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textoearte · 5 years ago
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vamos para onde?
Conheci Foz do Iguaçu quando tinha doze anos, em uma viagem com o tio Waldemar, a tia Cida. Foi a primeira viagem de férias que fiz sem meus pais. As Cataratas do Niágara, só fui em 1997. Foz do Iguaçu não fica nada a dever à cidade canadense. Não voltei mais para lá. Havia tantos lugares para conhecer, e a curiosidade sempre me moveu. Viajei pelo Brasil a passeio e a trabalho. Há alguns lugares que gostaria muito de conhecer. Alguns não vou porque tenho medo da violência, alguns pela dificuldade de se chegar lá, alguns por falta de estrutura do lugar.  Como se vê, todos relacionados à governança do município, do estado, do país. No passado, tivemos um contratempo com o vestido de festa de aniversário de minha sobrinha. Faltavam apenas cinco dias para a festa e precisávamos encontrar outro vestido da Frozen para a comemoração dos 6 anos. A internet foi a salvação. Foz do Iguaçu, com uma butique maravilhosa, atendimento impecável, fez o vestido e o mandou por despacho aéreo em quatro dias. A festinha foi salva por profissionais competentes, gentis, que não se aproveitaram do desastre ocorrido para cobrar mais do que o vestido valia. Não sei por que o ministro mandou as domésticas irem para Foz do Iguaçu, em vez de ir à Disney, como se fosse um castigo ir para tal cidade. Foz do Iguaçu, a cidade, não pode votar. As domésticas podem. As pessoas que ganham até dois salários mínimos, também. Então, vamos votar em quem gosta de pobre? Porque, pelo visto, nosso ministro quer transformar o país em sistema de casta. Vamos para a Disney, sim. Somos livres para ir onde quisermos. Até para a Disney!
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textoearte · 5 years ago
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Cadê o respeito?
Já fui bem mais bonitinha. Sim, no diminutivo. Sou pequena, mais de sessenta anos. O colágeno já foi embora quase todo, as rugas apareceram, a pele ressecou, apesar de todos os cuidados, as marcas do tempo estão para quem quiser ver. Já fui mais bonitinha. Não tinha olheiras nem flacidez. Bigode chinês? Nem sabia o que era isso aos quinze anos. Unhas fracas? Imagina! Podia usar qualquer brinco, que não pesava na orelha. O tempo muda tudo. Mas a vida continua linda, mesmo com umas dobrinhas a mais na barriga, apesar da magreza, os braços que já viram dias melhores, o colo e o pescoço sendo um inclemente cartão de visitas. Já fui mais bonitinha… Mas continuo tão – ou mais – feliz e aproveitando a vida como se tivesse vinte anos. A autoestima continua elevada. Na idade em que estou, o colágeno não faz muita diferença. Não, para mim. Já fui mais bonitinha… E o Brasil já teve presidentes melhores. Se o presidente eleito – ele ainda não está em exercício – olhasse para as mulheres como iguais, seria muito bom para a própria evolução pessoal. Em um momento em que brigamos por igualdade na política, no trabalho, na sociedade, o presidente coloca a mulher dele em uma vitrine e se jacta de ser afortunado por mostrar ao mundo o que ele considera ser belo e de sua propriedade. Sinceramente, prefiro falar oui. Faltou respeito não à mulher do presidente francês. Faltou respeito à própria mulher, exibida feito um cavalo de dentes bons. Faltou respeito às mulheres brasileiras, que, se prestarem bem atenção no que vem acontecendo, escolherão outro pangaré na próxima eleição.
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textoearte · 5 years ago
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IPTU
Chegou o IPTU da minha casa. Eu diria que é uma pequena fortuna, se levarmos em consideração o tamanho dela. Ah, é a localização!, exclamam. Como assim? Não moro em áreas nobres como Jardim Europa, Cidade Jardim e Jardim Paulista. É um bairro bom, tranquilo, mas não é nenhum Soho, nenhum Chiado, nenhum Innenstadt. Não fica na 5ª. Avenida. Esta noite perdi o sono. Pensei: “Se o IPTU continuar subindo assim, vou ter de arrumar um emprego de guarda noturno.”  Depois de me virar para cá e para lá, tive uma ideia melhor: como conseguir isenção de IPTU, afinal, sou uma senhora da terceira idade. Me levantei e fui pesquisar quem são os isentos de IPTU na cidade de São Paulo. Descobri que o termo “isento” é uma bobagem. Porque o isento precisa provar que é miserável. O bom mesmo é ser “imune” ao IPTU. Mais uma pesquisa. Da lista dos prédios imunes, que atendem os requisitos constitucionais, constam:
“Os imóveis integrantes do patrimônio da União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público (CF, artigo 150, VI, a e §2º)”
Esse tópico está fora de questão. O apartamento é meu, comprado com o trabalho meu e do meu marido. Nós dois o mantemos. E, convenhamos, União, Estados, Municípios não pagam IPTU porque o contribuinte paga por eles.
“Os templos de qualquer culto (CF, artigo 150, VI, b)” Bhakti
Comecei a ver uma luz no fim do túnel. Posso transformar minha casa em um templo. Igreja evangélica está na moda; tenho um amigo que é babalorixá, outro que é do movimento Hare Krishna. O melhor mesmo seria criar a minha própria religião, porque depois, nos requisitos da lei, há muitos detalhes que inviabilizariam meu projeto de não pagar IPTU. Vou criar a “Ordem dos Idosos Revoltados com o Rumo que Vai este País”. Tenho certeza de que engajarei idosos de mamando a caducando. É pra se pensar seriamente!
“Os imóveis integrantes do patrimônio dos partidos políticos, inclusive suas fundações; do patrimônio das entidades sindicais dos trabalhadores; das instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos e atendidos os requisitos da lei (CF, artigo 150, VI, c)”
Outra boa ideia: fundar um partido político. Partido dos Idosos, PI, no. 3,1416 (π – pra lembrar a todos que a matemática ainda existe, mas anda bem esquecida). Será que consigo as assinaturas? Ou uma fundação do partido político. Fundação Organizacional dos Idosos e Obsoletos em Saúde – Fodidos (a sigla não pegou bem...) – E um sindicato? Sim, pode ser uma boa ideia. Sindicato dos Idosos Carentes – SIC. É, a sigla também não foi muito feliz.
Pensando bem, acho melhor me candidatar a um cargo público na próxima eleição municipal. Com sorte, e com os votos dos meus amigos que estão preocupados com a alta dos impostos, estarei perto daqueles que moram no Jardim Europa. Aí ficarei sabendo como eles fazem para pagar o IPTU...
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textoearte · 5 years ago
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O significado das palavras
Minha mãe de vez em quando vinha com umas palavras que a gente nunca tinha ouvido, mas na hora já sabíamos o que significavam. Não sei bem de onde ela tirava, mas bastava ouvir o tom de voz, tínhamos certeza de coisa boa não era. Quando dizia “O que vocês estão fazendo aí com essa cara de sinapismo?”, era bronca na certa.
O que minha mãe dizia era lei. E se ela falava que a gente estava com cara de sinapismo, a gente estava. E na nossa cabeça a definição de que sinapismo era quando fazíamos alguma coisa considerada errada...
Quando estávamos quietos, meio desanimados, mamãe logo chegava, toda barulhenta, dizendo: “Vamos fazer alguma coisa para desasnar?” Nós, claro, sabíamos que para desasnar ela nos levaria ao cinema, ou iríamos jogar baralho, ou mesmo tomaríamos banho de mangueira, se fosse verão.
Assim, fomos colecionando algumas palavras que ganharam significados diante das situações em que eram empregadas. A verdadeira acepção só fui saber depois de muito tempo e alguma curiosidade, porque não eram palavras usuais.
Sinapismo? Cataplasma de mostarda, farinha e vinagre, diz o dicionário. Bom, mas então o que ela queria dizer quando falava que estávamos com cara de sinapismo? Fui ver se havia variantes ou algo que me levasse a uma conclusão. Pesquisa daqui, pesquisa dali, parti para os sinônimos de sinapismo. Malagma, cataplasma. “Malagma: cataplasma com propriedades emolientes.” Voltei ao dicionário e, bingo, na segunda acepção, “débil”, que por analogia significa “que há pouco empenho”.
E desasnar? “Tirar da ignorância”. Bem pode ser que minha mãe considerasse perda de tempo ficar ali parado, sem fazer nada, sem aprender nada, sem viver a vida.
Nunca perguntei a ela por que usava essas e outras tantas palavras com significado tão diferente da sua primeira acepção. Até hoje uso sinapismo do jeito que me interessa. Canso de dizer para minha cachorra, que vive atrás de mim: “Parece um sinapismo”. Certamente, para ela deve haver outro significado. Porque ela abana o rabo e corre para o armário onde guardo os biscoitos.
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textoearte · 8 years ago
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Verbo temer, substantivo Temer
Estou na contramão dos fatos. Diferentemente da maioria dos políticos que diz não  ter nada a temer, preciso confessar: eu tenho. Imaginem se forem pesquisar minha vida e descobrirem que já menti pra polícia alemã, na companhia da diretora de arte, Ana Dobón, quando paramos no acostamento de uma autoban? Pior ainda, que fumei maconha pela primeira vez aos 50 anos, em Amsterdã, vomitei até a alma e dei o maior trabalho para a editora Carla Fortino? E se descobrirem que eu, nos idos de 2000, fui politicamente incorreta com um funcionário da extinta Varig, que insistia em não deixar que eu usasse minhas milhas para fazer upgrade da passagem da gerente de produto, Daniella Tucci, simplesmente porque ela era bem mais jovem do que eu? Também, diferentemente de outros políticos, sei que na minha casa de praia não tem retrato nem meu nem do meu marido pintado por Romero Brito. Olha, pra falar a verdade, eu nem iria querer. Tenho duas caricaturas daquelas que a gente senta no Central Park, paga o mico de turista e sai com um rabisco que lembra você: sempre exagerando no que temos de pior. No meu caso, os dentes de coelho. Tampouco tem pedalinho, até porque só tem uma piscina bem meia boca. Não tem lago nem cascata. O dúplex em que eu morava já não me pertence há 4 anos. Vendido por força da idade e por temer que a Eliana Pelizzuda me abandonasse em meio às pitangueiras, jabuticabeiras e outras árvores que transformavam o último andar em um esconderijo perfeito para políticos corruptos. Nao posso dizer que não tenho nada a declarar. Tenho, sim. Tenho de declarar que esta semana fiquei dois dias em casa porque estava doente. Estava gay. Dois dias inteiros! E olha que o Eduardo Morales bem que tentou fazer companhia pra mim! Tenho de declarar que, mesmo não podendo comer bolo, devorei quatro pedaços que o Walter Guerrero Sagardoy trouxe para mim. Mas a declaração que posso fazer, diferentemente de muitos políticos, é que odeio aquele dedo pequeno do Temer, fino, malformado, parecendo dedinho de ditador, em riste e dizendo que a verdade falará mais alto. Eu não quero que a verdade fale mais alto na minha vida. Porque tenho muito a esconder: sou corintiana, embora negue, adoro música brega, danço sozinha em casa, dirijo feito louca, não pinto as unhas por pura preguiça e tenho verdadeira paixão por talco. Pronto! Podem preparar a cela em Curitiba ou na Papuda. Minha sacola da Renner está feita. Tomara que me deixem levar o iPod com as músicas da Anita! E quem sabe a Cristina Fernandes se lembre dos nossos longos papos em alemão e leve um tapeten para eu dormir. Não precisa ser persa, como o do Cunha.
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textoearte · 8 years ago
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Um sofá vazio
O sofá sempre foi da Pretinha. Escolhido a dedo para compor o ambiente da casa de praia, nunca teve sua cor revelada aos visitantes. Porque estava sempre com uma capa sobre ele. E ai se alguém se sentasse ali. A Pretinha chorava, uivava, e a incomodada visita ia sentar-se em outro lugar. Ali tinha dono! Ou melhor, dona. Durante quase dez anos o lugar foi dela. Já velhinha, precisava de ajuda para subir. E lá estava meu marido, socorrendo as patas traseiras da Pretinha, que já não conseguia mais suportar um pequeno impulso. A Pretinha partir. E deixou nosso coração partido. Mas o lugar no sofá logo foi ocupado pelo Romário, um bassê misturado com pinscher, manco, velho, com um dente só, mas cheio de amor, de alegria, de vitalidade. Também não conseguia subir. Mas lá estava meu marido novamente, para pegá-lo nos braços e colocá-lo no sofá. Agora o Romário nos faz esta desfeita! Cair na piscina? Ele, tão esperto, tão caçador, e tão acostumado com a piscina… O Romário não poderia amargar uma velhice calma, não poderia ficar doente. Este não era o Romário. Ele era feliz demais para deixar de sacudir o rabo por qualquer bobagem. Na certa morreu correndo atrás de algum passarinho, que era o que ele mais gostava de fazer. Lá no céu dos cachorros, já encontrou a Pretinha. E deve ter contado para ela que o sofá foi dele por quatro anos. A capa do sofá pode ser removida. E as visitas vão ver que feio ficou o sofá sem a presença dos cachorros…
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textoearte · 8 years ago
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Ossos do Ofício
Lá estava eu, no meio daquela turba de crianças, tentando pegar uma pequena declaração do presidente da empresa para postar na fan page dele. Era só um trabalho. Um simples trabalho. Um insano trabalho. Eu me sentia quase na porta do inferno. Mãos de algodão doce me tocavam, tênis imundos me pisoteavam. Pelo tamanho, eu parecia uma delas. Meu metro e meio não me permitia destaque algum. Eu só me sentia diferente por uma única razão: eu era a única que com uma mão segurava um papel e lápis e com a outra puxava a ponta do paletó do presidente.
Empurrada pelas crianças, quase fui atirada contra uma porta de vidro. Mesmo esfolada, não me desesperei. Minha mão continuava ali, segurando firme a barra do paletó dele. Não perdera meu alvo. Não perderia meu emprego.
Quando deixamos o prédio, eu já sentia os saltos bambearem. Estava quase abrindo a mão, deixando aquele paletó ir embora, na velocidade que quisesse. Junto com o meu emprego, é claro. Ele estancou. Eu tropecei. Por pouco não caio em cima dele. Olhou para mim. Tremi. Falei rápido, para não perder a oportunidade. Trinta segundos. Foram apenas trinta segundos. Um simples ok salvou meu emprego. Nem me incomodei com os saltos quase despencando, o vestido em frangalhos, a maquilagem escorrendo, os cabelos desgrenhados. As contas do mês estavam salvas!
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textoearte · 8 years ago
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Muitos outros cachorros
Sansão… Apareceu assim, perdido que estava, procurando um abrigo. Doente, precisava de cuidado. Pequeno, pedia proteção. Ali foi cuidado. Ali ficou. Muita gente circulava durante todo o dia. Ele se sabia meio clandestino. Hora de aparecer, hora de passar despercebido. À noite ficava só com os homens de uniforme. Descobriu: eram seguranças do prédio. E andavam pelo grande terreno muitas vezes. Começou a acompanhá-los. Era gostoso correr, ter companhia, carinho e muita gente para brincar. Ganhou um urso de pelúcia, depois um osso e dois lindos potinhos, um para água e ouro para ração. Retribuía com lambidas, pulos, abanos de rabo, mordidas no braço da Fernanda – de carinho, claro – e recebia de volta muitos sorrisos. Ganhara uma casa, meio diferente das que vira, mas estava feliz. Sansão já está ali há seis meses. Sabe que não é mais um bebê, mas o cuidado que todos têm com ele retribui bem do seu jeito: ouvidos atentos aos perigos, brincadeiras, se esconder… Sabe que pode dormir tranquilo embaixo da árvore que fica bem na entrada do depósito. Ou em sua casinha. Ou perto da guarita de segurança. Sansão deixou todo mundo mais feliz. Já não é mais um cachorro abandonado. Orgulhoso de sua coleira vermelha, outro dia até ouviu do presidente: “está com sono, Sansão?”. Sansão abanou o rabo. Tinha mesmo uma casa. Estava feliz. Podia fazer as pessoas felizes. Hoje, quando dorme, sonha para que todos os cachorros sem lar encontrem pessoas como as que ele tem por perto: uma Hilda, uma Fernanda e muito cuidado e carinho.
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textoearte · 8 years ago
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Confinamento
O sábado havia chegado. Novamente. E depois haveria o domingo. Em uma casa tão pequena, que se houvesse amor caberiam duas pessoas, não era possível fazer mais nada a não ser ficar deitada na cama, prostrada, dormindo, sonhando, tendo pesadelos, vendo televisão, fazendo qualquer coisa que não atrapalhasse a outra parte que dividia os metros quadrados. Ir para a cozinha? Só quando não estivesse sendo usada. Sabia que em todo lugar era um incômodo, que qualquer coisa que falasse era fora de hora, que qualquer pessoa que trouxesse era um empecilho. Seus gostos eram tão ridículos. Não fazia nada bem. Não era nem de longe uma pessoa com qualidades. Um dia ela gostara muito de cantar.  Parara. Não cantava mais. Quantas vezes não vira o riso de escárnio, o gesto irônico, o dar de ombros… Quantas vezes falara alguma coisa e não fora ouvida. Nem repetira. Pra que se dar ao trabalho de repetir. Voltava ao confinamento do quarto. Ali podia dormir, dormir, sonhar com uma vida melhor, longe dali. Quantos planos aquela cama conhecia. Quantos! Quantas lágrimas embalaram o desejo de acabar com tudo de uma vez, apenas com um voo livre. Percebera que já não sorria mais. E que estava começando a não se amar da mesma maneira que a outra parte não se amava. O ódio podia ser visto sempre na expressão dele. A inveja, nas palavras, a arrogância, nos gestos. Era surdo à conversa alheia. Era surdo a qualquer verdade que não fosse a dele. No começo, era suportável. O cansaço de carregar um grande peso nas costas e o ódio no peito já a levara a separar comprimidos e comprimidos e decidir acabar com tudo. O sonho de virar andarilha era cada vez mais frequente. Então começou a engendrar um plano para fugir, desaparecer. Fácil. Parecia fácil. Pegar um avião, alugar um carro, abandonar o carro em uma fronteira, queimar documentos, tudo isso seria factível. Mas o desânimo era tanto, a indiferença era tanta, a humilhação era tanta, que os comprimidos venceram qualquer plano mirabolante. Foi muito mais fácil. Ali, assistindo o mesmo canal de tevê, aquilo que já sabia de cor, sem nem precisar olhar, foi tomando um a um, devagar, como se preparasse seu caminho para outro mundo. Parou de contar quando chegou no 89. Ainda ingeriu mais alguns. E foi embora, muito além daquela fronteira que imaginara, longe de olhares acusadores, de palavras ásperas, de chantagens emocionais, de responsabilidades, de tristezas, de mentiras, de angústias. Flutuava. Sufocava. Mergulhava numa imensidão de cores. Nunca, nunca mais, foi seu último pensamento. E seu coração partiu livre, pleno de liberdade, certo de que haveria um lugar em que confinamento não seria considerado paraíso.
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textoearte · 8 years ago
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METADE DE MIM É AMOR
Já não sou mais quem eu era. Já não tenho uma barreira de vidro que me isola dos problemas. Já não tenho ânimo de sair e passar os finais de semana fazendo tudo o que eu precisaria fazer durante a semana. Não dou muitos passos além do quarto. A alegria foi embora. Os horizontes estão limitados a uma tela de televisão. A agonia toma conta. O não falar parece mais difícil ainda. Queria uma simples alegria. Um simples ânimo. Mas parece que está tudo errado. E vejo o mundo desabar. Eu, como plateia, simplesmente assisto ao desabamento. Inerte, paralisada, catatônica.
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textoearte · 8 years ago
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O poder do terno de tergal
Terno de tergal, lavado a mão, passado a ferro em casa mesmo. Um brilho numa manga do paletó. Outro na perna da calça, bem perto do joelho. Ah, de novo a mulher esquecera o ferro segundos a mais ali. Pudera! Devia estar com o rádio ligado, ouvindo aquele programa de fofocas, e não prestava atenção no que fazia.
A gravata, preferia lavá-la ele mesmo, para não ter nenhuma marca. A camisa ficava escondida sob o paletó. Então, se tivesse um puído aqui, outro ali, não tinha importância. Ninguém veria. Não tirava de jeito nenhum o paletó. Afinal, autoridade que é autoridade está sempre de terno, gravata e camisa de manga comprida.
Saía todas as manhãs, caminhava até o ponto do ônibus e esperava a linha 743. O vento não despenteava seu cabelo, sempre impregnado de brilhantina. Deu um leve sorriso. Quanto andara para comprar brilhantina! Tão difícil de encontrar. Mas era bem diferente dos produtos modernos, que saíam com rapidez. Além de custarem mais caro! Ainda bem que o seu João continuava com a sua farmácia de uma porta só, antiga, balcão de madeira, que vendia produtos quase impossíveis de serem encontrados.
Carregava a pasta preta sempre com muito cuidado. Dentro dela estava a marmita, feita na noite anterior e embrulhada com um pano. Ainda não podia se dar ao luxo de comer fora. Era caro demais.  Levava também, no bolso do paletó, enrolado num saco plástico, um pequeno pedaço de flanela para lustrar o sapato um quarteirão antes de chegar.
O ônibus chegou. Lotado como sempre. Subiu, se espremeu entre algumas pessoas e conseguiu pôr os dois pés no chão. O ônibus não era problema. Por mais espremido que estivesse, uma vantagem tinha: o tergal não amassava.
Depois de mais de uma hora chacoalhando, sendo empurrado, chegou ao destino. Com um profundo suspiro, desceu. Lustrou os sapatos. Arrumou o nó da gravata. Tirou o lenço do bolso do paletó, enxugou o suor do rosto e andou, corpo ereto, ar altivo, como é o andar da maioria dos executivos. Não olhava para os simples passantes que cruzavam seu caminho. Dentro daquele terno, era poderoso demais. Entrou no prédio. Rapidamente, tomou seu lugar. Sentou-se na guarita da entrada do estacionamento. Estava pronto para liberar a entrada de todos os poderosos daquele prédio. Com o calor que estava, com sorte, na hora do almoço a comida da marmita ainda estaria quente.
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textoearte · 8 years ago
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Sem trema
Gordo, maltratado, roupas surradas, cabelos raspados. Também, ali já quase não havia cabelo. Às vezes andava pelos corredores como um fantasma a procurar por uma vítima. Às vezes parecia um náufrago, em sua última tentativa de se segurar a um pedaço de madeira que encontrara em alto-mar.
Não conseguia decidir qual personagem vestir. Queria ser moderno, mas parecia saído de um armário de roupas amassadas, que havia muito não era aberto. Sim, exalava cheiro de guardado.
Eu podia vê-lo sentado em uma biblioteca antiga, de madeira, com diversos volumes das enciclopédias Barsa e Mirador abertos, pensando nos hifens que já não mais existiam, dos tremas de que tanto ele sentia falta, dos acentos diferenciais que pareciam ter causado uma lacuna profunda em seu bom vocabulário, nas palavras novas que nunca seriam colocadas naquelas folhas de papel que representaram seu conhecimento ao longo de toda a vida.
Podia sentir o cheiro de roupa mal lavada, de dentes mal escovados, de rosto que não via um sabonete perfumado havia muito tempo.
Grande, balançava a gordura de um lado para o outro, tentando parecer importante.  Esticava o pescoço aqui, esticava o pescoço ali. Sempre em busca de ficar perto dos fortes, dos poderosos, de quem podia lhe garantir o emprego na repartição pública.
Seu conhecimento não servia para quase nada. Apenas para se lamentar, em bom português, que sua vida era apenas um passar de dias.
Para isso, ele não precisava de tremas.
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textoearte · 8 years ago
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Segunda Classe
Dizem que profissionais de segunda categoria temem os profissionais de primeira. Fazem o que podem para ter somente aqueles de terceira. Afinal, nada melhor do que ter alguém que não ameace sua ignorância. Se a avaliação é errada e alguém se sobressair, é logo colocado na berlinda.
Constatei que é verdade. Talvez da forma mais terrível possível. Quando meu trabalho de lógica foi premiado, e eu me achando o próprio Newton, entrei na sala com a certeza de que receberia cumprimentos, que sorririam, que diriam palavras de estímulo, de incentivo.  
Que nada. O lugar que eu me sentava estava ocupado por um estagiário. Rapazinho imberbe, tatuado, que falava uma língua que eu sinceramente não conhecia – talvez porque já estivesse ficando velho, talvez porque gostasse da língua portuguesa ou talvez ainda porque essa gíria de rua não estivesse de acordo com cientistas que passavam o dia em laboratórios de pesquisa.  
O chefe – sim, porque todos ali agiam como se trabalhassem em uma instituição pública –, com seus gritos agudos e desafinados, seus trejeitos histéricos, logo me informou que me haviam trocado de lugar. Com um sorriso que queria mostrar simpatia, mas que deixava ver seu incômodo, disse que me colocara em um lugar mais silencioso, de paredes mais altas. Claro que eu teria mais tranquilidade para me dedicar às fórmulas e às exceções.
Nenhuma palavra sobre o meu premiado trabalho. Como assim? Premiado? E se os outros descobrissem? E se dissessem que eu era competente?
Quando ele abriu a boca, voz esganiçada, um tanto trêmula, conseguiu articular uma, apenas uma, palavra incompreensível. Esboçou um sorriso pálido. Tão pálido quanto sua vida. Tão de segunda classe, que eu voltei meus olhos para o computador para não ver o vazio dos olhos de alguém de segunda categoria.
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textoearte · 8 years ago
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O canto triste da Paulista Alguém começa a cantar La vie en Rose. Do décimo nono andar, a voz chega como um poema. Já está quase escurecendo. Paro de escrever meu texto. Imagino Edith Fiaf. Imagino Paris. Tudo em preto e branco. A voz rouca da anônima traz um quê de tristeza. Talvez mais do que a de Piaf. Depois da terceira ou quarta música, fecho o computador. Desço. Atravesso a avenida. Nada no cenário se assemelha à imagem que criei mentalmente. Passo bem devagar em frente à cantora. Quero ver o rosto daquela voz. Uma moça mirrada, de calça jeans muito mais larga que seu manequim. Destoa da música, destoa do lugar. Seu violão elétrico, ligado à caixa de som, já conheceu dias melhores. A latinha colocada um passo adiante dos seus pés guarda algumas moedas. Seu olhar é uma incógnita. Continuo meu caminho. Alguns acordes e reconheço a música Catedral. Vou embora cantarolando e pensando na voz que a avenida ganhou. Nos dias seguintes, vários outros cantores de ocasião vão chegando. Instrumentos e gêneros musicais se misturam. Axé, forró, sertanejo, até um sósia de Elvis Presley e um senhor vestido a la Carlos Gardel. Há aspirantes a Roberto Carlos em todos os quarteirões. São tantas vozes, tantos sons, que já não dá mais para distinguir a voz da moça que me encantou com La Vie en Rose. Não passam muitos dias e já são vistos vendedores de bandanas, pequenas araras com echarpes, bijuterias grosseiras e panos de prato. Nos dias de chuva, capas e guarda-chuvas chineses, que provavelmente não aguentam uma ventania. Nos dias de frio, capuz, boinas, gorros de todas as cores, tipos e modelos invadem as calçadas. Os ambulantes se misturam aos transeuntes. Os pedintes aumentam a olhos vistos. As crianças pedem. Não sabem por que. Sabem apenas que têm de pedir. As ciganas estão ali para ler sua mão. Insistem! Os palhaços e os malabaristas ficam nas esquinas, aguardando a vez de mostrar o talento para motoristas fechados em seus carros. A cara da Paulista mudou. A expressão das pessoas, também. A voz rouca da cantora desapareceu em meio ao burburinho. O retrato do Brasil é feio. Não é em preto e branco. La vie en Rose não cabe mais em nenhum cenário.
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textoearte · 8 years ago
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COTA DE TRABALHO PARA OS SESSENTÕES Quando os sessenta anos chegam, você pensa: “Nossa, mas já tenho tudo isso? Estou me sentindo tão bem!” O espelho é o primeiro a ser consultado. Ok, passei pelo teste. Também estou com uma aparência ótima... de sessenta anos! Disposição de menina, é o que me dizem! Mas os “sessenta anos reais” aparecem em outras circunstâncias. Emprego: “Precisamos de gente mais jovem, que esteja mais antenada com tecnologia.” Quem disse que eu não estou? Alguém me perguntou? “Ah, preciso de alguém que fale mandarim.” Nossa, pensei que inglês, espanhol e francês bastassem. E olha que ainda arranho um italiano, meio porco, meio americano falando português. Mas não é pior que o sotaque do Fernando Alonso na propaganda da Aramis falando inglês. “Seu currículo está muito acima da média para a vaga que tenho. Sugiro fazer um down grade nele, talvez assim você consiga alguma coisa.” Como assim? Levei 40 anos para adquirir todo esse conhecimento, estudei, fiquei noites a fio dormindo tarde e acordando acabada no outro dia, e agora ele não serve para nada! Experiência agora virou problema? Os “sessenta anos reais” também aparecem na moda: Os novos 38 são os 42 dos meus vinte anos. Pedir 42 para as vendedoras magérrimas, maquiladas, que se sentem as novas Giseles a serem descobertas por algum olheiro, é quase uma escalada ao monte Evereste. Falta fôlego para permanecer calma diante do que acontece a seguir: trazem número menor e dizem que a loja não fabrica mais “esse” número. Ou, então, peças que destoam completamente do seu estilo. E segue por aí... Um pouco constrangida, você agradece e vai embora. Jeans? A maioria deles tem cintura baixa e é rasgada no joelho. Arregalo os olhos. O que faço com a “pochete” que acumulei na barriga ao longo dos anos? E com o joelho, agora parecido com um Sharpei? Com bom humor, tudo isso não tem importância. Quem quiser sair vestida de avó da Barbie, periguete dos anos 1970, perdida de Woodstok, tem todo o direito. Mas o direito, mesmo, que o sessentão deveria ter era ao emprego. Os sessenta anos de hoje são os quarenta de ontem. Chegar ao sessenta e não encontrar mais emprego é a realidade da maioria dos brasileiros. Vou começar um movimento. “Cota de trabalho para os Sessentões”. Afinal, talvez a câmara e o senado aprovem essa lei. Porque... o Aécio está de volta!
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textoearte · 10 years ago
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Não vou mais ficar de pileque
Minha tosse tem incomodado demais as pessoas que trabalham ao meu redor. A toda hora alguém diz: compre xarope. Sorrio e concordo. Às vezes até minto, sem nenhum pudor, que estou tomando. Não compro! Desde que descobri que tenho de trabalhar 151 dias por ano para pagar impostos, comecei a mudar de vida. Estou tentando viver com o mínimo possível. Se a tosse passa com o tempo, pra que pagar imposto de 34,80% por um vidro com aquele líquido doce horroroso?
Tenho quase certeza de que a causa da tosse é a abstinência da bebida. Não bebo mais. O preço da cachaça está pela hora da morte. Só o imposto é de 81,87%. Foi-se o tempo que pitar um cigarro, 80,87%, e tomar uma cachaça era coisa de gente simples. Com o preço que está, tem de ser servida em copo de cristal acompanhada de charuto cubano.
Lá em casa havia uma variedade tão grande de uísques classificados que eu nem decorava os nomes. Meu marido tomava um gole e dizia “sinta o aroma de amêndoa”. Tentei várias vezes. Meu olfato é péssimo. Agora, adeus aroma de amêndoa. Com o imposto batendo os 61%, o preço foi para a estratosfera!
O restinho da vodca que está no congelador é guardado como se fosse uma pepita de ouro. Não deixo ninguém mexer. Acho que vem com algum russo dentro, pois o imposto é de 81,52%. Aliás, não tenho visto o Gorbachev ultimamente...
Chope com os amigos? Cerveja? Vinho? Que nada, melhor ir pra casa, pois essas bebidas vêm com mais de 50% de imposto embutido no preço. Definitivamente, não saberei mais o que é estar de pileque. Melhor, pois o imposto sobre os remédios é o que teve a maior alta.
Decido ir a pé. Desvio dos buracos e das pedras soltas. Não quero acabar com meus sapatos em três quilômetros de caminhada. Metade do preço deles vai para o governo. Andando, economizo a mensalidade da academia, imposto de 26,86%, o transporte coletivo, 22,5%, ou a gasolina, 56,09%.
Aproveitar a faixa de ciclista que o prefeito improvisou nas ruas, nem pensar. Foi o tempo em que as magrelas eram a melhor maneira do pobre se deslocar. As bicicletas só faltam falar. E se falassem diriam que no seu preço final há um imposto de mais de 45%. Como não sou pessimista, vejo uma vantagem em ter descoberto que estão tungando meu bolso: não vou ficar doente. Vou caminhar, eliminar o estresse do dia a dia, ficar em forma. Não precisarei nem de remédio nem de seguro saúde, 50% de imposto no valor mensal do carnê. E olha que é aquele plano básico, de enfermaria mesmo, que as visitas vão em horário comercial e você morre de solidão.
Outra opção que anda rondando minha cabeça é vender o que tenho -- apesar de saber que também há impostos a serem pagos sobre os bens que consegui com o suor do trabalho, sempre pagando outros impostos – e me mudar para uma praia de nudismo. Economizo nos impostos dos sapatos e das roupas, que estão em 35%. Repelente para mosquito será mastigar alho o dia inteiro, porque o imposto do industrializado é de 37,43%.
Enquanto não resolvo o que fazer, fico no meu apartamento mesmo. Claro que tomei algumas medidas para não dar dinheiro para o alheio: cortei o açúcar, imposto de 30,60%. Adoçante, nem pensar: 37,19%. Banho, só frio! E a cada dois dias. Senão, a energia elétrica vai comer parte do meu fígado: 48,28%. Mesmo assim, estou pensando em tomar banho com água mineral. Temperatura ambiente. Economizo na conta de luz. Sem contar que o imposto da água mineral é de 37,44% e o do serviço público é de 37,88%. Assim, com água de boa qualidade, não preciso usar sabonete, 31,13 %, shampoo, 42,20%, e desodorante,37,37 %. Boa economia!
Decidi também que a partir de agora serei frugivorista. Afinal, o imposto sobre as frutas é de apenas 11,78%. Com a vantagem de que não preciso gastar gás, 34,04% de imposto.
Nesses dias cinzentos, andei pensando em comprar um revólver. Quando vi que o imposto era de 71,58% sobre o valor, desisti.  O da urna funerária é bem menor, 35,93%, e não serei eu a pagar!
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textoearte · 10 years ago
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