Verdade, Necessidade e Paraconsistência
Neste texto, exploraremos a relação entre a Necessidade, a Verdade e a Paraconsistência.
Verdade, denominamos como o que é.
Necessidade, denominamos como o que é em todos os mundos possíveis.
Mundos possíveis, denominamos o conjunto de todos os conjuntos de proposições que definem, apresentam, uma dada situação, estado, realidade, ou o que seja, sendo cada conjunto, portanto, um mundo possível.
Quantos e quais são os mundos possíveis, deixamos à vontade do freguês, afinal, como dizia o velho (correntino ou uruguaio, depende de ‘pr’a’ que lado se escreve): ‘Yo no creio em las brujas, pero, que las hay, las hay.’ (em portunhol, é claro).
Uma primeira solução, advinda diretamente da leitura das estipulações com as quais começamos, é dizer que ‘Verdade é subconjunto da Necessidade’. O problema com esta solução é que ela não deixa espaço para a Contingência (o que é, mas, poderia não ser, ou, em outras palavras, o Verdadeiro e não Necessário).
A Contingência é o que lá quando Aristóteles lançou os fundamentos da Lógica Modal (em particular, a Alética, que aborda os modos de dizer a verdade) contrapôs-se à Necessidade. Alerto aqui que se alguém mais versado em História da Filosofia apontar o fundamento da Lógica Modal em algum pré-Aristotélico não polemizarei e digo que a Contingência tem sido substituída mais modernamente, e em particular nos textos de Lógica Formal, pela Possibilidade (o que é em pelo menos um Mundo Possível), dado a maior facilidade de manejo simultâneo desta com a Necessidade.
Ocorre que é a Contingência que caracteriza o mundo (é por conta dela que não sabemos, no instante t, qual será, dentre os Mundos Possíveis, o mundo atual no instante t+1).
Fica abandonada, portanto, a solução de ‘Verdade como subconjunto da Necessidade’ e, por extensão, a de ‘Verdade e Necessidade como equivalentes’.
Uma outra solução é a de ‘Necessidade como subconjunto da Verdade’. Ela deixa espaço para a Contingência, posto que esta é Verdade mas não Necessidade, mas não deixa para a ‘Necessidade que não é Verdade’.
Continuemos por aí. Existe a Necessidade que não é Verdade? Lembremos, “Necessidade, denominamos como o que é em todos os mundos possíveis.” e “Verdade, denominamos como o que é.”, ou seja, existe algo que é em todos os mundos possíveis e não é? Pela Lógica Clássica, não. ‘Ser e não ser’ é o exemplo mais didático de contradição e, assim, é falso.
Será, contudo, o nosso mundo (aquele específico mundo que cada um de nós tem por seu (atual) mundo) isento de contradições? Não me animo a dizer Sim e deixo claro que não estou falando de contradições aparentes, não, estou mesmo falando do que, simultaneamente, é e não é.
Exploremos, então, esta hipótese, a que chamaremos de ‘Paraconsistência do Mundo’, ou seja, um mundo que aceita certas contradições (não toda e qualquer contradição, pois isto trivializaria o mundo). Doravante, e bem de acordo com o espírito do já apresentado neste texto, toma-se mundo por ‘conjunto de proposições que define, apresenta, uma dada situação, estado, realidade, ou o que seja.’ Neste nosso mundo, o qual rege-se por uma Lógica dita Paraconsistente, aceita-se uma Não Verdade que não é Falsidade. É esta Não Verdade que não é Falsidade que pode apresentar-se como Necessidade.
De modo a elucidar melhor o assunto, apresentamos a ‘Não Verdade que não é Falsidade’ por meio da negação que a caracteriza e o fazemos valendo-nos de duas proposições hipotéticas quaisquer, aqui chamadas de Gama e de Upsilon, e com o auxílio dos seguintes símbolos lógicos: ~ negação paraconsistente; ¬ negação clássica (aquela a qual estamos acostumados); □ necessidade (já apresentada); ◊ possibilidade (também já apresentada); e, ainda, lembrando que ‘a necessidade de algo é a não possibilidade da negação deste algo’, ou, com os símbolos já apresentados, □ = ¬◊¬. Então: ~Gama = ¬□Gama = ◊¬Gama.(*) Ou seja, a negação paraconsistente de algo é simplesmente a negação da necessidade deste algo (aqui proposições).
Denominamos, portanto, negação paraconsistente de algo como a não necessidade deste algo.
Portanto, o Necessário não Verdadeiro é a negação clássica (daí não verdadeiro) da negação paraconsistente, ou, valendo-nos da notação já apresentada: sendo Gama uma proposição qualquer, Gama será Necessária e não Verdadeira quando for equivalente a negação clássica da negação paraconsistente de uma outra proposição Upsilon e, desta forma, equivalente à necessidade desta outra proposição. Assim:
Gama == ¬~Upsilon == ¬¬□Upsilon == □Upsilon
Sumarizemos, então, como ficou nosso mundo. Ele tem:
- o apenas Verdadeiro;
- o apenas Necessário;
- o Verdadeiro e Necessário (Verdade Necessária/Necessidade Verdadeira);
- o Verdadeiro Não Necessário (a Contingência);
- o Necessário possivelmente não Verdadeiro (a Paraconsistência);
- o Falso (não Verdadeiro, não Necessário, não Contingente e não Paraconsistente).
Assim, o apenas Verdadeiro (ou simplesmente Verdade, dito de outra maneira) apresenta-se aqui como o Contingente e o apenas Necessário (ou simplesmente Necessidade, em outras palavras) comparece aqui como Paraconsistência, algo que não é Falso (a não Verdade) mas também não é Verdade per se.
Talvez pudéssemos equiparar o Falso ao Não Possível (impossível, em português) mas aqui nos falta conhecimento e talvez já comece a faltar paciência ao leitor. Agora, dois exemplos didáticos, para facilitar:
Ex1- só para exemplificar o que significa trivializar um mundo (lembremos, conjunto de proposições) conduzirei um exercício bem simples, evidenciando que, quando, sem aceitar a paraconsistência, aceitamos contradições, na seqüência, temos que aceitar qualquer coisa.
Assim, meu Mundo aceita a proposição alfa e sua negação (claro, não alfa). Para evidenciar que isto não tem a ver com valor de verdade, farei dois casos, no primeiro trabalhando com uma proposição verdadeira e no segundo com uma falsa.
Primeiro caso:
- alfa é ‘Brasília é a capital do Brasil’ e, assim, não alfa é ‘Brasília não é a capital do Brasil”. Meu mundo aceita alfa e não alfa. Meu mundo:
- ‘Brasília é a capital do Brasil’ (1)
- ‘Brasília não é a capital do Brasil’ (2)
- ‘‘Brasília é a capital do Brasil’ ou ‘a Argentina fica na América do Sul’’ (a partir de (1), proposição que compõe meu mundo e fazendo uma disjunção arbitrária com uma proposição verdadeira (que chamarei de beta)). (3)
Observação-‘alfa ou beta’ é equivalente a ‘se não alfa então beta’, logo
- ‘se ‘Brasília não é a capital do Brasil’ então ‘a Argentina fica na América do Sul’’
Conclusão (lembrando que meu mundo aceita também não alfa, ou seja, aceita ‘Brasília não é a capital do Brasil’):
‘a Argentina fica na América do Sul’.
Agora o mesmo exemplo usando como proposição beta (a proposição arbitrária com a qual farei a disjunção) a proposição falsa ‘a França fica na África’.
- ‘Brasília é a capital do Brasil’ (1’)
- ‘Brasília não é a capital do Brasil’ (2’)
- ‘‘Brasília é a capital do Brasil’ ou ‘a França fica na África’’ (no caso, uma disjunção arbitrária com uma proposição falsa) (3’)
- ‘se ‘Brasília não é a capital do Brasil’ então ‘a França fica na África’’
Conclusão (lembrando que meu mundo aceita também não alfa, ou seja, aceita ‘Brasília não é a capital do Brasil’):
‘a França fica na África’.
Detalhe, se o exercício acima for conduzido simplesmente com alfa, não alfa e beta ele fica muito mais didático, bastando ao final substituir-se alfa e beta pelo que bem se entenda e não alfa pela negação de alfa. Quanto à equivalência entre ‘alfa ou beta’ e ‘se não alfa então beta’ basta montar uma tabela-verdade.
Ex2- agora o mesmo exercício, aceitando a paraconsistência.
Meu Mundo aceita a proposição alfa e sua negação paraconsistente (ou seja a não necessidade de alfa).
Primeiro caso:
- alfa é ‘Brasília é a capital do Brasil’ e, assim, a não necessidade de alfa é ‘Brasília talvez não seja a capital do Brasil”. Meu mundo aceita alfa e não alfa. Meu mundo:
- ‘Brasília é a capital do Brasil’ (1)
- ‘Brasília talvez não seja a capital do Brasil’ (2)
- ‘‘Brasília é a capital do Brasil’ ou ‘a Argentina fica na América do Sul’’ (a partir de (1), proposição que compõe meu mundo e fazendo uma disjunção arbitrária com uma proposição verdadeira (que chamarei de beta)). (3)
Ocorre que meu mundo aceita ‘Brasília talvez não seja a capital do Brasil’ e daí nada se tira acerca do valor de verdade de ‘Brasília não é a capital do Brasil’ e, portanto não posso fazer a substituição da disjunção pela implicação que fiz no Ex1 e, assim, nada posso concluir. Da mesma forma, não o poderia se a disjunção tivesse sido feita com a proposição arbitrária (no caso, falsa) ‘a França fica na África’.
Concluindo, digo que a Paraconsistência consiste na distinção entre as contradições que originam trivialização e as que não o fazem. Distingui-las é um trabalho cuja explicitação formal é bem menos simples do que fez parecer os exemplos apresentados, mas no dia-a-dia do raciocínio natural é feito por todos nós, sem que sequer o percebamos, desde tenra idade.
(*) a definição da negação paraconsistente como negação (clássica) da necessidade [(~) = (¬□) = (◊¬)] segue Béziau, tal como citado por Costa Leite em “Interactions of metaphysical and epistemic concepts’, página 65/117.
Porto Alegre, abril de 2024
Marcos José Paz do Nascimento
0 notes