melhor que a gente.
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às vezes o tempo me assusta.
outro dia eu estava descendo minha rua,
e me vi reparando em coisas que pareciam novas,
mas estavam ali há anos.
o portão azul da dona maria está mais gasto,
o muro do número 18 tem uma rachadura que corre
como uma veia pelo concreto.
as árvores continuam firmes, mas menos verdes,
como se tivessem cedido à secura dos dias que passam
sem pedir licença.
eu descia a rua e, por um momento,
senti que estava pisando em lembranças.
a calçada onde corri, criança,
agora me obriga a andar devagar,
não por cansaço — mas por respeito.
como se ela guardasse memórias demais
para ser atravessada às pressas.
o tempo me assusta porque ele não grita,
não avisa, não pede.
ele apenas muda as coisas.
transforma rostos em retratos,
vozes em ecos,
dias em vultos que mal consigo alcançar.
senti isso enquanto caminhava.
que não era mais a mesma.
que talvez ninguém fosse.
e ainda assim, tudo parecia igual.
o cachorro latiu do mesmo jeito.
o carro da esquina ainda estava lá.
mas eu sabia —
havia algo diferente no modo como a luz tocava o chão,
no som abafado dos passos,
na maneira como meus pensamentos
não me deixavam em paz.
pensei em quem eu era quando subia essa rua correndo,
com mochila nas costas e o futuro inteiro por fazer.
agora, desço com cuidado,
carregando o que já fui e o que não volto a ser.
há algo de solene nisso:
a consciência de que o tempo nos molda
não com força,
mas com constância.
e é isso que assusta.
o fato de que nem sempre sentimos.
nem sempre vemos.
mas ele está ali —
nos desgastando devagar,
como a chuva faz com a pedra,
como o vento dobra as árvores
que um dia achamos indestrutíveis.
outro dia eu estava descendo minha rua.
hoje, escrevo sobre isso
como quem tenta segurar a água
com as mãos em concha.
sabendo que não dá.
mas tentando mesmo assim.
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talante
eu queria que as flores penduradas na minha janela tivessem mais cor,
que resistissem ao tempo como quem resiste ao cansaço.
eu queria não ter que sair às 7, com os olhos ainda pesados,
e voltar às 12, quando o sol me toca como se quisesse apagar a pele.
eu queria que o tempo me esperasse.
eu queria um silêncio que não doesse tanto.
eu queria menos pressa e mais manhãs calmas.
eu queria muitas coisas.
e, às vezes, queria só não querer.
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do que persiste
não temo aos deuses, tampouco ao chão me lanço;
mas carrego no peito um fardo amigo,
um tempo extinto, um campo sem abrigo,
um frio escondido no calor do avanço.
nunca foi tristeza, e nem se diz saudade,
é apenas eco onde algo moraria —
um toque ausente, um som que não se cria,
um lume extinto antes da claridade.
o mundo segue, e sigo — sem certeza,
não por ter rumo, mas por insistência.
sou passo brando entre a rude inclemência,
sou quase inteiro à custa da leveza.
e mesmo que o tempo nunca responda,
conservo em mim — silente, em desalinho —
a esperança adormecida e tão funda
de ver florir o que ficou caminho.
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entre os móveis
há uma xícara na mesa
ainda morna.
ninguém sabe quem a usou.
as cadeiras continuam no lugar,
mas uma delas parece levemente afastada,
como se alguém tivesse se levantado
sem fazer barulho.
o relógio marca uma hora qualquer.
a luz da tarde escorre pela parede
sem pressa,
tocando os objetos com a calma
de quem não espera ninguém.
há páginas abertas,
um casaco sobre o encosto,
uma música que toca ao longe
de onde não se vê o aparelho.
tudo está em ordem,
mas falta algo —
e ninguém comenta.
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não sei por que estou escrevendo.
o dia inteiro foi um espelho de "não sei".
não sei nem se sinto algo ao escrever.
e se sinto, não sei nomear.
passei pelas horas como quem atravessa um campo esquecido,
com passos que não ecoam, com olhos que não enxergam.
a tarde pesou sobre mim como pedra silenciosa,
a noite entregou-se ao peso de seu próprio cansaço.
escrevo porque carrego um tumulto que não se cala,
porque o tempo, hoje, não me reconheceu.
escrevo para existir por um instante,
ainda que entre as palavras eu também me perca.
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você lembra?
lembra quando a tarde caía devagar,
e as horas se esticavam como um fio de ouro,
enquanto o vento nos trazia o cheiro de algo distante,
mas que, de alguma forma, ainda era nosso?
lembra quando as risadas preenchiam os espaços vazios,
e o mundo parecia se curvar à nossa vontade,
como se nada mais importasse
além de estarmos ali, no instante perfeito?
lembra quando as palavras ainda tinham o peso do toque,
e cada promesso era leve, sem pressa de se cumprir?
a vida, então, parecia um filme em câmera lenta,
onde os detalhes eram mais claros, mais nítidos.
e agora, em silêncio, me perco nesses pedaços de tempo,
como quem busca no vento o que já não se vê.
mas lembra quando?
ainda posso sentir o calor daquele lugar.
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