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Valor do Tempo Próprio

Maria estava sentada anotando, anotando, anotando. Cristina pergunrou o que ela tanto anotava.
-- Dados. Posição dos planetas, marés, nascer e pôr do sol e da lua. Temperaturas do dia.
-- Mas por que você anota isso tudo? Tanta coisa interessante para fazer. Gastar tanto tempo com tanta besteira...
Enquanto falava, Maria foi para seu quarto ler um livro que fazia parte de um desafio booktuber. Cristina, então, cansou de falar sozinha, ligou a tv e ficou zapeando enquanto olhava os status do instagram.
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Setembro Amarelo
-- Eu sei que você me ama. Acho mesmo que acredita realmente no que diz. Mas você já tentou olhar além dos meus olhos x, cabelo y, pele z? Já experimentou ver além desta camada de carne, de carbono, de gelo ou de silício? Existir dói. Nem sempre quero esse corpo, esse rosto, essa vida. Nem sempre quero estar consciente do que está à minha volta, porque dói. Você acha que eu não quero um interruptor que me desligue do mundo? Mesmo se eu achasse, ele não desligaria. Ainda haveriam tantas as inseguranças. Ainda haveria minha saúde cada vez pior. Ainda haveria minha mente quase dissossiando e pondo em risco a integridade física do meu corpo.
A partir daí tudo silenciou. A voz petrificou e não pôde mais voar. Um trovão revelou o abismo claro. Ele tentou suportar aquela aflição entre suas mãos, na região onde as palavras não tinham mais significado.
Os sinos soaram a hora última e os dois se deram as mãos, subindo lentamente as escadas até o ponto mais alto da torre. A cidade se reduzia a miniaturas sob seus pés. Todos os dias corriqueiros e vulgares agora se tornavam pequenos, frágeis e distantes.
Eles tiraram seus sapatos e deram um único salto. Suas asas cobriram a noite antiga.
As estrelas puderam nascer.
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Maternidade

Eu precisei colher toda força que eu não tinha para poder te abraçar. E você me aceitou, como se tal força fosse suficiente. Eu te entreguei meu corpo para que você pudesse se nutrir. Eu virei minha alma pelo avesso para poder te acalentar.
Você me deu a mão, como se eu fosse sólida.
Você acompanhou meus passos, como se eu conhecesse o caminho.
Você me sorriu como se o meu coração pudesse acolher tua imensidão...
... e ele transbordou.
Teu pequenino corpo ainda cabe inteiro dentro dos meus braços. As asas do teu destino ainda estão em minhas mãos. Qualquer toque em falso e ela pode se quebrar. Teus olhos são dois sóis ardentes de vida. Neles se sustentam nosso amanhecer. Por eles me concentro no nosso futuro. Por eles me sustento para não cair. O único poder que disponho em abundância para lhe preservar é o Amor. Só ele me guiará até a melhor escolha. Só ele poderá minimizar os danos que meus erros podem lhe causar. Clarice Shaw
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O fim do mundo passou agora, você não viu?

Foi há muito tempo o fim do mundo, há uns 5 séculos atrás. Você não viu? Eles vieram pelo mar e depois tudo morreu. Talvez pelo sal em seus pés, ou pelo veneno em seus espíritos, mas o fato é que tudo morreu.
Foi há duzentos dias o fim do mundo, ou vem sido há uns 70 anos. Eles disseram que esta terra era deles e tiraram todos os que estavam aqui. Cortaram braços e pernas das crianças, queimaram seus pais. Pouco restou além do escombro dos nossos dias e da comida espalhada pelo chão.
Foi no começo dessa semana o fim do mundo, faz só algumas horas. A água veio e cobriu de lama toda a nossa vida, os corpos ficaram boiando por todos os lados. Agora além da fome, da sede e do frio, temos que sobreviver às mentiras e às armas dos malucos que tentam defender o que daqui há pouco estará estragado.
Foi há muito tempo o fim do mundo, mas a vida continua. Existem passeios, shows, viagens para continuarmos existindo. Novas séries, novos livros, novas horas até que outros mundo se acabem, até que nenhum mundo nunca mais sobreviva mais uma vez.
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Silêncio é luxo

Nas cidades aglomerados de pessoas, pulsando em vida, trabalho, sobrevivência. Os sons das manifestações humanas, cada vez mais alto, cada vez mais em desespero por atenção. O som é atenção e escape nos compassos unitários da música que não cessa.
O que serão dos bebês?
O que serão dos idosos?
O que serão dos cérebros divergentes que não podem escapar?
Da minha janela ouço os fogos da madrugada: mais uma remessa entorpecente pra sobreviver ao caos. Não há justiça ou leis fora ou dentro dos limites da comunidade. Tudo é sobre o que se pode ser.
Enquanto isso os dias vão passando. Os séculos se debruçam sobre a periferia, sugando tudo o que pode. Não existe paz. Não existe descanso ou consolo.
Só existe uma resposta.
Silêncio é luxo.
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Do lado errado do muro

O mundo chegou ao fim. Vieram trovões que derrubaram as casas, venenos que contaminaram a água, militares que levaram meus filhos. Depois de sair do ventre da terra vi as ruínas em que fui transformada. Do lado de cá do muro o mundo acabou.
É preciso que haja civilização. Homens com a roupa distinta, ruas limpas. É preciso levar as crianças para escolas, comprar carros, acender a luz. É preciso que haja grandes castelos e reinos cheios de ouro.
É preciso que haja mãos sem rosto que os controem. É preciso que haja órgãos sem corpo que os salve. É preciso que haja sangue sem cor que os satisfaça. Meu nome vazio passou por todos os mundos que estavam do lado errado. Preto, indígena, aborígene, sem história, sem brasão. Todos os mundos foram destruídos para alimentar o lado certo. Todos os mundos foram destruídos para que o muro permanecesse erguido.
O muro hoje está coberto de corpos em ruínas. Ninguém do lado de lá parece ter percebido. Não sei o que pensam ou o que sentem, não sei se percebem que estamos aqui. Não sei se eles limpam o tapete por cima dos mortos que os sustentam, ou se conseguem dormir noites inteiras sem ouvir as crianças sem nome chorando para a escuridão do lado errado do muro.
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Cortaram os pulsos em cortes de 15 segundos. Postaram no YouTube.

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O Ocaso planta no horizonte o Sol, colhe tempestades de Estrelas.

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As Estrelas dançam à noite para de dia sonharem com a luz.

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Águas do Fim, Capítulo 1

Quando Recife, João Pessoa e Natal precisaram ser evacuadas, eu e meu marido descemos para comprar dois botes. Sabíamos que estávamos mais ou menos seguros há mais de 500m de altura, mas o futuro era meio incerto. Também compramos 3 mochilas de sobrevivência e algumas comidas enlatadas. Minha sogra e cunhada com a família foram para Luis Gomes-RN (855m), a maior altitude do Estado. Minha mãe, irmã, tia e primos com as famílias foram para Areia-PB (618m) embora a maior parte do povo das zonas mais baixas estivessem indo para Imaculada, Água Branca, Bernardo Batista, Manaíra, Montadas, Monte Horebe, São José de Princesa, Tavares e Teixeira, todas há mais de 700m e que já faziam parte do plano de contingência do Estado há mais de um ano, desde o desastre no Rio Grande do Sul.
Só percebemos que teríamos pouco tempo de fato quando a água começou a inundar a rua, mesmo morando num dos pontos mais altos de Campina Grande. Nosso apartamento era cheio de armários fechados por conta dos gatos, guardamos todos os livros que estavam pela mesa e na única estante que era aberta neles e vedamos tudo com fita isolante, até os guarda-roupas, hack da sala e armários da cozinha. O que não conseguimos colocar nos armários, embalamos em plásticos: máquina de lavar, fogão, tv, ventiladores na altura dos motores. Fizemos tudo o mais rápido que podíamos enquanto a água não alcançava o nosso andar, o 5º. As mochilas estavam prontas desde que a chuva tinha começado.
Quando a água chegou no 4º andar, catamos nossos 5 gatos e pusemos nas caixinhas. Eles estavam estranhamente quietos e assombrados. Deixamos as janelas abertas para a pressão da água não quebrar o vidro, e já íamos cortar a tela de proteção quando, junto com um relâmpago e um trovão que chegaram juntos, uma grande onda fez com que parte da água que ainda estava lá embaixo respingasse em nós. Um ser escamoso e gigantesco surgiu depois do prédio que fica próximo ao nosso e que toma boa parte da nossa visão quando olhamos pela janela da sala. Ele elevou a cabeça da água e rugiu para o céu. Não dissemos uma palavra, apenas torcíamos para que ele não nos visse. Desistimos de sair pela janela, então resolvemos ir por dentro do prédio: sabíamos que se a água tomasse tudo ainda conseguiríamos escapar por dentro dele, por uma escada que ia até o telhado. Se o ser que estava nas redondezas não tivesse a intenção de destruir os prédios, teríamos alguma chance.
Acho que só tínhamos nós no nosso bloco. Saímos com as mochilas, os botes e os gatos, sequer trancamos a porta, não era necessário. Subimos todos os andares antes que a água nos alcançasse, ouvindo o rugido da fera algumas vezes mais. Deixamos nossa filha no corredor com os gatos e subimos o último lance de escadas, a que nos levava para o telhado e que, como era aberta, já estava nos molhando de chuva. E então vimos a fera, que olhava para o horizonte. Por estar com a cabeça fora d’água, só podia respirar ar, não devia ser uma fera marinha. De onde aquela coisa tinha surgido, porque em nenhum lugar ouvimos falar dela? Minha filha então nos avisou que a água tinha chegado, descemos rapidamente para pegar as coisas, mas não subimos até o telhado, ficamos ali encurralados entre a água e a fera, torcendo para que a água parasse de subir e para que a coisa não nos visse ou derrubasse o prédio.
[continua...]
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A UFPB Oculta

- Você sabe que nem sempre fui assim.
Olhei para Aurora, esperando que ela me respondesse alguma coisa. Seus claros olhos sonolentos fitavam o dia, com preguiça demais para fazer alguma objeção. Fomos até a mesa mais próxima, e eu apontei para o letreiro da lanchonete em que estávamos.
- Aqui era o nosso tradicional ponto de encontro, a lanchonete do Sr. Vegeta. Foi aqui onde ouvi pela primeira vez da UFPB Oculta. Lembro que naquela época o calor me incomodava, e também os barulhos irritantes das minhas companheiras de casa. Eu tinha chegado de Areia, que é uma cidade fria, e tive que me adaptar ao caos dessa capital. Aqui tem muita gente. A temperatura não me faz mais mal, mas as pessoas continuam sendo o mesmo problema.
Suspirei profundamente. Aurora aos poucos se mantinha atenta, enquanto nossos companheiros chegavam silenciosamente e nos cumprimentavam.
- Eu tinha duas amigas, Kátia e Letícia. Kátia era da Geografia, a Letícia da Química. Ambas eram aqui do litoral. - risquei uma linha imaginária na mesa para verificar se ela estava me acompanhando - Naquele semestre decidimos estudar juntas um livro maluco, O Mundo de Sofia, que era o único livro usado pelo nosso professor de Filosofia da Ciência, que era doido de pedra. - olhei para alto e para longe, tentando resgatar as lembranças antigas. - Você sabe, sou da Física, e aquele foi o semestre em que cursei Álgebra Linear e Geometria Analítica. Foi o semestre em que consagrei meu amor pela matemática.
Serviram nossa comida e comemos em silêncio. Depois saímos para que eu pudesse mostrar as entranhas do campus.
- Quando reparei a quantidade de animais que tinha por aqui, Caio, o irmão mais velho de Kátia, disse que os alunos jubilados se transformavam nos cães e gatos da UFPB - interrompi meu discurso por conta da gargalhada súbita da Aurora. - Eu sei, as pessoas falam todo tipo de coisas bizarras, não devemos implicar com isso. Esse povo não sabe de nada mesmo.
Paramos no corredor da Física e Sr. Flores nos cumprimentou.
- Mas ainda assim, foi o Caio quem primeiro me deu pistas da verdade. Ele filmava Sr. Flores alimentando os animais - eu e ela olhamos ele ao longe ir para o carro e pegar algo no porta-malas. Com certeza ele ia começar a alimentar os animais novamente. - Os vídeos eram bem claros, os animais pareciam sair do nada, só para se alimentarem. A gente não vê normalmente tantos assim por aqui, só quando ele "desperta os mundos" - Fiz um gesto no ar para que ela compreendesse as muitas aspas que colocava no termo.
Subimos o Bolo de Noiva, na hora em que uma frajola branca e cinza descia pelo corrimão em espiral. "Exibida" disse Aurora quando passamos, rindo baixinho para não chamar atenção dos transeuntes. Nos acomodamos numa das grandes mesas redondas e me pus a corrigir mentalmente as equações erradas que os estudantes esqueciam nos quadros.
- Eu me lembro que foi num dia de calor intenso que tive minha primeira epifania. Eu tinha lido o trecho em que o mundo desaba no Mundo de Sofia. Eu pouco me lembro das coisas desse livro, mas esse trecho me lembro bem. E também estava aflita tentando imaginar a quarta dimensão. A Letícia disse logo "você é maluca, mal sabemos expressar a terceira". E a Kátia: "é mesmo, você nunca ouviu falar de cartografia? Existem diversos tipos de mapa justamente porque toda representação 2d do 3d tem erros". Mas a Álgebra me fez me sentir frustrada por só compreender as n dimensões analiticamente. Eu tinha ido mais cedo pra casa porque estava com cólica menstrual e briguei em casa por causa do som da menina que alugava um dos quartos, a Michelle. Cheguei a chamar a polícia. A garota enlouqueceu, disse que se eu chamasse a polícia de novo iria invadir meu quarto e quebrar tudo. Vim para universidade e, ao invés de estudar, deitei numa das cadeiras da Praça da Alegria para dormir depois que tomei o buscofem. Ainda me lembro como se fosse ontem. Perséfone, uma gata toda preta, deitou na minha barriga, bem onde estava doendo, e dormi quase instantaneamente. - Os olhos da Aurora abriram-se subitamente de assombro - Sonhei com minha casa, em Areia, e a gata me levava até o teatro, onde muitos outros gatos estavam.
- Eu conheço alguns deles, mamãe?
- Não sei, minha filha, é provável que sim. - fiz um gesto rápido, avisando que ia prosseguir - E quando acordei não tinha mais dor, não tinha mais nada. Fui pra casa e encontrei dois gatinhos-bebês abandonados no portão. Entrei com eles e coloquei um pouco de água num pote para eles beberem no meu quarto, enquanto ia no Pet Shop mais perto comprar as coisas para eles. Quando voltei, a Michelle deu um outro escândalo, dizendo que não podia gatos ali, que o barulho ia ser infernal e tal.
- Que babaca - resmungou Aurora, os olhos muito concentrados no que eu falava.
- Ah, você nem imagina. D. Esther não objetou que os gatinhos ficassem ali. Mas no dia seguinte acordei com a tal da Michelle fechando a porta do meu quarto. Ainda sonolenta fui ver o que ela tinha aprontado, segui ela o mais rápido que pude, mesmo de pijama e descalça. A vi colocando uma sacola fechada no meio da pista. Eu vi rapidamente a sacola se mexendo, e sem pensar muito, corri para pegar a sacola. Por sorte não estava passando carros. Quando cheguei em casa e falei o que aconteceu, D. Esther brigou com ela, e pediu para que arrumasse outro lugar pra ficar.
Aurora deu um soquinho no ar de contentamento, entusiasmada com o desfecho benéfico para os gatinhos.
- Mas acho que isso foi uma espécie de teste, acho que aquela garota era doida mas não tanto assim. Acho que eles precisavam de um teste para saber se eu seria atenta e corajosa o suficiente.
- Eles quem, mamãe?
- A Sociedade Oculta, é claro. - dessa vez o assombro foi tanto que as pupilas claramente se dilataram - Naquela mesma noite sonhei novamente com Perséfone na minha casa em Areia. Ela mostrava uma porta embaixo da escada, uma porta que eu nunca tinha visto antes. Ela dava para uma biblioteca enorme, com escadas e estantes de livros para tudo quanto é lado. - fiz um gesto largo que a animou.
- As n dimensões, mamãe!
- Isso mesmo, meu amor. Lá, um gato velho e banco chamado Gandalf me mostrou Os olhos do Mau, que são os olhos do nosso ancestral egípcio, como as duas fendas da Mecânica Quântica. Então descobri como os animais da Sociedade Oculta passeiam bem por todas as dimensões do espaço-tempo.
- A Mecânica Quântica dos homens é aquela daquele homem ruim, mamãe?
- Sim, o Schrödinger. Mas nós demos uma lição nele para nunca mais ele brincar conosco. Uma pena que o experimento dele ainda é a base para o exemplo das pessoas. Eu até entendo. Ser humano é ser muito limitado. Imagina, filha, não ter noção das dimensões, do comportamento ondulatório, da topografia do espaço.
- Deve ser muito triste, mamãe.
- Nós somos os guardiões do conhecimentos desse mundo, por isso somos tantos. Temos que estar atentos para que o conhecimento não seja mal utilizado, e temos que dar a centelha de inspiração para quem busca o conhecimento com afinco e dedicação.
A gente tem que ser paciente.
Disse isso mostrando a barriguinha para eu dar o mais um banho de língua. Alguns estudantes passaram por nós, fazendo carinho em nossos pêlos.
- Aproveitem, jovens, enquanto disponibilizamos nosso conhecimento para vocês. - pensei com meus botões, enquanto os grupos de humanos se reuniam em volta das lousas - Vamos ver se vocês são dignos.
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Meio Humano
Errando caminhos entre ninhos de anjos.
Ele parou diante de mim indicando o local. Nem olhei se os braços do prédio se erguiam para algum deus alto e longínquo, ou se a ponta dos seus dedos de concreto serviam para seres celestes rezar suas vigílias com canto de sinos. Segui-o, obediente, observando seus cachos barrocos. Preto e branco. Sim e não. Desejo e espera. Prazer e silêncio. O farfalhar de suas asas me seduziam como um canto gregoriano secreto, cantochão de mistério e renúncia. Subi as escadas de solenes catedrais.
Ele abriu a porta de douradas letras em número cabalístico. Dia vítreo por trás da janela translúcida. Amarelo marrom. Perfume madeira. Livros, livros, livros. Saudade exposta em cima da mesa. O que eu esperava encontrar?
Ninho de anjo. Sua cama estava coberta de azul. Ele me beijou num toque molhado e evanescente de nuvem. Seu indicador entre meus seios e eu dispo meus botões, um a um. Pelo chão a blusa, a calça jeans, meus sapatos de caminhos errados, minhas asas transparentes e quebradiças.
Seus olhos me percorrem com o brilho de lugares distantes. Minha lingerie é branca ou vinho. Eu poderia ser do meu próprio tamanho ou alguns centímetros menor. Deito-me sobre a superfície vespertina. Ele se liberta de seus trajes revelando sua cor, sua pele, seus pêlos, sua parte humana, ereta.
Meu corpo desliza sob seu corpo sólido sem oferecer resistência. Suor, sonhos. Sons escoando tempos antigos. Suas mãos em meus seios, barriga, forçando meu quadril contra si. Enlaço meus dedos nos seus: onde ele está?
Ele diz que é quente e pulsa. Cavalgo na imensidão do seu corpo em repouso. Ele aperta seus olhos intangíveis. Seu peito suspira e leva a minha alma.
Sua humanidade jorra. Língua, lábios, queixo, mãos, lençóis. Sua humanidade por todos os lados, a humanidade inteira perdida.
A tarde agoniza crepuscular. O sol amarelo se foi. Há uma pena manchada de sangue sobre a cama. Essa história nunca existiu.
A tarde agoniza ensanguentada. O céu azul se põe. Há uma pena manchada de crepúsculo sobre a cama. Quem não existe sou eu.
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Limiar
Amores desertos.
O portal do poente se abre em busca do céu da noite deserta. As luzes agonizam seu brilho, avermelham-se e douram, aguardando sua hora final. O Ocaso é essa fresta entre os mundos, em que o dia se entrega aos mistérios do anoitecer.
Tudo escorre pelo halo efêmero das horas: seu corpo tangível encapsulando os sonhos que me fogem. Lá fora um vento tardio canta. Vozes ocultas dizem adeus. Despedem sua fugacidade através de danças e músicas de brisas.
Descubro seu corpo em pleno descanso. O calor transpira em sua pele e a umedece. Deslizo minhas mãos em suas pernas e trago ao meu tato a lembrança delas ainda em cor.
Seus olhos me encontram por trás da penumbra crescente, teus lábios denunciam teu desejo, me tocam com a sede de todos os desertos. Sua boca, portal molhado do seu corpo, no toque em que meu corpo entorpece e cede. Cedem meus braços e costas, cede o tecido das roupas que se vão, libertas por um único gesto seu.
Mais que a luz que se vai e a música agonizante de adeus lá fora, teu corpo desliza sobre o meu, minha boca persegue a esperança da tua água, sua boca descobre pontos de desejo com dentes e línguas, aquece minha pele que já ansiosa estremece pelo próximo toque.
Mamilos e seios são espera. Os pássaros lá fora trazem em sua última canção o abismo inelutável do tempo. Sua boca encontra meus seios como se meu desejo o alimentasse. Sua rota persiste crescente até seu destino, enquanto água e vida escorrem do meu corpo aquecido pela sua proximidade. O portal do teu corpo e o beijo em meu sexo, canções de prelúdio e entardecer. Toque sagrado, molhado entre minhas pernas abertas, e já estamos no limiar de nossos abismos, prontos para saltar.
Minhas mãos buscam mais uma vez seu rosto, seus olhos. A luz escura já nos entardece para despedida. Tua boca agridoce. Que mistérios habitam o silêncio e a espera no instante anterior a todo adeus?
No precipício das horas sugo teu falo ereto. O pré-gozo preenche meu paladar e olfato. Tuas veias pulsam por baixo da pele, preparando o momento de jorrar.
Minha língua, obediente, desliza provando a textura, fragrância, testando a sensibilidade. Confundo seus sabores. Sua textura é cor na excitação dos teus gemidos. Abro mais meu paladar para abranger todo teu volume. Teu rígido desejo em meu prazer, degusto em mótuo perpétuo até o limite entre teus sons, até tuas mãos afastarem minha fronte, até tua força revirar meu corpo entorpecido, até meus quadris obedecerem ao controle de tua vontade. As cores descoloridas já desabam por todo lugar, eu fecho meus olhos antes do ocaso para ser só a sensação do teu desejo pulsante, a sensação do teu falo penetrando na fresta do meu corpo, as costas que cedem ao teu toque, os joelhos que se encaixam na maciez da cama enquanto tua força encaixa teu corpo, para estar na sua solitária dança dentro de mim. Morde minhas costas nuas, beija-me mais uma vez antes que teu falo se encha e derrame o derradeiro prazer.
As cores e o dia já morreram. Tudo já se foi, mais uma vez, como se nunca tivessem sido. Em meu corpo só teu cheiro pungente ainda sobrevive. O céu lá fora é o silêncio esperado, desde o princípio. A cama e meus braços são o mesmo vazio escuro da noite, ressuscitando um único instante, eternizado até o próximo amanhecer.
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Insopitável
Atrás do véu há coisas que não dormem.
A mulher está sentada, com pensamentos sem sentido, sentindo a frieza das horas que se derramam entre suas lágrimas.
Guardou seu derradeiro sorriso na lembrança da última despedida.
A mulher está sentada, esquecendo aos poucos a dor de uma grande ausência. Ninguém por perto é capaz de percebê-la, vê-la ou sequer compreendê-la. Desprendeu de si a sua aparência habitual.
No entanto ela ainda está ali, desperta, deserta, imperecível, com seus grandes olhos vazios refletidos num mundo da mesma cor.
Pode agora ver através das coisas invisíveis, insensíveis aos olhos descrentes. Pode agora ver, através da luz que se desfaz, a sombra das metamorfoses inerentes à vida. Pode agora repousar, tendo transcendido o humano desígnio, e contemplar sobre seu caixão o falecimento de uma das faces da sua existência.
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Solilóquio de uma Alma Errante
Sobre desejos.

Seria melhor ter partido, como todas as flores que murcham após o perfume do adeus. Seria melhor ter esquecido o sentimento insano e obsessivo, como as lembranças que desbotam frente ao mar inexaurível do tempo.
Seria melhor ter rompido os laços que me abraçavam tão gentilmente…
Mas, quando se colhe o fruto das emoções, esquece-se o sofrimento de uma eternidade em detrimento de um único segundo de amor.
E ele sempre surgia diante de mim da mesma forma, embelezado pelo silêncio utópico da paz, emoldurado pelo caminho único do cotidiano. Tinha a atmosfera suave e tranquila, gerada pela alegria constante que brotava dos seus lábios.
Podia tê-lo por perto o tempo que fosse necessário. Podia ser seus passos. Contudo, a minha condição de alma errante restringia da sua pele o meu toque.
A fatalidade da espera traria em si a formalidade do destino.
Aquela noite trouxe-lhe um brilho diferente, uma intensa felicidade. Recolhi-me em contemplação a admirar seus gestos. Exibia ainda a escuridão as suas asas recentes quando a campainha tocou, agora com o som mais gritante e profundo que outrora. A ansiedade condenava o seu movimento, e eu pude sentir sua aflição.
Ele abriu a porta.
Diante da porta aberta surgiu uma face para mim desconhecida. Suas vestes e seu jeito revelavam que era uma figura feminina (e eu, que nem forma definida possuía!). Ela se aproximou dele e o beijou.
Eles podiam sentir o calor que transcendia dos seus corpos e do momento. E a mim só fora dado o direito de observar.
Se eu tivesse um corpo, as lágrimas acordariam no instante em que a minha dor implorava atenção. Se eu tivesse um coração, o faria parar, pois não haveria mais sentido o seu contínuo trabalho.
E foi durante esse desespero que, de repente, vi-me mais próxima do casal, tanto que passei a sentir a suavidade do toque dele a deslizar pela pele que agora pertencia a mim. Pude sentir sua respiração se propagar pelo meu corpo e o sabor da sua saliva a embriagar os meus sentidos.
Livres das roupas, nossos suores se confundiram, no emaranhar dos toques, dos beijos, dos suspiros. Senti a intensidade do seu amor invadir tudo que era meu, num misto de dor e prazer.
Só então percebi que estava completa. Independente de tudo o que poderia acontecer, independente das minhas forças e das circunstâncias, eu era ele, e ele era eu.
Cansados, adormecemos juntos, entrelaçados.
Pude, pela primeira vez, penetrar em seus sonhos. Agora ele saberia quem eu era, saberia que podia ser quem ele quisesse, saberia que só pertenceria a ele.
Chamei-o, e ele veio até mim. Olhou-me e reconheceu a minha emoção. Mais uma vez ele me tomou para si, agora sabendo quem eu era. Novamente nos amamos, mas não só com a unção dos corpos, e sim com a união das almas.
Desconhecemos o passar do tempo mensurável e o infinito inspirou-se daquele instante.
Terminada a união, uma luz inebriante inundou o ambiente, e quando se apagou, levou-o de mim.
Despertei ainda em seus braços, que agora estavam frios. Distanciei-me da morbidez do leito e encontrei as lágrimas da jovem banhando a face inerme do seu amante.
Ele havia partido, com a alma aprisionada em algum mundo onírico.
Eu permaneci, tendo apenas um instante dos seus momentos, e toda a imortalidade para jamais esquecê-lo.
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