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Pausas e Pousos
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Vivências do Trabalhador de Saúde em Tempos de Pandemia
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pausasepousos · 4 years ago
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A vida é violenta
Hoje encerra-se o mês de maio, mês da Luta Antimanicomial. Data importante para todos aqueles que lutam cotidianamente por uma sociedade sem manicômios.
Manicômio como aquela instituição asilar que encarcera todos os sujeitos indesejáveis da sociedade. Mas, acima de tudo, como diz Franco Basaglia, manicômio como uma super estrutura que atende as funções sociais que são de interesses da classe dominante. Essas funções sociais são econômicas e subjetivas e estão intimamente ligadas com um modelo de produção no qual nem todas as pessoas conseguem se encaixar, mesmo que queiram muito. Então, o manicômio serve para excluir socialmente as pessoas que não conseguem se adaptar a um modelo econômico de venda de força de trabalho. E o manicômio serve também para gerar lucro a partir dessas mesmas pessoas de outros jeitos. Mas quais seriam esses jeitos, já que elas não podem trabalhar? Ora, nos antigos manicômios, os corpos mortos dessas pessoas eram vendidos para Universidades, para que os cursos de Medicina formassem seus médicos com aulas de anatomia no corpo-louco-morto. Mas hoje, o sofrimento psíquico lucra vendendo remédios. Muito remédio. Deixar a população dopada é ótimo, né?! Assim a miséria em que vivemos desce goela abaixo e a a indignação fica sempre para depois.
Bem, mas o que eu queria dizer é que, habitualmente, o dia da Luta Antimanicomial é comemorado sempre com muita aglomeração, cortejos, arte na rua e ocupação de espaços urbanos gritando para quem quiser ouvir que todo manicôminio cairá. Acontece que hoje, dada as circuntâncias, as aglomerações não ocorreram. Então o dia da Luta Antimanicomial, foi, hoje, dia de trabalho antimanicomial. Muito trabalho.
E o meu dia começou com uma frase dita pelo Jorge, um sujeito de comportamento suspicaz e formulações paranoicas:- A vida é violenta.Essa frase cortante voltou no meu pensamento o dia todo. Ele tem razão, eu pensava comigo mesma. E lutar para que a vida seja um pouco menos violenta para ele (e para nós também), é ser antimanicomial. Ao longo do dia também atendi Cleide, uma senhora que usa medicações há 10 anos. Ela nunca fez outro tipo de investida terapêutica, nunca conseguiu um lugar para falar de si. Hoje ela apresenta um quadro clínico estranho, em que também estamos investigando alguma causa orgânica que possa nos ajudar a descartar possíveis causas para a sua mudança de comportamento. Mas é tanto psicotrópico, que nem sabemos mais como ela fica sem remédio. "A vida é violenta", retornava no meu pensamento. Ela e sua família toparam fazer uma retirada gradativa da medicação para ver como Cleide fica. Desintoxicar mesmo. Mas junto disso ela vai poder falar. É uma aposta antimanicomial, fazê-la emergir em meio a tanto remédio.
Depois eu fui almoçar com o Rubens, um autista grave. Sim, é possível fazer do almoço um atendimento. Mas esse almoço tem direção clínica. Ele está internado desde 1978. São 43 anos de internação. "A vida é violenta". Futuramente o Rubens vai morar em uma Residência Terapêutica. Então, almoçar em um restaurante comigo é a chance que ele tem de circular pela cidade, de ver gente, de experimentar o corpo de outros jeitos e de construir sua saída do manicômio. Hoje ele comeu com garfo! A cuidadora comemorou e disse que ele se saiu bem com o garfo, pois no manicômio só existem colheres. Poder ajudar o Rubens a escolher coisas simples, como comer com garfo ou colher, é ser antimanicomial.
A tarde fui com outra trabalhadora buscar a Regina na casa dela, depois que a mãe chegou desesperada no CAPS dizendo que ela havia batido no traficante da boca. A Regina mora com a mãe e as irmãs em uma favela, em frente a uma boca. É um barraco pequeno, com muitos objetos, lixo, animais e pobreza misturados. "A vida é violenta". Me lembro mais uma vez. Levamos a Regina em segurança até o CAPS, ela foi atendida durante a tarde por nós e amanhã vamos buscá-la novamente. Evitar que a Regina apanhe do tráfico, porque está desorganizada psiquicamente, é ser antimanicomial.
E adivinhe. Nenhuma dessas pessoas, sobre as quais escrevi poucas linhas, trabalha. O Jorge até tenta, mas vive de bicos. Todos tomam remédios. Eu não sou contra remédios. Mas sou contra o sofrimento psíquico gerar lucro. Não podemos esquecer que "a vida é violenta". E se indignar, é ser antimanicomial.
Marina Bistriche Giuntini
Terapeuta Ocupacional
Trabalhadora de CAPS
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pausasepousos · 4 years ago
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PÂNTANOS
Pântanos. Não existem brechas no lamacento. Mas temos aprendido sobre construí-las. Ailton Krenak, cujo povo tudo sabe sobre o tema, ensina a resistência pela imaginação. Por ser ela “[...] uma poderosa ‘esburacadora’ de brechas [...]” [i] Acho também esperançoso que diante de “uma avalanche de sofrimento que se anuncia”, como nos conta a psicóloga Luciana Pontes, seja possível ao ser humano pensar em “fazer jardinagem no canteiro da biblioteca” [ii]. Faz bonito o enfrentamento! Aprendo. Ou que, imersa em cenário de dor, Rejane de Lima, enfermeira, assim se decida: “E então me concentro nas silhuetas, nos movimentos, nos cabelos, nas vozes, [...]” [iii]. Do chão de paralelepípedo, lá de onde reinam os cães, ecoa seu convite: “coloque a cadeira na esquina. Ouve com atenção”. É para que se ouça a dor do mundo, seu convite.
Esperançosa é a resistência! Frente à realidade do contar corpos neste Brasil lamacento, Marina Bistriche, também terapeuta ocupacional, põe em palavras: “penso que priorizar a preservação da vida nesse momento é pura teimosia. [...] É resistir a ser jogado nessa pilha de corpos. É rebeldia” [iv]. Inacreditável momento! Seguimos esburacando brechas, porque ansiamos a plenitude do horizonte. Que inventamos. Contraposto ao desalento. Para que nos mova à travessia com a força que só o inventado tem. Por ele fiamos, cerzimos, firmamos agarras, tecemos asas, forjamos pontes... E narramos. Em mim, tudo dependente da palavra. Porque, como disse o escritor: as palavras “sabem muito mais longe!” [v]
[i] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.31. Apud SELIGMAN-SILVA, Márcio. Construir Paraquedas Coloridos? Corona e os sonhos para além do apocalipse e da redenção. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.5, disponível em www.editoraufmg.com.br.
[ii]Narrativa de Luciana Dantas Müller da Ponte, psicóloga, disponível em https://pausasepousos.tumblr.com/post/632440556105170944/de-que-cor-ser%C3%A1-ontem-foi-1o-de-outubro-na, publicada em 19.10.2020. Acessada em 25.10.2020.
[iii]Narrativa de Rejane Geremias de Lima, enfermeira residente em saúde mental, disponível em https://pausasepousos.tumblr.com/post/628003983281242112/capacidade-de-renova%C3%A7%C3%A3o-ou-de-se-recompor-nata-ou, publicada em 31.09.2020. Acessado em 12.10.2020.
[iv]Narrativa de Marina Bistriche Giuntini, terapeuta ocupacional, disponível em https://pausasepousos.tumblr.com/post/628003983281242112/capacidade-de-renova%C3%A7%C3%A3o-ou-de-se-recompor-nata-ou, publicada em 10.07.2020, acessada em 02.08.2020.
[v] QUEIROS, Bartolomeu Campo de. Correspondência. Rio de Janeiro: Rhj, 2010, sp.
texto escrito por: Rosalba Lopes
Arte de Zina Leal
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pausasepousos · 4 years ago
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Qual a credibilidade de um cuidador?
Por que escolhi esse trabalho? Não tem porque, eu quis. Eu poderia ter escolhido outra coisa, mas eu escolhi ele. Nem todo mundo escolhe, mas eu escolhi ele, e talvez ele também tenha me escolhido.
Não é que eu seja desinformada, eu sabia qual era o trabalho e o que teria que fazer antes de ser selecionada. Trabalhar na saúde, especificamente na saúde mental, proporciona um leque de opções, mas aí depende de você, sua formação e, principalmente, em que você acredita. Acho que talvez isso seja o principal, em que você acredita.
Aspirante a antropóloga hoje, mas durante a vida já fiz de tudo um pouco, talvez tenha sido que me trouxe até aqui, e talvez isso que me mantenha aqui. Acreditar que sempre é possível melhorar. Eu acredito que eu possa melhorar minha vida através dos meus sonhos e esforço, então venho trabalhando isso na vida de outras pessoas. Justamente pessoas que precisem que acreditem nelas, que acreditem na capacidade delas, que acreditem que é possível reviver após os anos perdidos.
Eu acredito nos meus moradores, acredito demais na capacidade deles, principalmente na de viver. Eu me encanto todos os dias quando vejo eles progredindo, ou quando finalmente consigo entender algo que era estranho se tornar algo que faça sentido. De como criamos nossos códigos de comunicação, e fico abismada com tamanha inteligência. Fico orgulhosa quando vejo um banho bem tomado, ou um bolo feito. Entendo também quando não é possível que nada seja feito naquele dia, porque ok né?! Me preocupo quando estão tristes, e às vezes também fico quando sei o porquê.
Às vezes queria que todos conseguissem vê-los como eu vejo. Eu tenho poetas, confeiteira, passista, astronautas enviados de deus, enfim, uma galera boa! Uma galera que eu aprendi a cuidar, a ajudar, a ser amiga, me arrisco até a dizer que a amar. Pra mim, são além dos seus prontuários e momentos de crises, são pessoas, que tiveram suas vidas marcadas de uma forma ruim, incapacitadas de decidir qualquer coisa sobre seus corpos.
Eu acredito que um dia eu possa fazer mais por eles, acredito que um dia meu trabalho e nosso esforço conjunto, o deles de viver e o meu de apoiá-los, seja tão importante quanto ou até mais do que aquelas pastinha numerada na gaveta, que ali esteja parte da vida deles, e não que seja a vida deles.
Que a nossa voz seja compreendida e não apenas ouvida como algo a ser controlado.
Viva o SUS, e a nossa força de SUStentar tudo o que ele contempla.
Amanda Tamara é cuidadora e integra a equipe do Capsi Zé Garoto, em São Gonçalo - RJ
Arte: Zina Leal
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pausasepousos · 4 years ago
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COSTURAS POSSÍVEIS
Como é estar diante de alguém que compartilha conosco experiências tão radicalmente diferente das nossas?
Rejane nos conta sobre seu percurso no território e como foi se afetando com os encontros pelo caminho. Em trânsito, se transformava, se desfazia. Lendo Rejane, penso em meus trânsitos.
“Bota a cadeira na calçada”
Essa frase-imagem circulou entre nós naquele dia e me levou a uma viagem ao passado, de quando eu era residente em saúde mental e também me vi diante de corpos marginalizados. Corpos descartáveis, sobreviventes, classificados como “fora de possibilidades terapêuticas”. O que fizemos lá também foi “colocar a cadeira na calçada”. A calçada era a varanda, o refeitório e o dormitório da sessão onde todas as mulheres, cronificadas por 20, 30, 40 anos de internação psiquiátrica movimentavam apenas seus corpos. Onde elas estavam? Participar daquele território nos fazia ouvi-las, recolher o que diziam, compartilhar seus cotidianos e lança-las um olhar fora daquele enquadramento.
Dez anos depois, me vi diante de corpos trans, também marginalizados, ainda que em contexto diferente daquelas mulheres. Reconhecia ali algum tipo de encarceramento, de marginalização, estigma e sofrimento.
O que mais me chamou atenção em seu texto foi quando você falou em se desfazer e se espalhar e como é difícil a gente se desfazer quando a gente sempre tá partindo de algum enquadramento para dirigir nosso olhar, sempre tentando encontrar alguma categoria para dar sentido ao que a gente vê. E quando estamos diante de situações muito fora do que podemos enquadrar, nosso olhar fica mais embaçado. Não sabemos direito quais as coordenadas conseguimos capturar.
Apesar da minha experiência não ter sido na rua, como Rejane eu também precisei aprender a andar em paralelepípedo. Naquele chão que não é muito liso, nem muito firme, que tropeçamos, caímos, prendemos o salto, tentamos de novo, torcemos o pé até encontrar um jeito possível de caminhar. Da minha cadeira, me abro à escuta e transito por palavras, construindo uma trilha por onde é possível caminhar junto.
“Quando eu vim para cá eu não tinha nada planejado. Só estava querendo entender o que estava acontecendo comigo. Até hoje eu não consigo entender ou explicar o porquê de um homem se vestir de mulher. Eu tenho esse desejo e não consigo entendê-lo.
Danielle me fala isso em uma de nossas conversas para a minha pesquisa de mestrado.   Meu objetivo era conhecer as experiências narradas pelas pessoas que buscam atendimento e refletir sobre a prática em saúde mental realizada no ambulatório do Processo Transexualizador do SUS onde eu trabalhava.
Como Danielle, foi preciso um jeito de me acostumar com esse não entender, não saber. Com uma costura que faz e desfaz para abrir um espaço de acolhimento onde seria possível recolher retalhos e tecer uma colcha. A consequência para nós, trabalhadores é que também nos desfazemos. O desafio na atenção psicossocial é a gente se desfazer o tempo todo, como me alerta Alessandra em outra conversa para a pesquisa:
“Eu sei também que você passa por um processo de construção junto comigo. Junto com as pacientes, você também está aprendendo, você também está ouvindo, você também está crescendo. Também está num processo de transformação, não é uma coisa de via única. É uma troca, uma via de mão dupla. Vejo isso como um processo pedagógico, meu e seu, onde você aprende comigo e eu aprendo com você, onde a gente vai se desconstruindo da nossa realidade”
Cada um do seu lugar e com a sua experiência pode e deve fazer com que todos os corpos tenham direito à vida.
Texto da Psicóloga Clarice Cabral (IPUFRJ)
Arte de Zina Leal
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pausasepousos · 4 years ago
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SUS –MEMÓRIAS, VIDAS E ESPERANÇAS
Hoje, 20 de janeiro de 2021, começo o dia com a chegada da vacina no município do Rio de Janeiro. Atuando na função de gestão de saúde mental de um território da cidade do Rio de Janeiro
Há 20 anos trabalho no SUS, no Campo da Atenção Psicossocial, em especial na área de álcool e outras drogas. Como psicóloga e psicanalista, já ocupei funções de gestão, supervisão e formação de residentes multiprofissionais de saúde mental e alunos de especialização com treinamento em serviço. Mais recentemente, atuei na Atenção Primária e me coloquei o desafio de articulação entre as equipes da Estratégia de Saúde da Família e os NASFs com a Rede de Atenção Psicossocial. Esse desafio me move a voltar a atuar na gestão nesse momento. Gestão é um grande desafio, um lugar a ocupar nem sempre confortável.
Diante do atravessamento de uma pandemia sem precedentes e histórica, o SUS se reafirma como um sistema público eficiente, com proeminência e reconhecimento mundial. O SUS enfrenta a pandemia, demonstrando que seus princípios e diretrizes são majoritários e imprescindíveis para a população brasileira. O princípio da equidade mostra sua força, colocando em relevo o cuidado e imunização de populações mais vulneráveis.
Hoje foi um dia de home office muito emocionante, vibrei com cada depoimento, testemunhos, agradecimentos e fotos de usuários e profissionais sendo vacinados com expressão de muita felicidade e esperança.
Há muito tempo não me sinto tão emocionada com meu trabalho no SUS. Em geral sou bem contida nas emoções no exercício de minhas funções de trabalho. Mas hoje a efetividade do SUS no trabalho da imunização e o clima de esperança e alegria foram contagiantes.
O dia de hoje me fez lembrar um momento também histórico do SUS e da Reforma Psiquiátrica.  Há mais de 10 anos, participei do processo de acompanhamento, intervenção e fechamento da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi. Certa vez, durante o plantão, tivemos notícia de um óbito no leito clínico. Eu e meu colega psiquiatra nos dirigimos ao leito clínico. Solicitamos o livro de óbito e fomos informados, de forma indiferente, que havia acontecido outro óbito. Fomos ver os pacientes dos leitos clínicos. Quando entrei na enfermaria, olhei um paciente que me parecia estar muito debilitado e nos aproximamos do leito. O colega psiquiatra me diz: esse paciente está morto! Fiquei muito assustada com o fato de estar trabalhando numa instituição total, mortificante simbolicamente e executando violação de direitos humanos fundamentais. A mortificação do eu, que simbolicamente Goffman conceitua sobre a institucionalização nos manicômios, chegou a um limite tal, que diante de pacientes desnutridos, cadavéricos, eu não consegui perceber a morte de um paciente diante dos meus olhos. Tive que ser alertada pelo colega médico que não identificou sinais vitais. Minha indignação foi muito grande. Um paciente morto no leito, ao lado de leitos de outros pacientes vivos. A ausência do ritual simbólico e digno da morte, me tocou profundamente. No mínimo esse paciente deveria estar coberto por um lençol. Diante do horror desta cena, sai da enfermaria clínica com lágrimas nos olhos, percebendo o real da violência manicomial.
Hoje, depois de uma longa trajetória de trabalho regida pela Reforma Psiquiátrica, me emociono, mas contagiada pela alegria vivificante da lógica da Atenção Psicossocial. Feliz por ter contribuído hoje com a esperança de vida para os usuários de saúde mental mais vulneráveis e profissionais de saúde mental.
A revivescência de uma memória trágica foi ressignificada por contribuir para um momento histórico do SUS e da Reforma Psiquiátrica.
Assim percebo como o SUS pulsa VIDA, esperança e alegrias!
Texto de Viviane Tinoco - Psicóloga e Psicanalista no Rio de Janeiro
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pausasepousos · 4 years ago
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Hoje publicamos o texto da musicoterapeuta Lara Karst. É um belíssimo texto que fala sobre como muitas vezes utilizamos um referencial bélico para pensar assuntos de saúde e com muita delicadeza, nos convida nos deixarmos embalar pelo som de nossa criança interior.  
“Sou um guerreiro?
Ontem durante um atendimento o paciente gritou com a mãe. Chorando disse as seguintes palavras: eu não sou guerreiro, não quero ser guerreiro! Não quero essa luta, não quero estar aqui!”
Observo que muitos termos belicosos são utilizados para crianças em tratamento com câncer.
É importante refletir que muitos pacientes não gostam dessa associação que, de certa forma, os obriga a serem fortes ou  a mostrar que são fortes.
Nem sempre eles querem ouvir isso!
Minha intervenção no atendimento foi dizer: concordo com você! Você não é um guerreiro, você é um menino. Isso também não é uma guerra!”
Compreendo que em um momento desses a criança esteja clamando por empatia, por colo, por acolhimento, pela validação de sua dor.
Não está pedindo conselhos ou reforço positivo para aquilo que não tem nada de prazeroso.
Expliquei para ele que esses são “rótulos” muito comuns. Que foram muito utilizados em campanhas de arrecadação de verbas para sensibilizar pessoas.
Disse a ele: “câncer não é uma guerra. É uma doença e tem tratamento. Compreendo que esteja sendo difícil para você. Vejo que você já está sendo muito forte aguentando tudo isso aqui. Continue sendo o menino que é. a sua mãe agora pode aprender que você não se sente bem sendo chamado de guerreiro.”
Ele se tranquilizou.
O menino aos 12 anos, iniciando a adolescência, se permitiu então escolher uma música: “ toca uma música de criança para eu dormir”
Assim pôde descansar!
Seja menino pelo menos enquanto adormece…
...que essa canção embale sua criança interior....e suas melhores esperanças!” Arte: Zina Leal
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pausasepousos · 4 years ago
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Costuras Possíveis Hoje publicamos uma das costuras tecidas por Rosalba Lopes, historiadora que compõe a equipe do Pausas e Pousos. As costuras são uma forma de tentar colocar em palavras os afetos de nosso encontro com as narrativas. “Atravessar pântanos. Onde as agarras? Apoiadas em atoleiros. Natureza de armadilha. E este silêncio! Vontade de colocar tudo em palavras. Organizar cada desespero em seu lugar. Fiar a desordem. Qualquer fio. Quem sabe a ciência? As pegas assentadas sobre a organização lógica do pensamento. Tento. Mas subestimo o fato de ser o mesmo olhar o que carrego. Na análise de nosso tempo leio: o “cansaço [...] atinge a pessoa com incapacidade de ver e mudez. [...]” [1]. Cansaços que “consumiram como fogo nossa capacidade de falar, a alma [...]”.[2] Explicado, e entendido. Sofro a mudez. Essa insuficiência das palavras. Esse impedimento de dar sentido ao caos.
Ensaio reações. Lembro-me que li sobre os poderes curativos da literatura, “essa confissão de que a vida não basta”, como quer Rosa Monteiro.[3] Como pisando em ovos, retorno ao território das narrativas-pausas. Visto as palavras de Luiza Ribeiro, que ajusto ao meu formato para melhor desfrutar a sintonia: “[...] sofro por [não] conseguir dar qualquer nome [para] isso que [estamos] vivendo... [Não] há ainda palavra no mundo que se encaixe em qualquer milímetro deste sentimento”.[4] Exato! Onde as palavras? Na narradora, essa ausência transborda: “Chorei com toda minha humanidade cansada de um tempo esquisito demais para se ter qualquer dimensão”. Uma vez mais, cansaço e mudez.
Pousam imagens: “num tem luz nesse buraco...[5]”. Marina Bistriche, se socorrendo na arte, nos lembra do “contar corpos” que se incrementa em nosso cotidiano. Àqueles corpos cantados por Criolo[6] se somam mais de 214 mil produzidos pela covid-19. É de pântano a imagem que me invade. Tudo morno. Sanguessugas em ação. Muitas. E nem ao menos o estampido das panelas nas janelas. A amiga me diz que, segundo as Escrituras, “Deus vomitará os mornos”. Não fui conferir. Comungo o enjoo. São pantanosas pergunta e resposta que se escondem no desalento. Precisamos continuar? Não precisamos. Escolhemos. Então, a travessia.”
[1] HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Rio de Janeiro, Vozes, 2015 p. 38. Edição digital.
[2] Idem
[3] MONTERO, Rosa. A ridícula ideia de nunca mais te ver. São Paulo: Todavia, sd, p. 29.
[4]Narrativa de  Luiza Ribeiro, terapeuta ocupacional, disponível em ttps://pausasepousos.tumblr.com/post/624343212151177216/ontem-foi-um-dia-muito-puxado-no-trampo-em-sampa, publicada em 22.07.2020. Acessada em 10.10.2020.
[5] Idem
[6] A narradora faz referência à música Lion Man, Intérprete e compositor: Criolo, In: Nó na orelha. São Paulo: Oloko Records, 2011, digital. Arte: manipulação digital por Teca Vargas sobre arte de Zina Leal
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pausasepousos · 5 years ago
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Carolina é a personagem que encerra a trilogia narrada pela enfermeira e escritora do Rio de Janeiro.
"Carolina. Mulher, preta e pobre, da Baixada. Cabelo crespo e a pele escura, a ferida amostra, à procura da cura. Taxada como louca e drogada. Consequência: internada. Sua voz no Manicômio ecoa, mas a psiquiatria quer silenciá-la. Sofre pela perda de seu filho, enquanto cuida de outra cria. Mas a dor é calada pela psiquiatria.
Seu corpo rebelde se move para fugir dessa prisão, mas a resposta que recebe é somente não!
Sua voz ecoa no tambor da macumba, mas para o Manicômio isso é apenas uma loucura. Essa mulher preta e louca, tem o eletrochoque como tratamento, mesmo não sendo ouvida e nem querendo.
O que fazer diante da violência do Manicômio sobre a vida de mais uma mulher preta?
Guerrear e não deixar essa voz se calar, mesmo que arrumemos treta! Carolina, presente!”
Arte: Zina Leal
Você também pode ler este e outros textos de profissionais de saúde no nosso instagram e no nosso facebook @pausaspousos
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pausasepousos · 5 years ago
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Este foi o texto com o qual a psicóloga Rita Silverio nos presenteou na Roda de Conversa feita sobre a temática do Luto dos profissionais de saúde. Um tema árduo, muitas vezes posto de lado, porém necessário de ser aprofundado. Acreditamos que o lado mais rico do Pausas e Pousos tem sido justamente essa possibilidade de diálogo e intercâmbio com pessoas do campo da saúde, nos permitindo a aproximação e a descoberta das múltiplas experiências e estratégias de enfrentamento dos profissionais ao longo desta pandemia.
"Primeiramente gostaria de agradecer ao convite para participar desta roda de conversas, e especialmente agradecer à Isadora Jochims pelo compartilhamento desta história tão intensa*. E espero poder contribuir de algum modo na costura deste delicado bordado que vem sendo tecido pelo Pausas e Pousos.
Optei por fazer minha costura com um breve texto escrito por mim, no momento em que li a narrativa de Isadora, na tentativa de trazer muito mais os afetos suscitados pela narrativa do que qualquer questão teórica. E o primeiro afeto que registro foi ternura. Ternura pelos familiares impedidos de despedirem-se do filho, irmão, sobrinho, amigo, enfim, da pessoa amada. E ternura pelos profissionais, destaco aqui a Isadora, que testemunhou a dor desses familiares frente a morte iminente e na impossibilidade de despedida; assim como testemunhou a ruptura do tecido da vida do próprio jovem, em seus momentos finais, ou dito de outra forma, a transformação de larva em borboleta, usando aqui uma alusão de Kubler- Ross, que atribuiu simbolicamente a borboleta essa transmutação pela morte. Em todos esses casos, sejam familiares, amigos ou profissionais, nos referimos ao rompimento de vínculos afetivos, ainda que de diferentes naturezas. E nos deparamos com o maior desafio da vida, a finitude!
Quando da leitura da narrativa, uma primeira memória de imediato emergiu para mim, uma vaga lembrança do filme tomates verdes fritos, que assisti há muitos e muitos anos atrás, e que traça a partir da narrativa oral de uma senhora à uma visitante desconhecida, sua trajetória de perdas e luto. Ou seja, a possibilidade de dar voz as suas perdas ao testemunhá-las a outra pessoa disposta simplesmente a estar junto e a escutá-la, a possibilidade de lembrar e assim dar vida às experiências de perda vividas solitariamente, assim como aos seus mortos, afinal de contas, costuma-se dizer que a pessoa morta sobrevive em, e a partir de nossas lembranças, o que de algum modo legitima a sua dor, permitindo sua reparação. Em um luto, que talvez possamos designar como adiado quando não encontra tempo e espaço para sua emergência e elaboração no ato do acontecimento.
A narrativa me remete ainda a outras questões muito sensíveis, como por exemplo, os sentimentos que advém diante da perda de uma pessoa jovem. Pois somos sabedores de que todos morreremos um dia, mas o esperado é que a morte chegue após completarmos o ciclo maturacional do nascimento até o envelhecimento. E quando um jovem adoece gravemente e morre, fica muito difícil digerir esse rompimento vincular tão precoce. E não é difícil só para os familiares e amigos próximos, costuma ser difícil também para os profissionais que o assistem. Alguns por serem tão jovens quanto aquele por eles cuidado e que se foi, e outros por verem nele o filho, sobrinho, neto... ou até a si mesmos. De algum modo, a morte de uma criança ou jovem parece romper a ordem natural das coisas, subverter nosso mundo e nossas crenças. E nos posicionar diante da dura questão de que há um tempo para tudo o que é vivo, e que este tempo não é o do relógio, das conquistas por vir, dos sonhos por realizar, é um tempo desconhecido e do qual não temos qualquer controle, não nos cabe escolher como, tampouco saber a hora. O que nos demanda a viver cada dia como se fosse o último, ou seja, a viver plenamente.
Outra questão que imediatamente a narrativa de Isadora me despertou foi a questão dos desaparecidos, àqueles por quem não é possível ter um corpo para chorar. E por dia 226 pessoas desaparecem no Brasil, em 2019 foram 82 mil pessoas. O que deixa o luto sempre em aberto, em suspenso, em uma infinda incerteza de que a pessoa ainda possa voltar, uma vez não haver comprovação física de sua morte. Despertando uma angústia impensável, como diria Winnicott.
Neste sentido, a narrativa de Isadora revela sem máscaras ou disfarces, não só a dor pela perda daqueles que nos são caros em tempos de covid, como também a dor por não ter um corpo para dizer as últimas palavras, efetuar o último toque, dar o último beijo ou abraço, olhar nos olhos pela última vez, algumas vezes até para dizer da raiva por ter deixado àqueles que o amam, ou simplesmente para estar ao lado mais uma vez. Como disse Rita Khel, esse impedimento em tempos de pandemia, demarca uma tortura: “Não ver o corpo de alguém que perdeu é uma tortura”.
E também os profissionais não são imunes a tudo isso, eles tem testemunhado, participado e conduzido cotidianamente essas situações tão doídas de fratura dos laços afetivos, tentando costurar com palavras e gestos encapsulados por máscaras, luvas e outros equipamentos sua solidariedade e emoções, e também seu pesar. E é preciso construir alternativas, onde essas insurgências promovidas pelo impedimento de viver plenamente a dor do luto, possam encontrar espaço de emergência. Creio que Isadora, corajosamente, ao compartilhar sua narrativa tão sensível com pausas e pousos, tem um ato de insurgência, no sentido de não se conformar ao silenciamento imposto e buscar a legitimidade dessa perda e do luto que a acompanha. Como disse Galeano, recordar: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração.
Dito isto, proponho um minuto de pausa pela recordação do jovem que faleceu, pela lembrança de todos os enlutados pela sua perda, também enlutados pelos impedimentos e exigências impostas pelo covid, e pelos profissionais da ponta, testemunhas de tantos amores, dores e perdas, e enlutados por muitas delas, sobretudo Isadora que está aqui conosco."
Rita Silverio é Psicóloga, Mestre em Atenção Psicossocial, especialista em Saúde mental e reabilitação psicossocial e há aproximadamente 15 anos dedica-se aos estudos em tanatologia e luto.
Arte: @Zina Leal 
O texto da Isadora Jochims, ao qual Rita se remete se chama "Luto sem Corpo" e foi publicado aqui no nosso tumblr e nas demais redes do Pausas e Pousos.
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pausasepousos · 5 years ago
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“Rafael,
Morador da Baixada Fluminense e de Vila Isabel. Quando não tem morada, fica em situação de rua, invisibilizado. Um sujeito sem lugar na vida, desumanizado.
Sua loucura? Provar que não é Maluco. Mas a psiquiatria tem diversos diagnósticos comprovando sua “loucura.”
O manicômio institucionalizou e violentou Rafael de diversas formas, contendo e silenciando seu corpo. Esse corpo “rebelde” aprende na dor a responder com violência.
A sociedade capitalista não permitiu acesso ao cuidado dessas dores e o racismo coloca Rafael como um homem negro perigoso.
Um homem negro, pobre e institucionalizado, não tem direito a nada no Estado Burguês. A naturalização das internações de Rafael expressa o lugar do manicômio como instituição de violência.
A vida de Rafael é inviabilizada, porque a política do extermínio e expropriação do povo negro, impôs uma vida precarizada para ele.
Rafael não aguenta mais, mas segue resistindo! Quem estará junto com ele nessa resistência?
Rafael, presente!”
Arte: Zina Leal
Texto de uma enfermeira de Saúde Mental do Rio de Janeiro
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pausasepousos · 5 years ago
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O texto de hoje contém uma diferença: foi escrito pela Zina Leal, que geralmente faz as pinturas aqui no Pausas e Pousos. Zina leu seu texto em nossa última roda de conversa com o tema "Luto do profissional de saúde: experiências de trabalho durante a pandemia". Essa roda mobilizou afetos que só a arte pode expressar e Isadora Jochims, que escreveu o texto disparador  da discussão - fez essa linda aquarela para compor com o texto da Zina. Parafraseando Isadora "O luto é mais leve se for compartilhado"
“TempoEm tempo de morte,
A vida desembesta  à galope.
No embate do dia:
Faz do corpo o que não vejo.
”Texto: Zina Leal
Arte: Isadora Jochims
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pausasepousos · 5 years ago
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Maria
“Maria, Maria, é o som, é a cor e é o suor."
Maria, é mulher, é negra e é pobre.
Maria esteve 18 anos no Manicômio de Paracambi e está há 20 anos sendo internada no Manicômio do RJ. Sabemos que...
"A carne mais barata do mercado é a carne negra, que vai de graça para os Hospitais Psiquiátricos."
Maria pede socorro. O Manicômio dá eletrochoque. Maria pede para sair do Manicômio e voltar para casa. O Manicômio dá pátio proibido a Maria. Maria pede comida. O Manicômio dá contenção e medicação. Maria pede para viver. O Manicômio dá a violência e a morte.
Mais uma mulher negra sendo silenciada dentro do Manicômio. E nós, o que faremos?
Maria, presente!
Este é o primeiro de uma série de 3 textos que foram escritos por uma enfermeira de Saúde Mental do Rio de Janeiro.
Arte: Zina Leal
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pausasepousos · 5 years ago
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De que cor será?
Ontem foi 1o de outubro. Na unidade oncológica em que trabalho, foi necessário reabrir a ala covid. Vi o olhar cansado de minhas companheiras diante dessa notícia e da nova avalanche de sofrimento que se anuncia. Todas já lutaram muito e sabem que virão novos combates. Não há mesmo outro verbo melhor. Não é apenas uma metáfora de guerra, é uma guerra. Ainda sim, tentamos contornar. Cantamos parabéns com bolo de chocolate com morango, pensamos em fazer jardinagem no canteiro da biblioteca, nos reunimos para pensar sobre o alcance dos teleatendimentos, sonhamos com a possibilidade de promover uma live com a Teresa Cristina para as nossas pacientes. A utopia de um outubro rosa aquece o coração, embora saibamos de todos os espinhos. Vamos juntas.
Luciana Ponte é psicologa no INCA e no Hospital Federal dos Servidores do Estado no Rio de Janeiro
Arte: Zina Leal
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pausasepousos · 5 years ago
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Controle social, educação popular. Teorias que me enchem de prazer, mas a prática transborda. Dois dias entre os kisedje. Duas vidas de aprendizados.
Tony suya, contador de história. nega qualquer comida que não seja natural. "Farinha só da minha roça". Sentado na cadeira de corda conta que na sua época eram poucos. O tempo contava por lua, a canoa não tinha motor, o peixe era na flecha. A flecha, tinha que remar 3 luas pra achar. Os Villasboas chegaram, trazidos pelos Juruna. Chamaram os kisedje pra fugir do homem branco. Eles foram, mas voltaram. "Nunca esquecemos essa terra roxa".
Um dia o pai do Tony trouxe uma mulher. "Essa é sua esposa". Tony voltou pra brincar no rio. "Não sabia pra que servia a esposa". Dormiu na rede com ela, mas de costas. "Filho, tem que dormir direito com sua esposa". Depois de uns dias ela disse que ia embora, "meu marido não gosta de mim". Tony teve que gostar, e gostou. Gostou demais, foi sua única esposa. Aprendeu a ser marido, a ser pai. Hoje é viúvo, não casou mais.
Kuya suya, filha do cacique, agente indígena de saúde, liderança feminina, uma das duas primeiras doulas indígenas do Mato Grosso. Quer ser parteira, igual à mãe. Pediu autorização na comunidade pra ser agente de saúde, eles deixaram. "Não é fácil ser filha do cacique, todos estão sempre olhando". Sua amiga também filha de cacique diz, ela sorri concordando. Segue sua mãe desde pequena. Aprendeu os costumes assim. Acompanha todos os partos. Sabe do remédio de cada um. Participa das reuniões, não se cala. Voz feminina que cresce nessa terra. Espírito livre, raro por aqui.
Enquanto olho a calmaria do rio, a bomba cai. O vírus entrou, será que entrou? Reúne as lideranças, discute as angústias, cacique decide. Dez dias de escola fechada, cada um em sua casa, suspende reuniões coletivas. Reunião com a equipe de saúde. Decide horário de rádio, organiza atendimentos. Todos de máscara, "como toma o cafezinho agora, doutora?".
Todos respeitam. Se respeitam. Se orgulham de sua união. Exibem sua união. E eu só aprecio, os olhos chegam encher de água. Esse Brasil é mesmo lindo de se ver.
Daphne Lourenço, médica de família e comunidade no DSEI Xingu.
Arte: Zina Leal
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pausasepousos · 5 years ago
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Tirando a roupa
Idoso com demência, morador da enfermaria da Clínica médica, há 7 meses internado por questões sociais, não consegue vaga de abrigo e nem a família é localizada. Já virou conhecido de todos os profissionais, paciente querido da nossa enfermaria. Diariamente pela manhã vinha à sala da chefia da enfermagem para tomar seu cafezinho. Com o vírus e com a liberdade de transitar pelo hospital sem máscara acabou pegando a doença, teve que ser transferido para a enfermaria COVID. Sem conhecidos, sem seu cafezinho, sem liberdade para transitar pelos corredores do hospital acabou ficando nervoso e tirou a roupa!
Seguimos torcendo por sua recuperação seu João, estamos com saudades da sua presença no cafezinho da manhã. Nos identificamos com a vontade de tirar a roupa e sair correndo por aí!
Texto e aquarela de Isadora Jochims - médica reumatologista de Brasília
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pausasepousos · 5 years ago
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Brechas, gritos e ecos!
Falei de silêncios. Fiei, desfiei. Nada de arremates. Só alívios! Do meio do poema, lido há tanto, redescubro: “[...] este silêncio é engano, é pura expectação, é o que mesmo sem guizos é esperança.”[1] Quero crer, mas me faltam os guizos. O som do humano no meio da travessia.
“E quando a gente sente a tristeza todinha do mundo em nós?” [2]. É a pergunta que leio, nem bem pousei os olhos neste território onde a palavra dá sentido à expectação. Escavo atrás das brechas. É delas que vivo nesse hoje pedregoso. Diante do paredão comemoro as frestas. Esperança dos guizos permitindo suportar a dor colossal que se instala.
Nas palavras da médica encontro a confirmação de que a “defesa humana para a dor sem sentido é enfeitá-la com a sensatez da beleza”[3]. Posso ver os enfeites espalhados pela narrativa, mesmo nos momentos dilacerantes. Os últimos de Takuma Kuikuro: “[...] ele vai morrer. Mas vai morrer abraçado.” [4] A mágica irredenção na desaconselhável onda que cobre o morto: “Eu não vejo mais Takuma, são muitos em seu peito [...]”. Quem não quereria ter muitos em seu peito? Quanto valerá um abraço neste momento? Encontro os guizos na generosidade das decisões de quem usou o imenso poder de médica para deixar que Takuma morresse abraçado.
Volto aos ecos, essas testemunhas fugazes do pronunciado. Mas nos relatos que li, das mortes de indígenas por covid 19, persistem ecos nada fugazes. O secularmente vivido por estes povos. Ameaça e resistência. Vejo-as na pergunta - um grito - da mulher que chora a morte de Takuma: “uma mulher grita olhando pra mim. [...]: porque o branco trouxe essa doença pra matar os índios?” [5]. Daphne gostaria de responder: “sinto muito”.
Também sentimos muito Doutora! Quem dera um dia ecoe forte um pedido mundial de desculpas e que os gritos de todos os Xingus quebrem os silêncios criminosos. Ainda os guizos!
 [1] PRADO, Adélia, Porfia. In: O coração Disparado. 3ª edição, Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 65.
[2]Narrativa de Breno Lincoln Diniz, disponível em  https://pausasepousos.tumblr.com/…/dor-e-liberdade-e-quando. Acessado em 01.07.2020.
[3] MONTERO, Rosa. A ridícula ideia de nunca mais te ver. : Todavia, sd, p. 106.
[4]Narrativa de Daphne Lourenço. Recebida e em processo de publicação em https://pausasepousos.tumblr.com.
[5] Idem.
Texto: Rosalba Lopes é historiadora e integra a equipe do Pausas e Pousos
Arte: intervenção digital sobre trabalhos de Zina Leal
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pausasepousos · 5 years ago
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"Takuma Kuikuro, segundo óbito por covid que presencio. Mas esse mais do que presenciei, compartilhei com sua família a decisão sobre seu fim. Takuma era cadeirante, 50 anos, caquetico. Cuidado com muita dificuldade na aldeia. Se contaminou com coronavírus. Foi difícil perceber os sinais. Oxímetro nao pega, ausculta turbulenta, não fala. Até agora me pergunto se deveria ter feito diferente.
Rapidamente ficou grave, cansado. Tava difícil respirar. Oxigênio contínuo, antibiótico venoso. Tudo na aldeia.
"É muito grave, ele pode não sobreviver ao dia de hoje"
Noite em claro, Takuma está cansado. Outra noite, pequena melhora. Ele está estável com fluxo mais baixo de oxigênio. Hoje a equipe pode dormir. 8 hrs da manhã, equipe chega. Takuma nao conversa mais. Está muito cansado. Pressão baixíssima, pupilas não reagem.
"É grave, Takuma não respira mais sem oxigênio. Esse é nosso último cilindro. Vamos pra cidade?"
"Não doutora, Takuma vai morrer na aldeia"
Não havia mais nada a ser feito, Takuma estava em seus últimos momentos. O choro coletivo começa. A família entende que são os últimos momentos. Vem pessoas de outras aldeias chorar a seu lado. Todos querem abraçar Takuma.
"Doutora, você pode desligar o oxigênio? Nós queremos abraçar ele sem máscara"
Paro, penso. Eu vou desligar, ele vai morrer. Mas vai morrer abraçado. Fecho o oxigênio.
Todos abraçam, choram, desmaiam. Eu não vejo mais Takuma, são muitos em seu peito. Uma mulher grita olhando pra mim. Depois descubro o que ela diz: "porque o branco trouxe essa doença pra matar os indios?"
Gostaria de responder: "sinto muito".
Não vejo Takuma morrer. Como vou atestar esse óbito? Será que vou enterrar alguém com vida? Me dou conta do meu poder, ele é imenso. Minha angústia maior ainda.
Takuma está pintado, colorido. Ele é um guerreiro de novo. Está em paz. Sua família sofre, o sofrimento mais intenso que já vi. Homens e mulheres adultos desmaiam, parentes carregam seus corpos em sofrimento. Adolescentes desmaiam. Crianças choram.
O corpo entra no caixão, o caixão entra no buraco. Sua mãe se joga em cima. Familiares a retiram. O buraco é fechado, o choro se ouve à distância. Takuma se foi.
Foi difícil, mas vi uma morte linda. Pessoas de longe vieram lhe ver. Deixei que ele fosse abraçado.
Se puder escolher, espero que algum dia façam o mesmo por mim."
Daphne Lourenço, médica de família e comunidade no DSEI Xingu.
Arte: intervenção sobre imagem de esteira feita pelo povo Kalapalo.
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