Nascido em Santos, SP, é fotógrafo e jornalista há cerca de 40 anos. Escreveu para o caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo, onde foi fotojornalista e editor de fotografia. Foi colunista da revista Iris Foto e do portal Fotosite onde também foi editor, além de colaborar com diversas revistas como a SeLecT, Santa Art Magazine e Fotografe Melhor. Suas imagens já foram publicadas pelas editoras Penguin (Inglaterra), Rizzoli (Itália), Autrement (França), Editorial Crítica(Espanha), Rive Gauche (China) e Yale University (EUA) entre outras. O conteúdo deste blog traz reviews dedicados a arte e a fotografia. Foto da capa por Richard Misrach uma homenagem a este grande fotógrafo.
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Stefania Bril desobediência pelo afeto
Stefania Bril desobediência pelo afeto (IMS, 2024) é o livro que acompanha a mostra homônima na sede paulista do Instituto Moreira Salles a partir de 27 de agosto até 26 de janeiro de 2025. De família judaica polonesa, Stefania Bril (1922-1992), imigrou para o Brasil em 1950. A exposição e livro apresentam ao público a obra fotográfica, sua produção crítica e a atuação no campo institucional. Radicada em São Paulo, já em 1970 consolidou-se como fotógrafa e, a partir dos anos 1980, como crítica e curadora. Em suas fotografias vemos cenas cotidianas onde prevalece a irreverência, com perspectivas que propõem sutis deslocamentos na forma de olhar para uma metrópole que crescia em meio ao chamado "milagre brasileiro" - de pensamento ufanista, durante os primeiros anos da ditadura militar.
O alentado catálogo da mostra com mais de 300 páginas, traz também uma série de fotografias inéditas. É a primeira exposição individual com 160 imagens dedicada à obra da fotógrafa e crítica nos últimos 30 anos com curadoria da colombiana Ileana Pradilla Ceron, pesquisadora sênior no Instituto Moreira Salles e do carioca Miguel Del Castillo, com assistência da também carioca Pâmela de Oliveira, o primeiro coordenador da biblioteca do instituto e a segunda pesquisadora do acervo de fotografia do IMS.
Stefania Bril nasceu em Gdansk e viveu até a adolescência em Varsóvia. Ao lado de seus pais sobreviveu ao Holocausto. Mudou-se para a Bélgica ao término da Segunda Guerra já casada, onde graduou-se em Química em 1950, ano este em que imigra para o Brasil estabelecendo-se em São Paulo trabalhando a princípio com pesquisas nas áreas de bioquímica e química nuclear. Começou a dedicar-se a fotografia aos aos 47 anos, quando matriculou-se na icônica Enfoco, escola de fotografia criada por Cláudio "Clode" Kubrusly, que funcionou entre 1968 e 1976, por onde passaram consagrados fotógrafos como Cristiano Mascaro, Maureen Bisilliat, Antonio Saggese, Dulce Soares, Ella Durst, Mazda Perez, Nair Benedicto e Rosa Gauditano entre seus professores e alunos.
Ao final dos anos 1970 Stefania Bril, segundo pesquisadores do IMS, inaugurou a crítica fotográfica na imprensa brasileira escrevendo e assinando seus textos por mais de uma década no jornal O Estado de S. Paulo e na pioneira revista Iris Foto (1947-1999). Em suas colunas, analisou boa parte da produção fotográfica brasileira e internacional apresentada em São Paulo nos anos 1980, além de ter organizado festivais de fotografia. De suma importância para a cultura fotográfica criou a Casa da Fotografia Fuji, primeiro centro cultural em São Paulo voltado exclusivamente para o ensino e a divulgação da fotografia, que coordenou de 1990 a 1992. Seu acervo, que inclui sua obra fotográfica, crítica e sua biblioteca, está sob a guarda do IMS.
A coleção da fotógrafa foi adquirida pelo IMS em duas etapas: a primeira em 2001 e a segunda em 2012. O arquivo possui aproximadamente 15.000 imagens, entre ampliações de época, negativos e cromos (diapositivos) além de farta documentação textual. Como parte das iniciativas de difusão do acervo, o IMS destinou, em 2019, a segunda edição da Bolsa de Pesquisa em Fotografia ao estudo de sua obra. A pesquisadora contemplada foi a professora carioca Alessandra Vannucci, que assina um dos textos do livro, juntamente com Ileana Pradilla Ceron (que além do texto principal também assina a Cronologia comentada), Miguel Del Castillo e do paulistano Alexandre Araujo Bispo, antropólogo, curador, crítico e educador independente, doutor e Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Além destas preciosas análises, a publicação conta com uma pequena fortuna crítica com matérias selecionadas de Stefania Bril.
Segundo a curadoria, ao não focar em temáticas como o campo da política ou dos retratos de personalidades, a obra de Stefania “questiona certos critérios tradicionais de valoração da fotografia. Sua produção mostra sobretudo o fluxo da vida, observando as sutilezas, as ironias e contradições do dia a dia, com registros de momentos lúdicos e de afeto, como pontuam os curadores: “O cotidiano, considerado um tema sem importância, é afirmado por Stefania como espaço de resistência, inclusive em meio a um contexto totalitário como os anos de chumbo no Brasil quando fotografava. [...] Pouco a pouco, revela-se, por exemplo, a posição crítica de Stefania, que enxerga a falência da cidade moderna em meio às metrópoles que fotografou, e que aposta no afeto como antídoto à violência estrutural vigente.”
O conteúdo são imagens principalmente de São Paulo, mas também de outras grandes cidades, como Nova York, Paris, Amsterdã, Jerusalém e Cidade do México. As pessoas “anônimas” que habitam essas urbes contraditórias são as protagonistas das imagens (“Eu gosto de gente, não de carros.”, escreveu a artista em 1975). Embora signos das metrópoles, como edifícios e construções, também estejam presentes, nas fotos de Stefania eles são atravessados por intervenções lúdicas, evidenciando a posição crítica da fotógrafa em relação à padronização e desumanização impostas pela razão moderna. Já na série Descanso, registra homens cochilando em seus locais de trabalho, resistindo à lógica produtivista ou simplesmente esgotados por ela, e, em outro conjunto, retrata trabalhadores que mantêm vínculos com o fazer artesanal, como pintores e músicos de rua.
Para os editores, o humor e a ironia também transparecem nas fotografias. Algumas delas trazem cenas que beiram o surreal, como a imagem de uma vaca no meio de Amsterdã; a de uma mulher carregando uma nuvem de balões no meio da Quinta Avenida, em Nova York; ou ainda a de um menino que lê um gibi deitado dentro de um carrinho de supermercado em São Paulo. Ainda na chave do humor, Stefania também mira seu olhar para as escritas das cidades, capturando cartazes, outdoors e pichações. Sobre esse caráter de sua obra, a artista escreveu: “Insisto em ter uma visão poética e levemente zombeteira de um mundo que às vezes se leva a sério demais.”
De fato podemos notar em seus registros dois segmentos importantes que nos remetem a grandes fotógrafos, como os americanos Paul Strand (1890-1976) e Walker Evans (1903-1975), seja no seguimento mais antropológico, no caso do primeiro, a afinidade vem dos retratos que revelavam seu tempo distante das chamadas celebridades, e tipológico quando pensamos neste último cujas imagens traduziam uma concepção tipológica das cidades, quando Bril fotografa uma profusão de placas, outdoors e inscrições espalhadas por diferentes lugares.
O livro apresenta diversos retratos feitos por Stefania Bril, que segundo os editores, sinalizam outra característica marcante de sua produção. Grande parte das imagens mostram crianças brincando e pessoas idosas, fotografadas nas ruas ou no ambiente doméstico. Há também figuras populares em seus contextos locais, como o casal Eduardo e Egidia Salles, quituteiros famosos em Campos do Jordão, cidade da Serra da Mantiqueira, onde é comum a arquitetura de estilo suíço, que acolhe milhares de turistas no inverno paulista, onde a fotógrafa possuía uma residência, e Maria da Conceição Dias de Almeida, conhecida como Maria Miné, então importante personalidade da cidade.
Ileana Ceron escreve que Stefania Bril adentrou na fotografia pelas mãos de sua amiga, a fotógrafa e artista plástica alemã Alice Brill (1920-2013) que transitava com desenvoltura no circuito moderno das artes visuais. Segundo a curadora, ela "fez parte dos autores que, na década de 1950, construíram no país a linguagem moderna da fotografia e que tinham na cidade — entendida como o locus da modernidade — o seu objeto de investigação por excelência."
A entrada de Stefania Bril na Enfoco foi ideia de Alice Brill. Um lugar em que, conta a curadora, "Os alunos formavam um grupo heterogêneo. Apesar de a escola oferecer bolsas de estudo a quem não tinha recursos, o seu custo era elevado, pois a fotografia permanecia uma atividade elitista, devido aos altos valores de equipamentos e insumos para seu desenvolvimento." A presença feminina era majoritária, destacando-se a paraibana Anna Mariani (1932-2022) , a belga Lily Sverner (1934-2016) e a própria Stefania Bril, "entre outras, integravam o segmento de mulheres já não tão jovens que, após terem cumprido os rituais atribuídos socialmente à mulher, como o casamento e a maternidade, buscavam dar resposta a suas inquietações culturais e intelectuais. Para as três, a passagem pela Enfoco representou um ponto de inflexão, a partir do qual adotaram a fotografia como profissão" explica Ileana Ceron.
"Como boa observadora-ouvinte que era, Stefania Bril tem olhos e ouvidos para perceber o que a cidade está falando, mapeando a dor e o insólito da vida moderna, mas também a resistência e o humor." escreve Miguel Del Castillo. "Numa imagem conhecida, que foi capa de seu primeiro livro fotográfico, um pequeno letreiro nos convida, avistado por trás de alguns tubos de concreto: “Entre”. Suas fotografias possuem camadas assim. E, no caso dessa e de muitas outras escritas urbanas, enquadradas pela fotógrafa, parecem expressar em voz alta as ambiguidades das cidades."
Alexandre Araújo Bispo, aprofunda a parte antropológica da obra da fotógrafa: "Entre mostrar-se e esconder-se, olhar e ser olhada, as pessoas negras memorizadas nos negativos de Stefania Bril indicam a multiplicidade de ser negro: a personalidade pública Maria Miné, individualizada em um ensaio, mas pertencente a uma família extensa, a velha negra Ermília em família, a mãe negra com um ou vários filhos, o homem negro de “escritório”, o jovem negro com ares de hippie e olhar idealista, os artistas negros em seu fazer poético, os trabalhadores braçais, as crianças negras de ambos os sexos. Do modo como fotógrafa algumas pessoas, Stefania sugere ter estado com elas antes, durante e depois do instante fotográfico. Suas imagens evocam um sentido de conversa com e menos um dizer sobre ou pelas pessoas. Não parece haver uma autoridade sobre o que está mostrando, mas um desejo genuíno de convivência e interação social. Em outras fotos, como as dos trabalhadores braçais registrados na ação de trabalhar, o contato social não parece ter se prolongado."
Imagens © Stefania Bril. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
OrganizaçãoIleana Pradilla Ceron Miguel Del Castillo
Produção editorial Núcleo Editorial IMS
Projeto gráfico Beatriz Costa
Tratamento de imagens Núcleo Digital IMS
Impressão: Ipsis Gráfica e Editora, tiragem de 1.500 exemplares nos papéis Offset, Pólen bold e Supremo
Serviço
Exposição Stefania Bril: desobediência pelo afeto
Abertura: 27 de agosto, às 18h
Visitação: até 26 de janeiro de 2025
6º andar | IMS Paulista
Entrada gratuita
Conversa de abertura da exposição, com os curadores Ileana Pradilla Ceron e Miguel Del Castillo e as convidadas Cremilda Medina, Maureen Bisilliat e Nair Benedicto27 de agosto, às 19h
Cineteatro do IMS Paulista
Entrada gratuita, com distribuição de senhas 1 hora antes do evento e limite de 1 senha por pessoa.
Evento com interpretação em Libras
IMS Paulista
Avenida Paulista, 2424. São Paulo, SP.
Tel.: (11) 2842-9120
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VIAGEM PITORESCA PELO BRASIL > CÁSSIO VASCONCELLOS
Ainda criança na casa de sua família, o fotógrafo paulistano Cássio Vasconcellos, hoje com 58, anos ouviu falar muito de seu trisavô Ludwig Riedel (1790-1861), renomado botânico berlinense, que acompanhou no Brasil a icônica expedição do também alemão Barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852) colecionador de espécies e estudioso da natureza. Assim, desde que se lembra, o imaginário dos chamados "artistas viajantes" não lhe saiu da cabeça, como as florestas brasileiras sempre impulsionaram sua criatividade e gosto por esta estética.
Em seu belo livro Viagem Pitoresca pelo Brasil (Fotô Editorial, 2024) Vasconcellos remonta a publicações quase homônimas em seu título, uma certa homenagem a Voyage pittoresque et historique au Brésil, do francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) publicado inicialmente em Paris, em 26 fascículos, durante os anos 1834 a 1839, formando um conjunto de 3 volumes e Malerische Reise in Brasilien, de 1835, do artista alemão Johann Moritz Rugendas, ambos com algumas versões brasileiras. Para este livro o fotógrafo percorreu vestígios da Mata Atlântica em São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rio de Janeiro.
Mais recentemente seguindo o mesma estética do"Pittoresque" (que faz referência às impressões subjetivas desencadeadas pela contemplação de uma cena paisagística em relação à pintura) temos a obra do paulistano Antonio Saggese, com seus livros Pittoresco (Edusp, 2015) e Hiléia (Editora Madalena,2016) [ leia reviews aqui. no blog em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/152956262256/hil%C3%A9ia-antonio-saggese e https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/132665968846/pittoresco-antonio-saggese ] que recorrem a esta mesma dinâmica gráfica de Vasconcellos na criação de uma imagem marcadamente tão interessante quanto sublime, seja em sua concepção formal, estética ou conceitual quando tratamos da sua representação mais extensa.
Cássio Vasconcelos iniciou este livro por volta de 2015 ainda que seu interesse pela natureza venha da família logo cedo, para ele a estética é muito interessante. Como ele mesmo conta: "Resolvi criar um diálogo com estes trabalhos originais quase 200 anos depois, mas através da fotografia." Sem dúvida a plasticidade formatada pelos europeus encontra eco nas suas imagens, resultado de complexas operações, a começar pela captura das imagens: "diferentemente da pintura, preciso, de início, localizar o lugar certo e com a luz ideal, para que seja possível executar o posterior tratamento das fotografias e chegar ao resultado final. É diferente do pintor que pode acrescentar ou remover uma árvore do lugar por conveniência, porque a luz não é suficiente." Em meio a riqueza da flora brasileira, a aproximação com as etchings e litografias deixadas por eles reverberam elegantemente nas imagens.
Em Viagem Pitoresca pelo Brasil as imagens de Vasconcellos estão em ótima companhia com textos de Julio Bandeira: "Natureza e Cultura, a mata e a busca pelo sublime." O autor é Doutor em Teoria e História da Arte pela Universidade de Essex (Reino Unido), Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ; sócio do Instituto Histórico Geográfico do IHGB e faz parte do corpo de pesquisadores da Biblioteca Nacional. Já publicou mais de 30 livros, sua maioria dedicados a pintores viajantes.
Para Bandeira, se na obra de Debret, a natureza é um complemento cenográfico para inclusão de indígenas, com imagens pintadas ao natural, na obra de Cássio Vasconcellos muitas dialogam com a contemporaneidade. No seu prazeroso texto para os que cultuam as chamadas "Brasilianas" outros preciosos autores também aparecem como o médico e botânico bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius ( 1794-1868) mais conhecido apenas por Martius; o gaúcho Manuel José de Araújo Porto-Alegre ( 1806-1879) e Rugendas entre outros.
O que é certo que o fotógrafo não faz uma "pintura", muito menos emula outro trabalho e sim fotografia, com anos de seu aprimoramento em diferentes técnicas, cujo resultado é mais próximo de uma Etching ( gravura em metal). No entanto, a proximidade com os viajantes dá-se pelo clima que Vasconcellos imprime em suas imagens que abdica de personagens como os propostos por Debret e Rugendas, a não ser por um grupo de fotografias que fazem contraponto com as folhas estudadas por seu trisavô que estão em museus como o Smithsonian, onde nestas a figura humana, homens e mulheres nus, extraídos de pinturas do final do século XIX, acomodam-se em lâminas e estampas mais românticas, uma profunda pesquisa para que estas amoldem-se nas grandes árvores registradas.
Na pesquisa pelos lugares, um elemento chave do fotógrafo foi o brasileiro Ricardo Cardim, botânico e paisagista, mestre em Botânica pela Universidade de São Paulo, que atua com biodiversidade nativa e arqueologia botânica para restauro da paisagem natural, que abriu algumas trilhas ao seu lado. É dele também o ótimo texto "A redescoberta do Brasil". Para ele, poucos lugares na Mata Atlântica, a "Caeté", floresta verdadeira, ainda não foram palmilhados pela atual civilização após dois séculos: "Não se veem mais nas matas as grandes árvores seculares, de troncos com metros de diâmetro e altura acima de 40 metros." Entendemos então que Viagem Pitoresca pelo Brasil não é apenas mais um livro a provocar estese mas também um libelo do autor. "É nesse drástico cenário herdado nas primeiras décadas do segundo milênio que Cássio Vasconcellos expõe sua obra sensível de uma paisagem esquecida e desconhecida pelos seus proprietários, a população brasileira." diz o botânico.
Um dos belos conjuntos do livro são as reproduções de "Exsicatas" montadas por Riedel, trisavô do fotógrafo, uma amostra de planta que é prensada e em seguida seca em uma estufa, com temperatura acima apropriada para o material, que posteriormente são fixadas em uma cartolina. Vasconcellos conta que o design gráfico Fábio Messias descobriu-as em suas pesquisas para o desenho do livro. Elas fazem o contraponto em páginas que desdobram-se com as imagens de elementos humanos encartadas no meio da publicação. Segundo o autor: "Muitas dessas pinturas (nus) são realistas. As que eu usei parecem mais com fotografia, e a fotografia final parece com a pintura. As pinturas escolhidas foram produzidas após a invenção da fotografia."
A curadora e crítica Ana Maria Belluzzo, curadora da mostra homônima do livro na galeria paulistana Nara Roesler, ( de 17 de agosto à 12 de outubro deste ano) professora no Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo ( FAU-USP) e autora do livro Brasil dos Viajantes (Metalivros,1994) escreve que o arqueólogo francês Conde de Clarac, em seus desenhos, gravados em metal por Claude François Fortier ( 1775-1835) foram a referência para os "artistas viajantes"do século XIX. Ela destaca a obra de Vasconcellos: "O artista apura valores valores inerentes à fotografia, acentua e transforma registros do real, que são interpretados com aplicação de recursos de edições digitais".
Em seu texto no livro "No coração da floresta: fluxos e batimentos", a curadora portuguesa Ângela Berlinde acerta em que poucos artistas moldaram o escopo da arte contemporânea e influenciaram a fotografia no Brasil, mais do que Cássio Vasconcellos. Para ela: "no gigante dos trópicos o fotógrafo atreve-se à construção de uma nova cartografia pessoal, fitando as vibrações da travessia com coragem e transgressão. A sua poética desconcertante está em conduzir o dentro e o fora da sua obra, ao testar os limites e transgredir fronteiras." De fato, é só nós lembrarmos que vem sendo assim há algumas décadas, desde que o fotógrafo construía suas imagens marinhas nos anos 1980 emulsionando papéis artesanalmente; ao usar sua SX70 para Polaroids autorais nos anos 1980 e 1990 com seu livro Noturnos ( Bookmark, 2002); ou quando passou a criar com a fotografia aérea suas perspectivas urbanas inusitadas que resultaram no seu livro Aeroporto ( Ed. Madalena, 2015) entre tantos outros desafios que marcaram de forma indelével a fotografia brasileira e internacional.
Imagens © Cássio Vasconcellos. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Concepção e fotografias: Cássio Vasconcellos
Edição: Eder Chiodetto
Textos: Ângela. Berlinde, Julio Bandeira e Ricardo Cardim
Co-edição: Fabiana Bruno
Design gráfico: Fábio Messias ( Zootz comunicação)
Coordenação Editorial: Elaine Pessoa
Edição bilingue Português-Inglês
Impressão: Gráfica e Editora Ipsis- 1000 exemplares, papel Munken Lynx Rough e Pólen Bold
para aquisição: www.fotoditorial.com
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ANGUSTURA > ALEXANDRE BELÉM
O pernambucano Alexandre Belém com seu Angustura ( Ed. Olhavê, 2024) procura entender seu percurso de vida em seu espaço mais íntimo e em ângulo mais abrangente. As imagens de Recife, sua cidade natal, produzidas em mais de duas décadas, constituem a materialização de sua experiência mais ontológica. Não estamos aqui exatamente discutindo a cidade, mas sim o caminho do autor, suas expectativas e desassossegos. Momentos felizes e outros nem tanto, faturas da sua profissão de fotojornalista.
Recife assim como outras capitais como Manaus, Fortaleza e Belém, entre outras do Norte e Nordeste estão no topo do ranking da violência e número de homicídios, segundo o Atlas da Violência produzido este ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA. Em suas imagens Alexandre Belém confronta o contemplativo com o violento. Entretanto o faz, por um olhar que brota de seu mais profundo interior, sua perspectiva mais humanista, de quem fez parte dessa população, portanto pelos seus caminhos no quais ele fragmenta a sua cidade em um grande quebra-cabeças humano.
Como o escritor cubano Italo Calvino (1923-1985) em Cidades Invisíveis (1972) o fotógrafo reformula suas narrativas e práticas ao pontuar a sua "cidade imaginada" descrita neste livro onde ele recorre aos conceitos narratológicos, quando seu enquadramento funciona como um pequeno tratado sobre a complexidade urbana. Assim o conteúdo da sua publicação pode ir de uma construção em andamento a uma cena "policial". Daí seu perfeito título: Angustura, que podemos resumir aqui como algo amargo, mas que é consumido. É fruto de sua vasta experiência como editor de fotografias, tanto no seu percurso como fotojornalista quanto como editor de livros.
Escrevendo sobre os aspectos aparentemente inefáveis da evolução urbana criando algumas cidades "imaginárias", Calvino concebe seu texto e ideias para além das estruturas físicas, em uma confluência da sua imaginação e emoções. Ou seja, cômpitos multitudinários. Então podemos seguir os passos do fotógrafo com este auxílio. Não interessa a Alexandre Belém e também ao leitor a exatidão de uma construção em andamento, mas sim o que aconteceu neste espaço temporal. A sua escolha, o antes e o depois. Assim, a evolução destes espaços urbanos, no paradoxo de uma Recife imaginada, mas vivenciada. Ao avançar em Angustura fica claro, assim como no livro do genial escritor, que mundos reais não estão sendo descritos. Somente uma aparência e como os outros podem vê-la.
Podemos também, quando pensamos no conhecimento espacial e as sensações vividas pelo fotógrafo e transcritas para seu livro, nos estudos de semiótica de Algirdas Greimas (1917-1992), linguista de origem lituana que não somente contribuiu para semiologia mas também para narratologia, além de suas diversas pesquisas sobre mitologia lituana baseando-se na idéia de percepção das sensações, porém acrescentando um caráter compreensível: O relacionamento mais intelectual do fotógrafo e as sensações pelas quais ele acessa o mundo.
Embora centrado no Recife, Alexandre Belém me explica que o conteúdo é universal, contudo há um amálgama entre o social e o pessoal nestas relações, diz o mesmo invocando seu conterrâneo, o escritor Gilberto Freyre (1900-1987): Onde também existe uma "drecrepitude palpável", ainda que o leque subjetivo seja grande e o livro de certo modo promova uma visão memorialista, onde passado e futuro imbricam-se, continua o mesmo. Neste aspecto afloram os arquétipos familiares de uma sociedade. A que existiu e a que está em andamento.
Angustura nos mostra que o enquadramento do autor funciona como um pequeno tratado sobre a complexidade urbana, estruturado ao longo de conceitos opostos como o caótico versus o significativo; realidade versus perspectiva, que questionam tantos marcos como seu desígnio e estabilidade produzindo uma original reflexão sobre as limitações e os potenciais de sua práxis. Aqui lembramos de outro escritor, o argentino Ricardo Piglia (1941-2017) quando este diz: “a crítica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras... Assim olha Alexandre Belém para suas próprias experiências, onde sua crítica surge como forma de cotejar a sua existência através de diferentes imagens, mais contemplativas no início e mais dramáticas em seu final, de um adágio para um vivíssimo.
Portanto esta espécie de autobiografia ilustrada nos leva primeiro a uma espécie de florescimento e ao final a mais um paradoxo quando este finalmente mostra-se emurchecido, não porque suas fotografias sejam assim, mas pelo reconhecimento que o primeiro tempo já não é mais conhecido intimamente. Antagonismos que só as imagens podem assegurar, eis que os corpos que outrora brincavam sobre as ondas do mar azul, encontram-se nas vielas sobre o tom vermelho, a recuperar seu "andamento" mais endurecido. No texto da também pernambucana, a antropóloga e curadora Georgia Quintas, parceira do trabalho e vida do autor: "Angustura não amolece as mazelas, não se oferece apenas como um lugar sem arranhar os seus. Mastiga a poeira terrosa da rua e leva para dentro de casa."
Fotografias © Alexandre Belém Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Fotografia, edição e projeto gráfico: Alexandre Belém
Texto: Geórgia Quintas
Tratamento de imagens: Marcelo Guarnieri
Impressão: Gráfica Ipsis- Papel Munken Lynx Rough - 150 exemplares numerados e assinados.
Onde adquirir: editora.olhave.com.br
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SENTINELA > Katia Kuwabara
Sentinela (Ed. Olhavê, 2024) da paulista Katia Kuwabara é uma publicação cujo o conteúdo registra fragmentos de passagens da autora por regiões gélidas e de vastidão inóspita fotografadas na cordilheira dos Andes, partindo de Mendoza, Argentina e na Islândia em lugares como Reykjavik e as fontes termais de Deildartunguhver. Segundo a editora pernambucana Georgia Quintas, "Um caminhar sem rumo pelo qual, através da edição, começam-se a costurar redes e friccionar circunstâncias." Estas passíveis de causar ruídos e ecos autônomos, a ganhar um corpo performativo, onde a fotógrafa trata a natureza como uma metáfora, preenchida com suas histórias de caráter mais ontológico que paisagístico, que esperam de nosso olhar uma troca, completa Quintas.
O livro não abdica da imagem como fonte de beleza, entretanto ao leitor cabe "penetrar" nessa grandiosidade visual de uma maneira metafísica para alcançar a profundidade proposta pela fotógrafa. São como acordes formatados que tomam o lugar do "heroísmo" encontrado na pintura e na literatura do período Romântico que nos remete às telas pintadas pelo alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) ou mais recentemente na obra do paulistano Caio Reisewitz e sua influência dos fotógrafos viajantes do século XIX.
Para Georgia Quintas "Os fluxos de investigação e de reverência à natureza ampliam os limites do imaginário. A paisagem convoca mergulhos profundos de reflexão ou simplesmente o êxtase da experiência. Sob diferentes temperaturas e sopros dos ventos, o olhar tenta explorar e traduzir todo o encantamento e sensações contidas naquele exato momento. Faltam palavras para nomear o horizonte, fica a imagem de que a solidez pode ser um sempre a definir-se."
A parceria entre curadora e fotógrafa já tem uma década desde que começaram a alinhavar suas produções. Neste caso, lidando com o ar rarefeito dos lugares, maturando a relação mais ontológica que descarta o tumulto das cidades, baixando a rotação da experiência vivida para que, o que foi fotografado fique retido na memória pela história que fragmenta os horizontes, uma duplicidade da arte e da natureza, como me conta Katia Kuwabara.
O Romantismo, uma orientação intelectual que caracterizou muitas obras de literatura, pintura, música, arquitetura, crítica e historiografia na civilização ocidental ao longo de um período do final do século XVIII a meados do século XIX. Um tempo que rejeitava a idealização e racionalidade que caracterizaram o Classicismo em geral e o Neoclassicismo do final do século XVIII em particular. Foi também, até certo ponto, uma reação contra o Iluminismo, o Racionalismo do século XVIII e o materialismo físico em geral. O Romantismo enfatizou o individual, o subjetivo, o irracional, o imaginativo, o pessoal, o espontâneo, o emocional, o visionário e o transcendental.
É o que Sentinela nos propõe. Porém, distante do que poderia ser a monocórdica sucessão de imagens com uma palete claríssima e melancólica, ao propor ao leitor a atenção de seus belos detalhes carregados de subjetividade, espontâneas e autorais. Não estamos vendo um livro de paisagens, e sim de sentimentos, como em uma tradução, certamente carregada de características de apreciação mais profunda das belezas da natureza; uma exaltação geral da emoção sobre a razão e dos sentidos sobre o intelecto; Uma visão interior, para si mesma, mas compartilhada com o leitor em um exame mais aprofundado da personalidade humana e seus humores e potencialidades mentais; uma preocupação com o excepcional e expondo suas paixões e lutas internas; uma visão da artista como um criadora individual, cujo espírito é mais importante do que a adesão estrita às regras formais e procedimentos tradicionais; uma ênfase na imaginação como uma abertura à experiência transcendente e a verdade espiritual; e uma alusão ao remoto, o misterioso, o estranho e o oculto.
Na medida, a fotógrafa também propõe ao leitor a antagonização de uma visão distópica com uma narrativa de começo, meio e fim. Suas "montanhas" nos lembram o suíço Paul Klee (1879-1940) quando este afirma que "a arte torna o invisível, visível" ao percebemos as alegorias contidas nas imagens deste livro, em que leva em consideração a experiência emocional como prática intelectual ao incluir todos os componentes da semiótica ampliando o conceito para além de uma fotografia bonita.
Kuwabara torna-se então, na proposta do filósofo americano Charles Peirce (1839-1914)- em sua semiótica-, a intérprete, na medida em que leva em consideração o contexto em que os signos são produzidos e interpretados com pragmatismo. Primeiramente, há apenas unidade nas imagens. Assim é uma concepção de ser em sua totalidade ou completude, sem limites ou partes, e sem causa ou efeito, uma potencialidade pura e latente. As possibilidades são experimentadas e nos mostradas embutidas em uma atemporalidade: sua experiência emocional, transmitida ao leitor, que embora sendo inconclusivas, como a autora nos diz, provocam o entendimento mais ontológico.
Em segundo lugar, o modo de ser que está em relação a outra coisa, que inclui o indivíduo, a experiência, o fato, a existência e a ação-reação, que opera dentro do tempo descontínuo, que resume o desejo expresso da autora em suas imagens, onde a dimensão do tempo passado mostra-se : um certo evento ocorreu em um certo momento, antes de algum outro evento, que foi sua consequência, correspondendo à experiência prática.
Por fim, ela é a mediadora através do qual um primeiro e um segundo são colocados em relação, sejam eles os seus leitores que estão no nível da necessidade e, portanto, da predição. Categoricamente vislumbrando o campo do pensamento, da linguagem, da representação e do processo de semiose - ou a ação do signo que é definida como um processo fundamental que, a partir da percepção, da sua estrutura de imagens ontológicas- , mais do que a representação pura e simples de uma bela paisagem, criam a dinâmicas que modelam a cognição e cultura que torna a sua comunicação possível, além do valor intrínseco da arte que a fotógrafa nos apresenta.
Imagens © Katia Kuwabara. Texto © Juan Esteves
Edição, dípticos e tríptico: Georgia Quintas
Projeto gráfico e coordenação editorial: Alexandre Belém
Tratamento de imagem: Katia Kuwabara
Impressão: Gráfica Ipsis, edição de 250 exemplares numerados e assinados em papel Garda Pat Kiara. Capa dura
Para adquirir: editora.olhave.com.br
contato @olhave.com.br
* Leia sobre o primeiro livro de Katia Kuwabara, Vigília (Edições Olhavê, 2015)) em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/139794095461/branca-ligia-jardim-vig%C3%ADlia-katia
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QUE PAÍS É ESTE? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira 1964-1985

O paulistano Jorge Bodanzky aos 81 anos integra o cânone do cinema e da fotografia brasileira. Em Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira 1964-1985 ( Instituto Moreira Salles, 2024) é a primeira vez sua produção deste período é mostrada em uma grande exposição multimídia que exibe trechos dos sete filmes dirigido por ele no período, como Iracema: uma transa amazônica (1974), codireção do baiano Orlando Senna, Jari (1979) e Terceiro milênio (1980), dirigidos em parceria com o alemão Wolf Gauer. A seleção apresenta ainda fotografias e projeções em Super 8* que integram o acervo do IMS, entre outros materiais, acompanhados do livro homônimo.

Bodanzky me conta que é um recorte de todas as mídias que estava trabalhando naquela época, e muito da energia e versatilidade do filme Super 8 e da câmera fotográfica. Começou como fotógrafo e até hoje continua trabalhando simultaneamente com estes dois suportes sem distinguir um e outro. Para ele, a exposição mostra que suas fotografias dialogam com os seus filmes com câmeras cinematográficas complementadas com o Super 8. "Eu acho que a ideia da disposição de filme e fotografia juntos é mostrar como eu trabalho. Como que se vivia naquele tempo em função de terem passado 60 anos até hoje. O leitor conseguirá ver, principalmente os mais jovens, que tem um olhar crítico do período da ditadura militar."

Com a curadoria de Thyago Nogueira, coordenador de fotografia do IMS e assistência de Horrana de Kássia Santoz, curadora de pesquisa e ação interdisciplinar da Coleção Ivani e Jorge Yunes na Pinacoteca do Estado, o livro pode ser dividido em três partes: inicia com uma sequência de fotografias. Continua com texto e entrevista de Nogueira com o autor que situam a produção deste, com pesquisa de Ângelo Manjabosco e Mariana Baumgaertner do IMS; texto de Santoz e Luara Macari, artista e estagiária em curadoria do IMS. Textos da pesquisadora e professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFMG Cláudia Mesquita, do cineasta Zito Araújo e uma entrevista com o escritor Ailton Krenak, também executada pelo curador que juntamente com os dois pesquisadores elaborou a cronologia ilustrada. A relação da filmografia da exposição e termina com uma grande série de frames dos filmes projetados, sejam eles em Super 8 ou câmeras de mais recursos.

Com uma ampla produção visual dedicada à investigação da cultura popular e os conflitos do país, Jorge Bodanzky vem há décadas percorrendo o país registrando histórias de personagens e lutas sociais, principalmente as que aconteciam fora dos centros urbanos. Durante a ditadura militar, viajou para as regiões Norte e Nordeste, retratando a violência no campo e a devastação ambiental causadas pelas políticas desenvolvimentistas dos governos autoritários. Jorge enfrentou a censura e a falta de financiamento nacional, concebeu obras que questionavam a ideia do progresso propagandeada pela ditadura e mostravam a realidade do país, além de tensionar os limites entre o documentário e a ficção confirmam os organizadores.

A expografia foi montada para que o som do cinema simultaneamente proposto não interferisse em suas diferentes posições. Ambientes foram criados com suas particularidades sonoras de cada filme. Para o autor, “ Com as projeções no ambiente aberto você tem uma mente aberta e ao mesmo tempo você tem o som isolado dependendo da posição. Foi um grande desafio, mas aumentou a originalidade da exposição pois não precisa do fone de ouvido.” Para ele, o espectador encontra uma equivalência entre fotografias e os filmes em blocos temáticos entre os anos 1970 e início dos anos 1980. "Naquele tempo eu trabalhava muito para televisão alemã. Então antes, esses filmes foram coproduções com a Alemanha apesar de serem feitos no Brasil ou Estados Unidos a produção era de fora, inicialmente para programas da televisão. Posteriormente eu utilizei um filme ou outro em festivais para ser mais objetivo." revela Bodanzky.

Um dado importante que estimulou a sua carreira no cinema e fotografia pelo viés social foi sua entrada na recém criada Universidade de Brasília, no curso de Arquitetura em 1963, explica Thyago Nogueira, onde encontraria como professores a artista paulista Amélia Toledo (1926-2017) e os cariocas Luís Humberto (1934-2021), fotógrafo e Athos Bulcão (1918-2008), pintor e escultor, que estimularam sua criatividade, com uma câmera emprestada pela Universidade, seus primeiros passos na fotografia. Desta época já surgem ensaios documentais sobre a prostituição na região do Gama e a exploração mais gráfica como alto contraste e forma obliquas e sinuosas da capital, como explica o curador. Brasília tornou-se então o ponto de partida para percorrer o interior do Brasil, ao qual se dedicaria com mais frequência.

A curadora Horrana de Kássia Santoz discorre, como ela mesmo escreve, sobre os entrelaçamentos dos caminhos do cineasta, elaborando argumentos sobre a representação visual brasileira, ao sugerir que o cinema de Bodanzky "está em sintonia com os valores e as preocupações contemporâneos e retrata dilemas que estão em evidência." salientando que sua significativa obra perdura para além deste período. Para ela, o aparato de produção de Bodanzky é singular. " demonstrando que fazer um "cinema a quente" - expressão usada pela professora Cláudia Mesquita durante entrevista a Thyago Nogueira - com poucos equipamentos e que circulava em cineclubes e associações religiosas, em um contexto de extrema repressão, podia ser uma forma poderosa de resistir às perplexidades e as sucessivas incertezas de um país."

De fato, a publicação mostra experiências monocromáticas em alto contraste, da arquitetura da capital e imagens de movimentos da população como passeatas discutindo questões políticas em temas como a censura aplicada na época pelos militares, críticas ao então ministro do Planejamento, o cuiabano Roberto Campos (1917-2001) mais conhecido como "Bob Fields" pela oposição ao regime ditatorial; bem como imagens mais curiosas em cor, como alguém parecido com o beato cearense Padre Cícero ( Cícero Romão Batista 1844 - 1934), procissões acompanhadas por populares, arquiteturas vernaculares, vistas aéreas de Brasília ou de São Paulo; tomadas de cidades de dentro do carro e imagens do povo que nos lembram algumas feitas pelo fotógrafo húngaro Thomaz Farkas (1924-2011) durante a construção do distrito federal, além de registros de atos políticos de estrangeiros como o general Hugo Banzer Suárez (1926-2002), então presidente da Bolívia e comícios no Chile, entre outras atividades, quase sempre em registros documentais sem maneirismos fotográficos.

No bloco final do cinema, imagens de Distúrbio ( 1967) dos alemães Hans Dieter Müller (1909-1977) e Günther Hormann; Hilter IIIº Mundo (1968) do paulista José Agrippino de Paula (1937-2007) cineasta, escritor e dramaturgo; Compasso de Espera ( 1969) de Antunes Filho ( 1929-2019) conhecido diretor de teatro paulistano; O Profeta da Fome ( 1969) do paulista Maurice Capovilla (1936-2021); e frames de seus filmes em Super 8, de 1970 ou com sua direção como Living Theatre Detido no Brasil (1971) e Situação Cultural no Chile (1971) e Entrevista com o General Hugo Banzer Suárez, La Paz, Bolívia ( 1971) em parceria com o alemão Karl Brugger (1941-1984) correspondente estrangeiro alemão da rede ARD; Situação Cultural no Chile (1971) e talvez seu filme mais conhecido Iracema: Uma Transa Amazônica (1974) em parceria com o cineasta e escritor e jornalista baiano Orlando Senna, entre outros.

Assim como o genial Thomaz Farkas com sua "Caravana Farkas" iniciada no ano de 1964, dando início à produção de quatro documentários essenciais na cinematografia brasileira: Memórias do cangaço, Nossa escola de samba, Subterrâneos do futebol e Viramundo, o interesse de Bodanzky, em seu período posterior a este, amplia-se como cineasta e fotógrafo para uma visão mais humanista, pela abordagem mais próxima do fotojornalismo e da fotografia documental. "Esta visão passa a interagir com seus interesses estéticos e formais", como Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, refere-se ao primeiro quando escreveu em 2014 sobre o vasto acervo da instituição.

Bodanzky me conta que continua a fotografar e a filmar, mas adotando um celular. "Eu tenho os dois na mesma câmera, disse ele. "Fotografo sem filme sem nenhum preconceito. Agora é o que eu sinto, o que registra melhor aquilo que eu estou fazendo e muitas vezes uso os dois. Eu filmo e depois também tiro foto mas não como uma coisa urgente. É mais como registro, depois eu vejo o que eu uso e seleciono ou vice versa. Estou fotografando em filme também, mas eu não tenho preferência, eu tenho tenho prazer nos dois formatos. A oportunidade é mais importante naquele momento de filmar ou fotografar.", me diz o genial artista, durante a montagem de sua imperdível mostra que está em cartaz até dia 28 de julho deste ano na sede paulistana do IMS.

Imagens © Jorge Bodanzky. Texto © Juan Esteves
*O Super 8mm é um filme cinematográfico de tamanho pequeno, em formato cassette exclusivamente para uma câmera Kodak originalmente fabricada em 1965 para seu recém-introduzido formato de filme amador, que substituiu o formato de filme padrão de 8 mm
Uma curiosidade: "Que país é este?" é uma frase do filme “I compagni”dirigido pelo genial Mario Monicelli, de 1963. Marcello Mastroianni, agitador subversivo, chegando de trem a Turim bagunçada por uma greve, pergunta: Que país é este?? A que Folco Lulli retruca: Este é um país de m...
INFOS BÁSICAS:
Organização: Thyago Nogueira e Horrana de Kássia Santoz ( Assistência)
Textos: Thyago Nogueira. Horrana de Kássia, Luara Macari, Claudia Mesquita e Zito Araújo
Produção Editorial: Núcleo Editorial IMS
Projeto Gráfico: Alles Blau, Elisa Von Randow, Julia Mazagão e Yasmin Dejean ( Assistência)
Tratamento de imagems : Núcleo Digital IMS
Impressão: Gráfica Ipsis em papéis Munken Linx Rough, Eurobulk e Masterblank. Tiragem de 1500 exemplares.
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10 ANOS DE GUERRAS SEM FIM > GABRIEL CHAIM
O paraense Gabriel Chaim em seu livro 10 anos de guerras sem fim (Editora Vento Leste, 2024) mostra o horror que são as tragédias como uma guerra, mas também como as pessoas convivem com ela, em vestígios de vida e morte. No entanto, seus "bastidores" destes conflitos chegam a ser líricos em sua palete. Dificil não lembrar do aragonês Francisco Goya (1746-1828) com sua pintura Três de maio, de 1808, quando este artista nao mostra a morte imediata mas sim o medo de quem vai morrer; o londrino William Turner (1775-1851), com seu The Slave Ship, (originalmente Slavers Throwing overboard the Dead and Dying—Typhon coming on), exibido em 1840 na Royal Academy, ou mais recentemente o alemão Felix Nussbaum (1901-1944) , de origem judaica, em sua tela Fear (autorretrato com sua sobrinha Marianne), de 1941, revelando o terror sofrido pelos judeus no holocausto.
Chaim produz uma imagem de caráter háptico e mostra seu périplo pela nossa triste história contemporânea (em andamento) abordando o Estado Islâmico ( 2015-2020), o califado que impõe o terror no Oriente Médio, Síria ( 2013), Iêmen ( 2018), Líbia ( 2019), Nagorno-Karabakh (2020), Ucrânia ( 2022) e Israel, Cisordânia e Gaza ( 2023). Imagens que foram publicadas, junto com seus filmes em vários países do mundo. Como explica o jornalista paulistano Fernando Costa Netto, outro veterano no registro dos conflitos mundiais ( leia aqui o livro Maybe Airlines Sarajevo, (Garoa Livros, 2021) em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/648095913040052224/maybe-airlines-sarajevo-fernando-costa-netto) "Um dos traços de seu trabalho é de reconhecer e capturar certos instantes em que a realidade começa a parecer ficção."
O fotógrafo aqui diferencia-se de outros nomes da fotografia mundial como o americano James Nachtwey, cuja "exposição" dos conflitos muitas vezes beira o grotesco, como em Deeds of War ( Thames & Hudson, 1989) ou em Inferno ( Phaidon Press, 1999). As imagens de Chaim nos comovem por um sentido mais amplo, ainda que não deixem de ser muito contundentes, mas especiais por não serem sensacionalistas. A começar pela pouca amostragem de corpos de vítimas, embora as suas existentes possam recordar ocasiões registradas em fotografias icônicas como a feita pelo soldado americano Ron Haeberle do massacre de Mỹ Lai ocorrido em 1968 e que vitimou cerca de 500 civis sul-vietnamitas, sendo 182 mulheres (17 grávidas) e 173 crianças, executados por soldados do exército americano na Guerra do Vietnã. Ou mais remotamente as cenas produzidas pelo inglês Roger Fenton (1819-1869), impressas em albuminas, da Gerra da Criméia em 1855, pela sua palete semelhante que representam uma das primeiras tentativas sistemáticas de documentar uma guerra por meio da fotografia.
Gabriel Chaim é mais refinado - e de certa forma mais sutil, quando nos comove de uma outra maneira. Basta ver o "still" da capa para entender: Um rifle apoiado em uma poltrona, ou como por exemplo um jogador de futebol pulando que podemos confundir à primeira vista como tendo levado um tiro em Taiz, no Iêmen desfazendo a lógica do assombro; A mulher armada que observa dois corpos de extremistas do Estado Islâmico aos seus pés, após um combate com a unidade feminina de proteção as mulheres no deserto de Raqqa na Síria. O médico curdo que trata um extremista debilitado nos meses do cerco a Bhagouz. al -Hassakah na Síria, registrados em tons quentes.
A dificuldade para fotografar nos conflitos é imensa. Como explica Fernando Costa Netto, são horas para se chegar no momento exato da fotografia. "Às vezes dias de espera, angústia e esforço até chegar nos becos tensos de Aleppo, na Síria ou caminhar pelas perigosas ruas de Kharkiv, na Ucrânia." Quem acompanha o noticiário pode constatar o recorde sinistro de mortes de jornalistas no conflito em Gaza. Não basta apenas fotografar para estar equilibrado psicologicamente entrando nestes lugares, além de uma intricada logística para movimentar-se da maneira mais rápida que a imprensa contemporânea eletrônica exige. A jornalista e editora paulista Ana Celia Aschenbach que escreve o posfácio relata uma espera de quase dois meses para ter a permissão para documentar as forças israelenses em Gaza. Segundo ela, foi o primeiro estrangeiro a ter essa possibilidade.
Lembramos de dois filósofos franceses: Paul Virilio (1932-2018) com sua "dromologia"o impacto da velocidade na sociedade e Georges Bataille (1897-1967) e suas teorias da visão, da imagem e da destruição, pensando em um certo ocularcentrismo. A proximidade com os corpos antagonizando à visibilidade, o que anteriormente encontrava-se fora do nosso campo de visão, até chegarmos aos mísseis de cruzeiro usados pela primeira vez na Guerra do Golfo em 1991, que levou-nos não só a uma descorporificação mas a desmaterialização contínua do observador, mas também um atrofiamento da imaginação e consequente destruição da consolidação da memória natural, como explica o ensaísta lisboeta José A. Bragança de Miranda em sua Teoria da Cultura (Edições Século XXI, 2002).
Podemos fazer um paralelo à arte do irlandês Francis Bacon (1909-1992) a partir do pensador francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). É difícil saber onde começa a pintura e onde inicia a massa pictórica. Onde começa o homem naquele homem pintado, como encontramos na fenomenologia da percepção em O olho e o espírito ( Cosac Naify, 2013). O que Gabriel Chaim faz em seu livro, não é apenas uma representação das pessoas que sofrem no conflito mas sim a procura por lhes conceder uma visão mais digna através de seu estilo fotográfico, aproximando-se grosso modo de uma écfrase, quando pensamos na retórica de sua descrição do que são estas guerras.
Em A History of the World in 10 1⁄2 chapters (Jonathan Cape, 1089) no quinto capítulo "O Naufrágio" o ensaísta inglês Julian Barnes trata da catástrofe real do naufrágio do veleiro Medusa, avaliando-a pela pintura do francês Théodore Géricault (1791-1824). Pelo seu olhar, ele aprofunda-se e a avalia criticamente usando suas habilidades investigativas, procurando preencher as lacunas por meio de várias evidências. Ainda que posteriormente tenha sofrido críticas quanto a ignorar os negros que estavam na balsa, seu enredo é que só enxergamos a intensidade de uma tragédia quando a vemos representada pela arte. É o que encontramos nestes 10 anos de guerra sem fim, de Gabriel Chaim, que nos instiga a pensar o antes e o depois.
O fotógrafo transcende o modelo canônico da representação do corpo. Em sua epígrafe "Sentidos" ele ecoa: o cheiro da pólvora queimada dos tiros sequenciais da AK 47 enquanto zumbidos de balas cruzam o ar em sua direção. Brincadeiras e risadas confundem-se com gritos pedindo água entre estrondos perturbadores dos ataques aéreos... A preparar o leitor para o que vem pelas 248 páginas, a grande maioria em cores. Em suas narrativas para cada lugar que esteve Chaim escreve: "Apesar de não ter me exposto tanto, a cobertura da guerra entre Israel e Palestina foi a mais difícil da minha carreira..."
No último capítulo dedicado a Israel/ Cisjordânia/ Gaza, 2023, ele continua: "Uma polarização talvez nunca vista antes e jornalistas demonizados. De um lado, civis brutalmente assassinados pelo grupo Hamas. De outro, civis dizimados por bombardeios israelenses. A guerra em Gaza, sobretudo, mostra que não existem mais limites para abater o oponente e isso irá levar a um patamar mais trágico ainda guerras futuras caso os senhores de guerra decidam seguir pelo mesmo caminho..." Uma espécie de profecia amparada por suas imagens.
Fotojornalistas retratam o que é visto por eles. Claro, com algumas ressalvas onde a realidade foi deturpada por fotógrafos e editores, como vimos no fatídico 8 de janeiro no Brasil e em outras diversas ocasiões recentes mundo afora. Nesta década percorrida por Gabriel Chaim, como escrito por Fernando Costa Netto em seu prefácio, este livro "consagra o fotógrafo como um dos mais originais e corajosos profissionais da fotografia brasileira e mundial," Seus relatos controversos e incômodos são o que nós precisamos, assim como seu testemunho, pois é a missão do documental, contínua Costa Netto, e podemos acrescentar, do fotojornalismo que mostra os fatos como eles são. "até para que não sejam deturpados mais tarde."
Imagens © Gabriel Chaim Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Editora Vento Leste
Publisher: Mônica Schalka
Fotografias e texto: Gabriel Chaim
Tratamento das imagens: Marcelo Lerner/ Giclée Fine Art Print
Curadoria e texto: Fernando Costa Netto
Texto/posfácio Ana Celia Aschenbach
Projeto gráfico: Ciro Girard
Coordenação editorial: Heloisa Vasconcellos
Edição bilíngue: Inglês/ Português
Impressão: Leograf- 1000 exemplares em brochura.
Onde adquirir: https://www.ventoleste.com/produto/10-anos-de-guerras-sem-fim-31
*Lançamento dia 10 de junho, às 19hs, na Livraria da Travessa,
Rua . Visconde de Pirajá, 572 - Ipanema, no Rio de Janeiro,
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COISAS QUE EU VI
Memórias de Claudio Edinger
Damien Zanone, professor de literatura francesa na Université Catholique de Louvain, em seu livro Écrire son temps Les Mémoires en France de 1815 à 1848 (Presses Universitaires de Lyon, 2021) escreve que espera-se de um memorialista que partilhe uma experiência exemplar da história contemporânea, uma exemplaridade que a sua voz constrói na representação da relação entre a particularidade de uma existência individual e a generalidade da história coletiva. Para ele é uma condição habitual do texto deste escritor que ele tenha vivido os seus próprios dias de uma forma notável, quer como testemunha, quer como ator em acontecimentos decisivos.
O memorialista pensa nos aspectos que marcaram os traços dominantes de sua geração e na forma como ele mesmo os encarnou. A sua abordagem à escrita encontra-se no cruzamento entre narrativas coletivas e individuais, descobrindo a solidariedade entre ambas. É o que encontramos aqui neste livro de pouco mais de 300 páginas Coisas que eu vi-Memórias de Claudio Edinger ( Ed. Vento Leste, 2024) do consagrado fotógrafo carioca radicado em São Paulo que celebram uma vivência de cerca de 50 anos como profissional da imagem e, acima de tudo, do seu viés como escritor já revelado em alguns livros como História da fotografia autoral e a pintura moderna (Ipsis, 2019) [ leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/182560838046/hist%C3%B3ria-da-fotografia-autoral-e-a-pintura ] um amplo trabalho de pesquisa ou seu romance Um Swami no Rio ( Annablume,2009) entre seus mais de quase 30 livros publicados no Brasil e no exterior.

Tal experiência consagrada em prêmios importantes como o Leica Medal of Excellence de 1983 e 1985, o Hasselblad de 2011 ou sua permanência em coleções que vão do Museu de Arte de São Paulo ( MASP) ao Los Angeles County Museum ( LACMA) entre as mais de 100 instituições e colecionadores que abrigam sua obra tornam o livro de uma significância ímpar, não somente para o aprofundamento na obra deste artista, mas sua contribuição essencial para o estudo da fotografia como um todo: imagens que reforçam seu talento e narrativas prazerosas que vão além de revelações pessoais, abarcando significativos momentos da história da fotografia.

Um rico conjunto de imagens e textos começa em 1975, com a documentação do Edifício Martinelli, icônico arranha-céu do centro histórico paulistano, após um pequeno incêndio. O fotógrafo então com 22 anos estava prestes a terminar sua graduação em Economia na presbiteriana Mackenzie e conversando com seu amigo, o sociólogo Lúcio Kowarick, ouviu deste a pesquisa sobre o lugar e ficou encantado. Termina em 2020 com a tragédia da pandemia da Covid-19, que resultou em um livro peculiar: Quarentena ( Ed.Vento Leste, 2022), uma série de retratos de conhecidos e amigos na maioria, tomados com um drone, mostrando o isolamento social deste período. [ leia aqui mais em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/679544661367570432/quarentena-isolamento-social-na-pandemia-de ].

O crítico e curador mineiro Agnaldo Farias, que assina o prefácio escreve que "Combinadas com uma profusão de imagens extraordinárias, as histórias vão se sucedendo: descrições de viagens e perambulações, experiências longas, curtas e curtíssimas, de naturezas bem distintas, como a cobertura da guerra de El Salvador, um período em Venice Beach, na Califórnia, afamado reduto beatnik, uma viagem espiritual pela Índia, incontáveis colaborações e encomendas, além de comentários agudos sobre a natureza técnica e estética fotográfica. O texto finda com a renovação dos laços com o Brasil (sorte nossa!) e com a lúcida defesa do foco seletivo, recurso fotográfico do qual Edinger é um mestre consumado e marca registrada de sua produção recente."

De 1976, quando Edinger vai para Nova York, onde ficaria por 20 anos, as imagens e os relatos são sobre os judeus hassídicos do Brooklyn. Ele lembra que já havia tentado mostrar seu trabalho do Martinelli para Cornell Capa, então diretor do recém criado International Center of Photography (ICP) mas foi atendido por uma assistente que perguntou-lhe onde ficava São Paulo, uma pergunta típica, a qual ele responde com graça dizendo que ficava na Argentina. "Ela não deu importância e olhou as imagens sem interesse, o que fez com que ele saísse de lá magoado. Mas não podia reclamar: estava em Nova York, preparado para passar um ano visitando museus e as revistas como a Life e a Look" conta o fotógrafo. Saiu pelas ruas e achou interessante os judeus ortodoxos que ilustram este período, ou capítulo. A narrativa é uma lição para os neófitos que acham que já sabem tudo e que ignoram que o caminho é árduo, além de uma boa história sobre estes conhecidos e peculiares personagens que habitam a cidade e de como conheceu fotógrafos como Garry Winogrand (1928-1984), Henri-Cartier Bresson (1908-2004), André Kertész (1894-1985), Bruce Davidson, Mary Ellen Mark (1940-2015), Alex Webb, Eugene Smith. (1918-1978), "que perambulavam pela cidade" ajudaram-no em sua formação.

Chelsea 1978 é um capítulo que mostra como o fotógrafo chegou a um de seus melhores livros, The Chelsea Hotel ( Abbeville Press, 1984) ainda jovem. A publicação ganhou uma reedição este ano. O trabalho é um apanhado de retratos de artistas peculiares, que como o fotógrafo moravam no hotel. Os meandros desse período são expostos em uma narrativa bem humorada como seus personagens. Além de memorialista é também um raconteur.
Mas nem tudo era viver em meio de uma cultura alternativa e Edinger foi parar no conflito de El Salvador em 1983, um assigment para a revista Isto É. Felizmente um breve registro de um fotógrafo cosmopolita em meio a barbárie da América Latina, que serviu de intervalo para retornar aos excêntricos, desta vez em Venice Beach, uma praia de Los Angeles. que segundo ele era "quatro quilômetros com um calçadão onde artistas, músicos, mímicos, malabaristas e malucos de todas as vertentes se apresentavam diariamente." O resultado foi outro belo livro, Venice Beach ( Abbeville Press,1985). Duas experiências com uma câmera de pequeno formato, 35mm, que lhe dava certa agilidade e frescor, anos antes de aderir ao médio e grande formato em 4X5 polegadas, que adotaria por alguns anos até o advento da digital de qualidade.
O fotógrafo não hesita em contar suas memórias mais dramáticas como a série feita no Hospital Psiquiátrico do Juquery, de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo, de 1989-1990. Publicação excepcional e produzida em médio formato, que exigia um relacionamento maior do fotógrafo e seus personagens. Nesta série que também virou livro, Loucura -Madness - DBA, DAP, Dewi Lewis, 1997) uma contundente amostra do sistema psiquiátrico brasileiro traz também o relato de uma conexão mais íntima, com sua avó, que nos últimos anos de vida, provavelmente, padeceu do Mal de Alzheimer. Mais uma vez, Edinger mostra o trabalho para Cornell Capa, que tinha gostado de suas imagens dos judeus novaiorquinos tendo como resposta " E quem é que vai querer ver isso?". Ironicamente, o trabalho ganhou o Prêmio Ernst Haas e foi finalista do W.Eugene Smith Grant. Hoje as imagens estão na Coleção da Maison Européenne de la Photographie, em Paris e da do MASP e do LACMA.
No mesmo ano do Juquery , Edinger pega outro assigment do New York Times, para uma matéria sobre o carnaval no Rio de Janeiro que resultaria no livro Carnaval (DBA, Dewi Lewis, DAP 1996) com imagens em cor e em preto e branco, com uma história que passa pela Favela da Rocinha e pelas praias do Rio. Segundo ele, foram cinco anos para entender o que era o carnaval e a relação dele com as pessoas. O livro é um tratado antropológico visual por excelência. Eclético, Edinger continua sua saga indo para Habana, em Cuba, onde o resultado tornou-se mais um livro Old Havana (DBA, DAP, Dewi Lewis, Editions Stemmle 1997) que revela a beleza e a resiliência cubana da pós -revolução.
Os bastidores de retratos feitos para inúmeras publicações do exterior e no Brasil de 1986 a 2000 mostram versatilidade e conhecimento de seus personagens, elementos essenciais para execução dos mesmos, onde o leitor que gosta do gênero ou o fotógrafo iniciante poderá aprender muito. De fato, a maioria dos textos não deixa de ser didática, um pouco da conhecida generosidade do autor.
Nova York 1994-2000, é um capítulo importante que mostra um trabalho único feito em 6X6 cm, já com vestígios de um roteiro para um foco mais seletivo que resume sua obra nos dias de hoje: o belíssimo livro Cityscapes (DBA, 2001) quando ele revela que seu tempo na cidade está acabando. O fotógrafo então terminava seu período como professor no ICP, chamado "O projeto fotográfico", o qual ministra até hoje pelos festivais brasileiros. Ele considera esta série autobiográfica e faz uma boa recomendação ao leitor: "Fotografar o que conhecemos é muito mais fácil! E cada um vê a cidade de uma forma. O segredo é fotografar a sua."
Daí em diante, o portfólio é iniciado por outro belo livro Rio ( Rio - DBA 2003) uma ode monocromática e poética à cidade onde nasceu. Momentos em que o leitor menos informado na técnica fotográfica oferecida pelo uso de negativos em grande formato pode aprender muito, mostrando que os tempos como docente nos Estados Unidos marcam a sua história. Segue com uma série de livros que o caracterizam até seu momento contemporâneo como São Paulo, {DBA 2009); Sertão da Bahia de Bom Jesus a Milagres (BEI, 2012); O Paradoxo do Olhar, (Editora Madalena, 2015) e Machina Mundi ( Bazar do Tempo, 2017) entre tantos que desdobraram-se em outras edições relacionadas ao "Paradoxo" das imagens e a "Machina Mundi" que move sua vida. Publicações alimentadas por sua curiosidade em lugares como a Amazônia ou cidades europeias de Santa Catarina, capturas espetaculares das paisagens brasileiras bem como o caos da urbanidade. Imagens aéreas, seja pelo uso de um helicóptero até chegar no uso do drone, do qual tornou-se exímio piloto.
Claudio Edinger explica de maneira filosófica que "A fotografia aérea nos possibilita o distanciamento vital para refletirmos sobre a relatividade de todas as coisas- a insignificância dos maiores prédios, matas, rodovias e monumentos. Como somos, na verdade, irrelevantes diante de nosso microplaneta, que é parte de um bilhão de sistemas solares, dentro de um bilhão de galáxias. Nada importa. Tudo é ordinário."
A curiosidade, o desejo pelo conhecimento são duas características de um bom pensador e de um artista virtuoso. Junto, temos sua honestidade e generosidade para com o próximo e para consigo mesmo. Edinger dá um spoiler já no início de suas memórias relativo a sua personalidade: " Há mais de cinquenta anos ando caçando minha identidade. Sou carioca, criado em São Paulo, educado em Nova York, filho de mãe russa e pai alemão, economista que fotografa e escreve, judeu cercado de amigos católicos, iogue que adora o budismo e os sufis... Nunca consegui encontrar o meu lugar, e meu trabalho é essa busca inesgotável." Para quem acha que já entendeu e sabe o que é a fotografia e a vida, melhor ler este livro.
Imagens © Claudio Edinger. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Coordenação editorial: Mônica Schalka
Editora executiva: Heloísa Vasconcellos
Direção de Arte: Claudio Edinger
Coordenação de estúdio: Gabriel Guarany
Arte Final: Fernando Moser
Editor assistente: Cauê Siqueira Cardoso
Tratamento de imagens: Gabriel Guarany
Impressão e acabamento: Ipsis Gráfica
aquisição: ventoleste.com
* LANÇAMENTO DIA 18 de MAIO - 15 hs- CONVERSA COM O AUTOR E O CURADOR AGNALDO FARIAS 16 hs
no MUSEU DA IMAGEM E DO SOM,MIS Av. Europa, 158.
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ARTISTAS FOTÓGRAFAS EM ALAGOAS >
TERRITÓRIOS POÉTICOS EM EXPANSÃO
ORGANIZAÇÃO KARLA MELANI > CURADORIA MARCIA MELLO
fotografia acima © Amanda Nascimento
Cerca de 14 fotógrafas foram selecionadas pela curadora carioca Marcia Mello para compor os ensaios do livro Artistas fotógrafas em Alagoas-Territórios poéticos em expansão ( Melani Editora/ Publisher, 2022), organizado pela artista visual e curadora alagoana Karla Melani, que também é responsável pela coordenação editorial, lançado em março deste ano no Festival Foto em Pauta Tiradentes. A reunião das autoras é resultado de uma convocatória exclusiva para mulheres nascidas no estado de Alagoas ou lá residentes.
Fotografia acima © Andréa Guido
Segundo Karla Melani, "a criação desta publicação feminina e coletiva, como um atravessamento de narrativas imagéticas resvalando inquietações, estilos e personalidades tão distintas entre si, se expressam em nossas poéticas individuais.
fotografia acima © Camila Cavalcante
Entretanto, esses territórios poéticos estão além da individualidade e da visualidade dos ensaios fotográficos oriundos de dilemas íntimos ou públicos, tensionados entre contemplação, reflexão, denúncia e indignação." Ela continua: "Este livro torna possível o surgimento de Melani Editora/Publisher e inaugura o selo editorial Métis, elaborado para incentivar publicações de mulheres artistas visuais como continuidade desta iniciativa, em busca de autonomia no cenário das artes visuais na região Nordeste do Brasil.
Fotografia acima © Cristal Luz
Entre as autoras estão Amanda Nascimento, artista visual e docente nascida em Maceió e radicada em Buenos Aires desde 2011; Andréa Guido, que se denomina paulista-alagoana; Camila Cavalcante, pesquisadora com foco em fotografia, feminismo e ativismo, que reside no Reino Unido; Cristal Luz, poeta visual alagoana; Fernanda Rechenberg, antropóloga pesquisadora no campo da imagem; Gabi Coelho, fotógrafa e artista visual alagoana; Janayna Ávila, professora da Universidade Federal de Alagoas; Jul Souza, artista. independente; Karla Melani, doutora em Processos de Criação em Artes Visuais pela UFBA; Luna Gavazza, artista ativista atuante desde 2013 em Alagoas.
Fotografia acima © Fernanda Rechenberg
Também participam da publicação Maíra Gamarra, fotógrafa, criadora e curadora do Mira Latina, laboratório de projetos; Mik Moreira, documentarista; Minnie Santos, fotógrafa e jornalista integrante do grupo Punho, coletivo de mulheres da imagem de Alagoas; Renata Baracho, jornalista e fotógrafa que trabalha também com cinema, que completam as autoras do livro, relacionadas com projetos ativistas, a universidade seja no viés docente, de pesquisa ou em suas graduações e pós graduações, dedicadas a questões que envolvem a mulher no mundo contemporâneo, e que já participaram de vários livros e exposições.
Fotografia acima © Gabi Coelho
Existem muitas fotógrafas, cineastas, críticas, pesquisadoras. professoras, artistas e jornalistas dos séculos XIX e XX e nestas mais de duas décadas do XXI que fizeram contribuições notáveis na área e já celebradas em publicações como History of Women Photographers (Abeville Press, 2000) da americana Naomi Rosenblum ( 1925-2021) um apanhado mundial das importantes fotógrafas, ou na mais modesta, mas não menos importante, Fotógrafas Brasileiras Imagem Substantiva (Grifo, 2021) organizado pela professora e pesquisadora paulista Yara Schreiber Dines, que mostra o trabalho de 60 fotógrafas que atuaram no Brasil, da arte ao documental, passando pelo fotojornalismo e outras atividades entre os anos 1910 até os dias de hoje [ leia aqui review neste blog em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/674656372846133248/fot%C3%B3grafas-brasileiras-imagem-substantiva-org]. Artistas Fotógrafas em Alagoas é, tal como as anteriores, um recorte muito importante e necessário no mapeamento da fotografia mais contemporânea.
Fotografia acima © Janayna Ávila
As diferentes abordagens dos trabalhos publicados é um dos aspectos mais interessantes a expor uma gama multidisciplinar de pensamentos da imagem na produção feminina contemporânea. Como escreve a curadora Marcia Mello: "A fotografia tem uma natureza multifacetada; possibilita pesquisas de caráter documental e também vivências subjetivas, contemplando as mais variadas áreas de conhecimento, Ciência e arte, poesia e prosa, sonho e realidade se entrelaçam em faturas que navegam em visualidades de despojamento e vigor entre tradições e rupturas estéticas." Para ela as fotógrafas evidenciam esta pluralidade, em contrapartida ao histórico espaço ocupado pela produção masculina.
Fotografia acima © Jul Souza
Mas, não se trata apenas de um redimensionamento a evitar esta dicotomia, mas sim da afirmação de suas propostas substanciadas no pensamento mais sério, estruturado por pesquisas de longo prazo, o que é o oposto do que vemos cotidianamente exposto em produções rasas e desinteressantes. Nestes "territórios poéticos em expansão" notamos resultados de uma metodologia, no sentido proposto pelo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em seu Tratado Lógico-filosófico, para qual tem um pensamento duplo, tanto em um sentido físico ( o que é intrínseco à fotografia) quanto conceitual, sendo este utilizado no pensamento, como algo não definitivo - não feito para ser memorizado mas pensado.
Fotografia acima © Karla Melani
Do início ao fim, notamos uma delicada fatura curatorial na reunião das 14 autoras: o paradoxo do desfoque "definido" e do movimento físico e conceitual, tanto no trabalho de Amanda Nascimento quanto nos de Luna Gavazza e Cristal Luz. A aproximação desta à Camila Cavalcanti. A primeira de maneira mais poética e esta última mais contundente em sua construção, na questão da abordagem de ambas pelo ativismo, seja ele feminista levantando a questão do aborto ou a afirmação da diversidade de gênero.
Fotografia acima © Luna Gavazza
O antropológico faz-se presente nas questões mostradas por Jul Souza, Fernanda Rechenberg e Gabi Coêlho cujas propostas fragmentam as imagens, seja apenas no plano construtivo e direto das duas primeiras ou no mais artístico e performático, como desta última, que em certas imagens nos lembra a genial portuguesa Helena Almeida (1934-2018).
Fotografia acima © Maíra Gamarra
Para a ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004) fotografar é criar uma relação voyeurística crônica com o mundo. O que podemos entender como uma forma de ver este mundo e o nosso lugar nele, ou melhor, de maneira ainda mais pessoal e como nos expomos a este mundo. Caso das fotógrafas Mik Moreira e Minnie Santos, ambas a nos remeter ao ritualístico- guardadas as proporções- de Miguel Rio Branco e Mario Cravo Neto (1947-2009), tanto na cor como no preto e branco.
Fotografia acima © Mik Moreira
A arquitetura, como não poderia deixar de ser está presente em dois formatos nos trabalhos de Janayna Ávila, de viés mais crítico e contundente, tendo a cor como forma, uma espécie de antítese do trabalho lírico Pinturas e Platibandas, dos anos 1970, da genial carioca Anna Mariani (1935-2022), Pinturas e Platibandas dos anos 1970. Ou mais construído como na obra de Luna Cavazza que possibilitam, conforme explica a curadora, o amálgama com o humano. Ainda, que em ambas, a ideia deste elemento seja intrínseca, mesmo que não visível, afinal o constructo arquitetônico é essencialmente humanista.
Fotografia acima © Minnie Santos
Assim como a arquitetura, a paisagem vernacular e seus detalhes, é também representada por Andrea Guido e Maíra Gamarra, unindo os horizontes alagoano e boliviano, uma abordagem latina que embora representada por lugares antagônicos são convergentes no cotidiano e se estruturam pelo poético e o documental, como afirma Marcia Mello. A elas a ideia da natureza representada por Karla Melani é também mais conceitual na formatação de uma "galáxia" composta com ervas como o alecrim, manjericão, Sálvia, entre outras em um poético tableau, embelezado pelo clássico chiaroscuro, na técnica da escanografia artística. A opção pelos chamados modos alternativos completa a junção de arte e documento na contemporaneidade, assim como podemos notar no Herbário Baldio ( Fotô Editorial, 2019), da paulistana Ana Lúcia Mariz. [ Leia aqui review sobre este livro em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/185680834281/herb%C3%A1rio-baldio-ana-lucia-mariz ].
Fotografia acima © Renata Baracho
Imagens © das autoras. Texto © Juan Esteves
Infos básicas
Curadoria: Marcia Mello
Organização e Coordenação editorial: Karla Melani
Produtora: Gabi Coelho
Projeto gráfico: Flávia Correa/ Bombix Art Studio
Edição Bilingue Português e espanhol
Impressão: Gráfica Santa Marta - Papel Couchê fosco, 800 exemplares, capa dura.
contato:
melani.editora,[email protected]
melanieditorapublisher.com
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CHAPADA DOS VEADEIROS- Povos dos Campos Gerais > ANDRÉ DIB
Algumas décadas foram necessárias para que o livro Ansel Adams in Color ( Little, Brown and Company, 1993) do renomado fotógrafo americano tenha sido publicado. O californiano Adams (1902-1984) embora consagrado no fine art do preto e branco em suas imagens da paisagem americana começou a fotografar em cor ainda em 1935 quando da invenção do filme Kodachrome. Já o fotógrafo André Dib, com seu Chapada dos Veadeiros-Povos dos Campos Gerais ( Ed. Origem, 2022), recentemente lançado no Festival Foto em Pauta de Tiradentes foi mais breve ao passar da cor, da qual é um virtuose para o monocromatismo.
Mineiro de Uberaba, radicado na Chapada dos Veadeiros desde 2002, Dib dedica-se a imagem ambiental essencialmente explorando lugares de difícil acesso fotografando paisagens, a fauna e flora cultivando o esplendor da cor destes ambientes como raros fotógrafos do gênero, caso do seu livro Chapada dos Veadeiros (Ed.Origem, 2020) [ leia aqui review em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/616566807556407296/chapada-dos-veadeiros-andr%C3%A9-dib ], publicação esta que sustenta o livro atual, na qual a inserção humana faz-se mais presente, juntamente com a arrojada opção pelo preto e branco.
Dib confessa que após ver uma exposição do também mineiro Sebastião Salgado, a mesma chancelou a sua ideia- que já era forte em seu pensamento há algum tempo- de optar pelo preto e branco. Afinal, já havia publicado o livro acima em cor, entre outros tantos, frutos do seu vasto trabalho que já lhe rendeu mais de 15 prêmios no Brasil e no exterior. Entretanto, esta "nova" Chapada, é estruturada na impactante presença humana, expressa em belíssimos retratos que ganharam relevância pela sua edição, que traz o tratamento das imagens executado pelo fotógrafo paulista Valdemir Cunha, também editor e publisher do livro, amparadas pelas paisagens, que agora nos remetem ao renomado Adams.
Em texto introdutório, o professor Adilson Fernando Franzin, doutor em Letras pela Université Paris Sorbonne e pela Universidade de São Paulo ( USP) enfatiza a ideia dos retratos: "Gentes do mato e de grota, de vãos e veredas, de capinzais e roças; eis os povos dos campos gerais em permanente simbiose com o Cerrado, o segundo maior bioma da América do Sul." Para ele, "é valido lembrar que os habitantes destas cercanias,- a um só tempo, reais e míticas- formam a incontornável fonte de inspiração e a matéria viva a que lançou mão certo gigante das veredas para compor suas fabulosas histórias que percorreram todos os quadrantes do mundo. " Um chamado João" a quem Carlos Drumond de Andrade, com reverência, indagou num poema sobre o escritor que misticamente "guardava rios no bolso".
Acerta Franzin na analogia a Guimarães Rosa (1908-1967). Os personagens de Dib são nascidos desta literatura assim como a literatura nasce deles. Não há como deixar de lembrar da inglesa Maureen Bisilliat com seu A João Guimarães Rosa ( Gráficos Brunner, 1979). Esta "dramaturgia" já faz algum tempo que é representada por imagens em outros livros. No entanto, poucas tem a relevância destas.
Para muitos artistas, o apelo de fotografar em preto e branco é, simplesmente, uma questão emocional. Não é preciso ser um crítico de arte para perceber que as fotos em preto e branco costumam ser mais dramáticas do que as coloridas. Seus tons escuros e contrastes profundos muitas vezes instilam uma aura quase temperamental ou misteriosa no trabalho. Esse tipo de teatralidade é difícil de reproduzir na fotografia colorida, ainda que esta obtenha algum sucesso. Além disso, os neurobiólogos provaram que algo na fotografia em preto e branco. Sejam as gamas tonais, os pretos ricos ou a luminosidade, atrai-nos psicologicamente.
Por décadas, o filme monocromático imperou na arte. Algo que vinha desde o advento do filme moderno na década de 1880, tempos em que os fotógrafos concentraram-se em dominar o comportamento "básico" da fotografia moderna. Foi somente na década de 1930 que começaram a explorar provisoriamente a fotografia colorida. Nos anos 1960, porém, o mundo da fotografia tornou-se uma explosão de cores com a invenção das câmeras instantâneas. Desde então, escolher a fotografia em preto e branco em vez da colorida tem sido uma escolha muito consciente. Por muitos anos, a fotografia em preto e branco foi o padrão escreveu o fotógrafo espanhol Samuel Cueto.
Certamente, ao olharmos a edição anterior de André Dib sobre a Chapada, vemos que a sua transição para o preto e branco não provocou perdas na exuberância da paisagem, pelo contráriio, esta "ressignificação" está plenamente alinhada com sua produção. O livro, como explica Franzin, " traz simultaneamente um registro sensível e crítico às questões ambientais mais urgentes da região, configurando-se como um brado em prol da natureza que ainda pulsa, instituindo, com engenho e arte, um libelo contra o obscurantismo e a ignorância de nossos dias, sem perder de vista a delicadeza do olhar que sonha não apenas o abraço telúrico em nacos de nuvens, mas também almeja a força transformadora, o alimento e a cura em mãos humanas." Daí a presença imprescindível dos retratos, que além de belos transmitem a contundência da resiliência do povo da região.
Povos dos Campos Gerais nos mostra igualmente o paradoxo da beleza transmitida entre a terra vibrante e aquela que é destruída, caracterizada aqui pelas imagens de incêndios de áreas imensas do Cerrado, tais como veredas e campos úmidos, ou como escreve o fotógrafo, zonas extremamente sensíveis que são degradadas de forma irreversível secando nascentes e mudando o comportamento do ciclo dos rios e de suas bacias hidrográficas. Segundo dados científicos recentes, estes acontecimentos constituem-se como uma das maiores causas da crise hídrica pela qual passamos nos últimos tempos.
Sendo uma espécie de cartografia do imaginário, como escreve o professor, o potencial narrativo de André Dib impressiona. Mas não somente um potencial natural que o fotógrafo possui, mas sendo uma marca de seu processo criativo e de uma concepção artística. "Não apenas na seara da fotografia documental, a qual prima por contar uma história qualquer, mas sua arte fotográfica, paradoxalmente, parece transcender o tempo e o espaço a tocar o mito num constante flerte com nossas páginas literárias mais genuínas." A publicação tem também um conjunto de detalhadas legendas e audiodrescrição, que ampliam a função da mesma.
Infos básicas:
Edição do livro e imagens: Valdemir Cunha
Editora: Ed. Origem
Direção de Arte: Valdemir Cunha
Projeto gráfico: Editora Origem
Texto: Adilson Fernandes Franzin - Edição bilingue português/inglês
Mapa: Pablo Aguiar Saboya
Editora Executiva: Ligia Fernandes.
Audiodescrição: Marisa Barbosa
Impressão: Pancrom, em Couché fosco, 1000 exemplares.
Projeto contemplado pelo Edital de fomento as artes visuais do Fundo de Arte e cultura do estado de Goiás.
Aquisição do livro editoraorigem.com.br
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DERRADEIRO > MARCO ALVES
Derradeiro (Edição do autor, 2023) do paulista Marco Alves deve ser visto e lido essencialmente como uma poesia visual pois transmite uma mensagem não só através desta linguagem mas também da verbal, associada pelos textos do escritor Diógenes Moura, pernambucano radicado em São Paulo e da curadora paulistana Rosely Nakagawa, que pelo seu conteúdo poético possibilita outros pontos de vista sobre esta mesma obra.
De acordo com o português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro (1932-2020), expoente da poesia concreta portuguesa e teórico da linguagem e das tecnologias de comunicação, a poesia visual aparece de uma forma consistente quatro vezes na história da arte ocidental: durante o período alexandrino, na renascença carolíngia, no período barroco e no século XX. Seguimos aqui nas tintas do barroco que nas imagens de Alves formatam seu estatuto visual com seus tons quentes e chiaroscuros predominantes, em matizes caquis, castanhos e bronzes, sob a introdução de Moura, pinceladas literárias que abrem o caminho para o leitor.
A poética do visual é um tipo de apresentação em que – extraindo-se certas distinções entre os gêneros textuais e outras formas de arte – o texto, as imagens e os símbolos são dispostos de modo que o elemento visual assume papel preponderante na obra, não dependendo de elementos verbais para ser caracterizado como poesia; entretanto aqui juntam-se harmoniosamente. Considerando o livro como essencialmente visual, em meio a dois códigos linguísticos distintos, tendo a palavra mais que um mero apêndice, a propor uma infinidade de leituras ao leitor e construindo uma intrincada rede intersemiótica.
Desde seu início o livro apresenta seu pequeno e específico grupo de personagens: poucas famílias de uma faixa etária mais vivida; ambientes na maioria avessos à tecnologia e às vezes precários em um espaço rural, de auto subsistência que misturam-se com suas atividades econômicas. Mostram-se altivos em expressões resilientes e em seus afazeres, como se o autor fizesse parte da família, o que é bem próximo da realidade, pelos mais de oito anos que Alves já esteve com seus retratados.
Com seu formato poético, Derradeiro articula em forma de arte o registro da vida rural do interior de Minas Gerais. É, segundo seu autor, resultado de um amplo documentário fotográfico sobre a permanência de um modo de vida antigo, simples, e ao mesmo tempo repleto de significados culturais. "São pessoas, animais, roupas, moradias, objetos, hábitos, sensações e sentimentos." No entanto, esclarece Alves, não trata apenas das resistência deste modo de vida, mas sim "sobre a acomodação possível de pessoas e comunidades a uma existência viável em que as tradições já se misturam a comportamentos contemporâneos."
A ideia de uma fotografia essencialmente vernacular, ou seja aquela que busca determinadas comunidades em espaços temporais específicos, foi antecipada já nos anos da Grande Depressão nos estados Unidos, pelos americanos Walker Evans (1903-1975) e Dorothea Lange (1895-1965) entre outros que trabalharam com a Farm Security Administration (FSA), um organismo governamental criado em 1937. Em 1966 o americano John Szarkowski (1925-2007), curador do Museum of Modern Art ( MoMA) de Nova York entre 1962 e 1991 no seu livro The Photographer’s Eye ( MoMA, 1966), associava a fotografia fine art à fotografia dos registros mais cotidianos, especialmente aquelas que aprofundam-se em certos valores, como a vida e trabalho familiar. Seu argumento era que toda fotografia poderia possuir os méritos ontológicos que ele buscava.
Para a curadora Rosely Nakagawa que escreve o texto final do livro, "As metáforas presentes nas imagens de Marco Alves nos remetem a alguns símbolos básicos que nos desenharam como civilização, mesclando percursos, agriculturas e culturas: o homem, a fome, o lugar, o sítio, o sol, a noite, o fogo, o mato, o abrigo, o bicho." Elementos não tão distantes - apesar da ausência do registro humano mais explícito e o monocromatismo predominante - de livros anteriores do autor como Opará- Onde nasce o São Francisco ( Ed. do autor, 2013) e Habitants ( Ed.do Autor, 2015), com a ideia do vernacular presente na essência de sua obra mais ampla.
Em 2000, o historiador de arte e curador australiano Geoffrey Batchen, professor da Oxford University, escreveu o ensaio Seminal Vernacular Photographies, usando o termo "fotografia vernacular" para referir-se ao que, nesta época, costumava ser excluído da história da fotografia ou seja o registro mais cotidiano e íntimo - e a interação de seus personagens com o próprio meio fotográfico. Embora, possamos ver que, passados mais de 20 anos, o reconhecimento dessa produção vem aumentando e sendo recebido nos nas grandes instituições de arte e em muitas publicações, quando podemos acrescentar uma infinidade de práticas que tratam de um registro étnico e de gênero mais abrangente.
"Um porta-retrato e eis que o olho de vidro, a câmera, anuncia a intimidade do que virá a seguir. Antes, um gato, um quase prenúncio, passeia em frente a uma casa, uma. porta uma janela. Uma cena de cinema. Tudo, nas duas imagens e nas que virão a seguir é derradeiro." escreve Diógenes Moura em sua indefectível sintaxe. Ele explica que esculpida no silêncio, derradeiro é uma palavra que significa o que não é sucedido por nenhuma outra coisa, ou ação, ou sentimento da mesma espécie. O escritor cria um paradoxo à ideia da fotografia, na qual cada imagem é testemunho da perenidade. A senhora produzindo seu queijo caseiro artesanal, provavelmente não será seguida por alguém da família, segundo este. É a tradição que se dissolve com o tempo, e que essa resiliência contemporânea é finita. Embora, na maioria das situações, a fotografia tenha a contradição como um elemento intrínseco.
Podemos enxergar as belas imagens de Alves sob a luz da chamada estética do instantâneo, algo que surgiu com uma tendência na fotografia Fine Art no início dos anos 1960. A apresentação de assuntos do dia a dia aparentemente banais e enquadramentos descentralizados, frequentemente apresentados sem ligação aparente de imagem para imagem e, em vez disso, confiando na justaposição e disjunção entre imagens individuais, as quais primorosamente o fotógrafo executa em Derradeiro, ressaltando aqui a construção de uma palette excepcional ao longo da publicação a nos lembrar do barroco de muitos mestres da pintura, em uma espécie de homenagem ao seus retratados aos quais demonstra intimidade e carinho.
Diógenes Moura define poeticamente: "E os segue, dias, noites, meses, anos permanecendo "diante", como testemunha de uma vida cotidiana ainda protegida, em algum canto do país. Enquanto pelo lado de cá os homens insistem em "progredir", com suas garras do pós-tudo, por dentro do livro a resposta do tempo é inexorável: estamos aqui desde sempre repetindo o mesmo de antes, o mesmo depois, o que será eterno." Certamente Derradeiro é um dos pouquíssimos livros de fotografia cujo raro esforço longo e contínuo é visível. As afinidades do autor com o que fotografou é longeva e fiel, quando ainda produziu seus dois primeiros livros acima citados, atravessou uma pandemia e chegou até agora, bem como sua parceria com o escritor na edição de imagens celebrando esta ocasião.
Uma espécie de guia foi criado por Moura no final da edição onde um texto literário, toma o papel das legendas, legando uma espécie de roteiro afetivo para o leitor, um conjunto de cinco partes com as páginas que dividem o livro no lugar dos tradicionais thumbs dão um ganho extra na extensão do texto principal, menos descritivo e mais poético. Nele é possível sentir a mimetização do fotógrafo em seu ambiente.
Pensando no livro organizado pelo antropólogo cultural americano Andrew Shryock, Off Stage on Display -Intimacy and ethnography in the age of public culture (Stanford University Press, 2004) a ideia de auto-conhecimento e a consciência dos outros aflora no conjunto produzido por Marco Alves em um recorte que podemos incluir comunidades nacionais inteiras, grupos étnico-raciais, classes socioeconômicas, movimentos religiosos e diásporas globais. Um terreno que pode não ser totalmente transparente e que muitas vezes é um local de intimidade social. As lacunas e barreiras que diferenciam estes contextos de exibição tornam difícil representar, esteticamente e politicamente, apesar do papel essencial que desempenha na criação de uma cultura, coisa que Derradeiro propõe e realiza com extrema eficiência.
Imagens © Marco Alves. Texto © Juan Esteves
Infos Básicas"
Textos: Marco Alves, Rosely Nakagawa, Diógenes Moura
Coordenação editorial: Marco Alves e Diógenes Moura
Curadoria: Diógenes Moura
Projeto gráfico: Ricardo Tilkian
Tratamento de imagens: Marco Alves e Ricardo Tilkian
Impressão: Ipsis Gráfica/ Tiragem de 250 exemplares capa dura, em papel Garda Pat Kiara
O livro será lançado no Festival Foto em Pauta de Tiradentes dia 07 de março ( quinta-feira) , às 19h, na tenda ao lado do Teatro dos Bonecos onde estará a exposição das imagens que abre na quarta-feira dia 6 de março.
Na sexta-feira dia 8 acontece uma conversa com o autor e Diógenes Moura no teatro, às 16 hs com o tema Cédula de identidade: do homem particular ao homem universal.
Será lançado também em São Paulo, ainda sem data definida.
Para adquirir o livro contatar o autor pelo e mail: [email protected]
Leia mais sobre o livro Habitants de Março Alves aqui no blog:
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JOGO DE PACIÊNCIA > ANA SABIÁ
Entre março de 2020 e junho de 2021 - no auge da pandemia da Covid-19- a artista visual Ana Sabiá, professora de fotografia do Departamento de Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), produziu um trabalho procurando possíveis encontros feitos pela arte. Ela conta que a ideia surgiu a partir de um lençol antigo herdado de sua tia, que possui uma abertura central similar a uma moldura. Foi basicamente construído com autorretratos, entretanto com seu rosto oculto.
Sua obra transformou-se em um delicado livro-objeto, Jogo de Paciência ( Editora. Tempo d'Imagem+Lovely House Editora, com a primeira edição publicada no inverno de 2023. Uma série de 78 cartas como um baralho, em um estojo onde a autora registra suas performances diante da câmera, tendo como estrutura o lençol e objetos com os quais interagiu. Entre eles, cadeiras, rebatedores de luz, molduras e balões. Pelo meio destas, algumas imagens do seu filho, com o rosto oculto como o dela. Segundo os editores, um conjunto que pode ser compreendido como um "objeto-oráculo".
"Paciência" escrito em várias línguas é um jogo de cartas, também conhecido como "Solitaire" o que, semanticamente, aproxima-se ainda mais da construção da artista. Um nome originalmente aplicado para indicar qualquer atividade relacionada a cartas de um único jogador. No entanto, a grande maioria dos jogos solitários de cartas, reflete a compreensão mais habitual da palavra, denotando uma atividade em que o jogador começa com as cartas embaralhadas e tenta, seguindo uma série de manobras especificadas pelas regras, organizá-las em ordem numérica, muitas vezes também separadas em seus naipes. Alguns passatempos deste tipo são jogados competitivamente por dois ou mais jogadores, questionando assim a adequação do termo paciência.
Portanto, o livro torna-se um objeto interativo, quando o leitor adentra o universo peculiar e extremamente lírico de Ana Sabiá- uma característica de sua vasta produção- em que, para ela, a escolha de um corpo sem face foi um esforço consciente na proposição do diálogo para além da vivência individual, abarcando também experiências coletivas. Diz a autora: "Compreendi que a proposta era afrontar o limiar vida-morte-vida nas esferas do cotidiano e que o ineditismo surreal do isolamento fazia-se necessário, também, no cenário das fotografias. O inalterável posicionamento da câmera no tripé; a repetição do enquadramento; a invariável apreensão de um tipo específico de luz; a recorrência dos lençóis instalados cada qual em seu respectivo idêntico lugar; o uso constante de camisolas- afirmou-se como um fazer metodológico que cumpria-se, minuciosamente, à risca."
Seja qual for a sequência das cartas escolhidas pelo leitor, encontramos certa anamnese, uma rememoração gradativa, na qual descobrimos nossas verdades essenciais e latentes que remontam a um tempo anterior a existência empírica.Também uma espécie de animismo nas quais os objetos inseridos pela autora em sua performance acabam por adquirir uma essência mais espiritual. Um libreto com um índice mostra definições das cartas pelo qual o leitor recebe certa ajuda, como por exemplo, em O Livro: Um livro é um portal para universos insuspeitos; mergulho da descoberta de outros-nós mesmos; papéis que imprimem nosso lento folhear nas marcações caligráficas e dobraduras de suas orelhas; o lugar de criação subjetiva. Seguido das palavras-chave: portal; criação; história; ideias; descoberta.
A dualidade no uso de simbolismos, o deslocamento entre pólos opostos de conceitos, as vias duplas que apontam verso e reverso são espelhos multifacetados que reproduzem reflexos caleidoscópicos. Nesse sentido, a fabulação fotográfica da série “Jogo de Paciência" busca amalgamar antagonismos entre a realidade ficcional e a ficção realista em referência direta à estética surrealista.
Para os editores, a escolha na fotografia em preto, branco e uma considerável gama de cinzas, evidência que demarca a supressão da realidade colorida visível aos olhos, remete aos primórdios da fotografia e suspende a temporalidade linear. O cenário composto por lençóis brancos delimita um palco surreal para os personagens e objetos. Por vezes o “fundo infinito” afirma o deslocamento espacial onde tudo está suspenso: não há paredes, chão ou teto e os elementos buscam algum arranjo emoldurados pela brancura amarrotada.
As inúmeras variáveis propostas por Ana Sabiá nos remetem a um modo de criação, onde a participação do leitor no entendimento de suas ideias torna-se essencial. É próximo do que o grande autor italiano (nascido em Cuba) Ítalo Calvino (1923-1985) propõe em seu genial livro Il castello dei destini incrociati, publicado em 1973 ( por aqui no Brasil, O castelo dos destinos cruzados, Cia das Letras em 1991), um romance que explora como o significado é criado seja escrito por meio de palavras pelo autor no livro, já que os seus personagens não podem falar entre si, ou por imagens (as cartas de tarô - consideradas proféticas por alguns, em que eles próprios estão abertos a muitas interpretações simbólicas). É como frequentemente nas obras deste autor multifacetado, onde vários níveis de interpretações e leituras são possíveis, com base na relação autor-narrador-personagem-leitor, caso deste Jogo de Paciência criado pela artista.
Assim como este livro, Jogo de Paciência nos mostra o pensamento plurifacetado da autora em suas mensagens subliminares que assimilam uma plêiade de informações inseridas em suas cartas que recontam suas propostas ao entrelaçarem entre si mesmas. O "livro" em suas múltiplas combinações é ao mesmo tempo fantasia e ficção imaginativa cujo efeito depende da estranheza do cenário e dos seus personagens incorporados através de uma narrativa multiforme não convencional, explícita de diferentes maneiras no índex do libreto que o acompanha. Nele o posicionamento das cartas desenha o assunto: "Uma cadeira é lugar de espera; acomoda o cansaço; morosamente recepciona os encontros ao redor da mesa..." Uma garrafa é chamariz e reserva da sede, acolhe a água e o vinho, ampara as flores...". Uma máscara como segunda pele; refúgio que cessa o riso; atmosfera filtrada contra o hostil, ausência de cor vibrante do batom...".
Este Índex do posicionamento das cartas e suas deambulações não ampara somente uma questão descritiva, mas sim um forte complemento às imagens. De forma poética, aproxima e ao mesmo tempo irradia o pensamento de Ana Sabiá, seja por meio de um micro ensaio literário e de certa forma também filosófico, no qual a autora exprime categoricamente seu talento literário, ao personificar os elementos de suas composições imagéticas em um texto lírico.
Uma das características mais marcantes do livro de Calvino é o processo de escrita; o romance foi escrito em parte por escolha consciente do autor e em parte como produto do acaso, uma possibilidade que encontramos no O Jogo de Paciência. O leitor pode encontrar as cartas certas para ilustrar seu pensamento e compor a própria história, ao identificar-se com as propostas da autora, ou no encontro aleatório, na busca de uma imagem discernível a partir da contingência de suas posições, que constituem o interessante processo semiótico visto anteriormente, em suas urdiduras, aproximando-se de um perfeito constructo.
Jogo de Paciência não é o embaralhamento de histórias improvisadas. Há também um componente filosófico significativo, que convida à reflexão sobre a natureza da linguagem que a imagem é capaz de criar. À medida que os personagens criados por Ana Sabiá estão estáticos na fotografia, a linguagem humana revela-se simplesmente como outro sistema de signos que pode ser substituído por um baralho de cartas. Em menor grau, pode ser dito o mesmo da linguagem. Uma palavra não faz sentido em si mesma, assim como as cartas precisam de um contexto ( buscado pelo leitor, incitado pela autora). Isto faz com que estes percebam que a linguagem humana também pode ser interpretada de múltiplas maneiras e, em última análise, leva à questão de quão precisamente a linguagem é capaz de transmitir significados e descrever o mundo em que vivemos.
Imagens © Ana Sabiá. Textos© Juan Esteves
Infos básicas:
Fotografia e Ilustração : Ana Sabiá
Edição de imagens: Ana Sabiá, Isabel Santana Terron e Luciana Molisani
Desenho gráfico: Ana Sabiá e William Bazzo
Textos: Ana Sabiá e Ana Martins Marques ( epígrafe)
Tratamento de imagens: José Fujocka
Impressão: Pigma
Caixa artesanal: Yume Ateliê
Papéis: Saville Row Plain e Offset
Tiragem de 100 exemplares assinados e numerados
*edição especial com um panô de cetim de seda sublimado com uma das 5 opções de fotografia da série em tiragem limitada de 3 exemplares cada.
Edição bilíngue Português/Inglês.
vendas: lovelyhouse.com.br
#fotografia#fotolivros latino americanos#blogdojuanesteves#lovely house casa de livros#Ana Sabia.com
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EDVARD MUNCH E A FOTOGRAFIA

Autorretrato de Munch.
"Tenho uma câmera antiga com a qual tirei inúmeras fotos minhas. Muitas vezes ela produziu efeitos surpreendentes." afirmou o genial artista norueguês Edvard Munch (1863-1944) em uma entrevista de 1930. "Algum dia, quando eu estiver velho e não tiver nada melhor para fazer do que trabalhar em uma autobiografia, todos os meus autorretratos fotográficos verão a luz do dia novamente." arrematou ele. A autobiografia nunca foi escrita, mas os autorretratos chegaram às páginas do livro "The Experimental Self". The photography of Edvard Munch" (Thames and Hudson, 2021) e as exposições homônimas na Scandinavia House em colaboração com a American Scandinavian Foundation de Nova York, entre novembro de 2017 e abril de 2018 e no Munch Museet, de Oslo, na Noruega, de junho de 2020 a setembro de 2021, revelando as suas experimentações com a câmera fotográfica.
Como fotógrafo, Munch expandiu a liberdade proporcionada pela sua condição de amador e os aspectos imprevisíveis da tecnologia fotográfica, então analógica, abordando com muito humor sua própria imagem e explorando seu individualismo, já percebidos na sua pintura e gravura, cujo epítome nas duas técnicas é sem dúvida "O Grito", de 1893. As imagens proporcionam um acesso único a sua radical visão artística, que este livro estuda através dos ensaios dos americanos Patricia Gray Berman, historiadora e professora da Wellesley College, de Boston; Tom Gunning, professor de Cinema e Mídia da The University of Chicago, e MaryClaire Pappas, do Departamento de História da Arte na Indiana University, em Bloomington.
Em 1902 Edvard Munch comprou em Berlim sua primeira câmera, uma Bull 's Eye No. 2, introduzida no mercado em 1892 pela Boston Camera Manufacturing Company, quando tinha 40 anos. Ele usou-a sistematicamente para experiências no seu entorno e para si mesmo onde estivesse, na praia, no seu jardim ou no chamado "Sanatorium Parkstrasse", a casa de Hanni e Herbert Esche, um casal amigo em Chemnitz, na Alemanha, onde passou um tempo convalescendo-se de sua fragilidade mental em 1905. Sempre considerando-se um fotógrafo amador, era curioso e frequentemente explorava seus erros técnicos em ângulos da câmera incomuns, desfoques e o borrado do movimento durante exposições longas. Esses "efeitos" refletiram suas estratégias na pintura e nos trabalhos gráficos, mas por se considerar um amador, Munch não mostrava suas fotografias, como fazia com seus outros trabalhos.
Em pinturas icônicas como O Grito, descreve a escritora novaiorquina Alexandra Alexa, o artista Edvard Munch expressou a ansiedade e a incerteza da vida moderna. Além das pinturas com carga psicológica, xilogravuras e aquarelas pelas quais é conhecido, e além disso era um curioso sobre a tecnologia contemporânea, Tal como as suas pinturas, as suas fotografias centraram-se em tornar visível o invisível.
Munch fez principalmente autorretratos e retratos de familiares e amigos com um forte elemento narrativo, descrevendo sua experiência vivida. “Suas fotografias são explorações muito informais e às vezes extremamente bem-humoradas do artista e de seu ambiente”, explica a curadora e historiadora de arte Dra. Patricia Berman. “Ele documenta, até certo ponto, a si mesmo, seus amigos, seu ambiente imediato – e em seus breves clipes de filmes, os ambientes pelos quais vagou – mas raramente o faz de maneira direta.”
O livro, a exposição fotográfica, gravuras e filmes enfatizam o experimentalismo do artista, examinando sua exploração da câmera como meio expressivo. Ao sondar e explorar a dinâmica da prática “defeituosa”, como distorções involuntárias, movimento desfocado, ângulos de câmera excêntricos, exposições duplas, Munch fotografou a si mesmo e ao seu ambiente mais íntimo de maneira que os tornaram poéticos. Tanto em imagens estáticas como em suas poucas incursões com uma câmera cinematográfica portátil com suas imagens em movimento, Munch não apenas arquivou imagens, mas as inventou.
As abordagens sobre o relacionamento de Munch e a fotografia não são poucas e traduzem um grande interesse nesse meio. Edvard Munch as Photographed for his 75th Birthday, 1938: Strategies in Defense of a Legacy, um paper de Reinhold Heller, professor de História da Arte e estudos germânicos da University of Chicago, aborda outras peculiaridades nesta relação. Ele escreve que Munch tornou-se visível ao público de diferentes formas: Pouco antes deste seu aniversário, ele colaborou com o fotógrafo de Oslo, Ragnvald Væring (1884-1960) para criar um trio de fotografias formais que o retratavam no ambiente de seu estúdio de inverno, em pé ou sentado, rodeado por suas obras.
Outrora um permanente protetor do isolamento eremita proporcionado pela sua casa e estúdio, ele permitiu que esta condição reclusa fosse quebrada por Ragnvald Væring com o seu equipamento para estas imagens, conta Heller. O fotógrafo não apenas teria entrado na sua privacidade como, uma vez publicadas, as fotografias transformariam o que era privado em algo público. Pelo menos através da realidade virtual das fotografias, o público entraria no espaço privado de Munch para ser confrontado pelo fantasma fotográfico do próprio artista. As três fotografias (aqui uma delas publicada) bem como o processo de encená-las e fazê-las, representam uma notável invasão da privacidade habitual e veementemente protegida de Munch.
Uma resposta parcial sobre por que Munch cooperou, e até mesmo instigou, esta intrusão pode ser fornecida por uma breve entrevista telefônica com Munch publicada no jornal Morgenbladet, o mais antigo da Noruega. Quando questionado se pretendia passar o dia inteiramente na “paz e tranquilidade de sua vida privada”, Munch respondeu: “Sim, você sabe, eu vivo em grande parte retraído, acima de tudo. É como se eu precisasse viver um pouco isolado…” Além disso, observou, “hoje, o que mais me agrada é poder voltar a trabalhar… Como vocês sabem, nos últimos anos houve tantas coisas que interferiram na minha vida e resultaram em eu não fazer muito, ou melhor, muito menos do que eu gostaria... Mas agora isso acabou completamente. Agora me sinto fabuloso e em boa forma e, como disse, estou extremamente feliz por poder voltar a trabalhar seriamente.” À luz desta entrevista, as fotografias podem ser consideradas como a documentação visual aparentemente objetiva da saúde, vitalidade e continuidade da vida do artista, de outra forma recluso, quando ele atingiu a idade de 75 anos.
Munch, porém, não desistiu. À medida que o Ano Novo de 1939 aproximava-se, ele distribuiu as fotografias pela comunidade mais íntima dos seus amigos, enviando-as como saudações de Natal. De alguma forma, ao que parece, ele insistiu em tornar as imagens públicas. No entanto, só depois da sua morte, em 1944, é que as fotografias finalmente se tornaram amplamente disponíveis, publicadas em artigos comemorativos pelos seus amigos. Hoje elas são onipresentes, aparecendo como “documentos” visuais em praticamente todos os catálogos de exposições de Munch para acompanhar suas cronologias. Em certo sentido, foi assim que Munch pretendia que as fotografias funcionassem, como documentos, analisa Reinhold Heller.
Contudo, a neutralidade e a objetividade da fotografia são problemáticas, como observa o francês Roland Barthes (1915-1980) em sua declaração: "Nenhuma representação poderia me assegurar o passado de uma coisa, exceto por intermediários; mas com a fotografia a minha certeza é imediata: ninguém no mundo pode me desiludir. A fotografia torna-se então um meio bizarro, uma nova forma de alucinação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo: uma alucinação temporal, por assim dizer, uma alucinação modesta e partilhada (por um lado) não está aí”, por outro “mas de fato esteve”: uma imagem louca, transtornada pela realidade. E sabemos que neste quesito interpretativo, o pensador não estava sozinho.
Se a própria natureza das imagens levanta questões sobre a realidade de Munch questiona Heller, ontologicamente há outras dúvidas a serem colocadas sobre elas também. O “momento recortado no tempo” ou a "alucinação temporal” das fotografias merece consideração. Se o foco da percepção é desviado da sombra de Munch para o ambiente fotografado, então as pinturas, gravuras e esculturas que o cercam em seu estúdio tornam-se uma lembrança do tempo anterior ao momento das fotografias. O momento preservado e partido das próprias fotografias. O que podemos estender as discussões mais contemporâneas sobre o tempo propostas pelo filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy.
As obras de arte que cercam Munch, na problematização de Heller, não trabalham nem interagem com o artista. Mas sim o resultado do êxtase atingido por este.. A atividade então é relegada ao passado. Assim como na proposta discutida pela ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004), estas fotografias funcionam como um memento mori: do momento de sua própria produção, mas contêm em si outras referências a um passado igualmente morto através das relíquias que são as obras de arte concluídas e reconhecidas por trás do efêmero na obra de Munch, através de sua atividade passada.
Outro livro que aborda a interação do artista com a fotografia é Munch and the Photography (Yale University Press, 1989) de Arne Kristian Eggum, historiador de arte norueguês que focou principalmente sua pesquisa no artista e que ajudou a criar o Munch Museet, dedicado a ele em 1964, tornando-se curador chefe em 1970, e no qual trabalha até hoje. A instituição mantida pela cidade de Oslo e a Galeria Nacional da Noruega, nesta cidade, abrigam mais de 1.000 pinturas, aproximadamente 15.000 desenhos, cerca de 16 mil gravuras e sua biblioteca de mais de 6 mil livros e papéis efêmeros e cartas, invariavelmente com autocríticas, doados pelo artista,
Eggum relaciona o uso da fotografia por Munch a dezenas de imagens específicas em outras mídias; faz ligações com diferentes personalidades como a do importante escritor sueco Johan August Strindberg (1849-1912), igualmente fascinado pela fotografia e às discussões gerais sobre o propósito, a utilidade e a estética que os preocupavam tanto. O livro, repleto de detalhes, amplamente ilustrado e com detalhadas legendas, vai dos álbuns de família para um exame escrupuloso do envolvimento do próprio Munch, tanto como modelo quanto como fotógrafo.
Para a crítica e curadora de arte novaiorquina radicada na Inglaterra, Marina Alandra Vaizey, em artigo publicado no jornal inglês Sunday Times, "É um curioso paradoxo que a fotografia, em um sentido muito real olhando para fora, tenha sido tão importante para Munch" Entretanto, Eggum mostra a variedade de abordagens fotográficas que envolveram Munch: desde o instantâneo atmosférico, pessoal (quase memórias), até a fotografia "espiritual" e o ocultismo. Ele ainda era fotografado quando já estava com 80 anos e aguardando a morte. A narrativa absorvente de Eggum não apenas lançou literalmente uma nova luz sobre o trabalho de Munch, mas também sobre sua vida - e o espírito de sua época.
Texto © Juan Esteves. Imagens © Munch e creditados.
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UNTITLED>ROBERTO WAGNER
Untitled ( Edição do Autor, 2023) de Roberto Wagner, fotógrafo paranaense radicado em São Paulo reúne neste seu primeiro livro uma série de 36 imagens, parte de um grande ensaio que aproxima-se do abstracionismo geométrico, tendo como cenário o urbano e fragmentos de sua arquitetura no registro de suas consequências temporais captado no senso autoral, pensamento a que vem dedicando-se desde o início dos anos 1980. O amplo recorte visual do autor já foi visto no livro SX70.com.br. (Wide Publishing, 2003) uma coleção de polaroids oriundos do modelo SX70 que também reuniu Armando Prado, Fernando Costa Netto, Marcelo Pallotta, Claudio Elisabetsky, Paulo Vainer e Ricardo Van Steen, organizado pela artista paulista Lenora de Barros.
Nas suas imagens encontramos composições precisas, seja em uma sala, um fragmento de uma parede, um detalhe de um muro, tapumes, calçamentos, desenhos criados ao acaso, a cor como forma geral. Selecionados pelo autor, seus enquadramentos ressignificam o banal - ou o decadente- como sua forma de arte encontrando uma certa abstração fotográfica, que podemos em parte ver tanto no movimento concreto, como no modo construtivista no sentido de trabalhar com o objeto exposto no cotidiano das cidades, em sua maioria São Paulo.
O fotógrafo aponta para a linguagem pictórica da abstração construindo-a com uso de formas geométricas simples (perfeitas e imperfeitas) colocadas em espaços não ilusionistas e reunidas em composições não objetivas, que distanciam-se da representação tradicional da pintura, baseada na imitação de formas do mundo visual. O seu movimento é circundante no espaço perspectivo e ilusionista, como na tradição que surge após o Renascimento e ora perseguido em tempos mais contemporâneos. Neste caso, estruturado por uma fotografia que abandona seu figurativismo intrínseco.
Sobrepondo superfícies planas e frontais, unidas por uma grade linear, Wagner apreende formas abstratas em elementos “construtivos” da composição. O ganho da publicação vem da liberdade de experimentação com diferentes estruturas e materiais encontrados por ele e as relações espaciais entre várias partes composicionais, que evoluem para seu recorte final. Sendo assim, cores essencialmente planas misturam-se com distintas sobreposições tonais, dando maior substância a forma, que surge dos vestígios da realidade e das suas características bidimensionais, inerentes à fotografia.
Luiz S.F. Sandes, historiador da arte que vem dedicando-se a pesquisa da obra de Wagner: "A precariedade brasileira é notada na produção do fotógrafo na medida em que nela são registrados diversos detalhes arquitetônicos ou urbanos que, muitas vezes, denotam falta de acabamento, pobreza, desgaste ou incompletude. Já a ligação com a história da arte se dá pela abundante presença da tendência da abstração geométrica na obra de Wagner. Essa tendência, existente há cerca de um século, tem longa história tanto no campo da arte como no da fotografia." Para o pesquisador, "Se a cidade é um turbilhão incompreensível, o olhar do fotógrafo se coloca em oposição a isso, construindo imagens ordenadas, equilibradas e alinhadas."
Interessante notar ainda, pela pesquisa de Sandes, que: "Dado o teor muitas vezes inacabado, deteriorado e imperfeito presente nas suas fotografias, pode soar estranho que elas se relacionem à abstração geométrica. É preciso, contudo, entender que essa relação se dá menos pela presença de linhas, grids e formas geométricas nas imagens e mais pelo modo de o artista compô-las com precisão, simetria e ordem. Ainda que o modo de composição do artista organize nossa experiência visual com a cidade, ele não se sobrepõe ou se impõe a ela."
O desenvolvimento evolutivo de uma realidade puramente pictórica construída a partir de formas geométricas elementares assumiu diferentes expressões estilísticas em vários países como na Rússia já no início do século XX. Na Holanda, o principal criador e o mais importante proponente da linguagem geométrica abstrata foi Piet Mondrian (1872–1944). Juntamente com outros membros do grupo De Stijl – Theo van Doesburg (1883–1931), Bart van der Leck (1876–1958) e Vilmos Huszár (1884–1960) – o trabalho de Mondrian pretendia transmitir a “realidade absoluta”, interpretada como o mundo das formas geométricas. Nas imagens de Roberto Wagner, o viés escolhido é um padrão dentro do acaso que apresenta-se a ele. O recorte sobre algo já existente ganha uma nova dimensão ao propor sutilezas gráficas dentro do espectro decadente da construção. Talvez daí, a capa do livro que nos lembra uma prancha de corte com seu quadriculado, ganhe maior compreensão.
O que mais aproxima o trabalho de Wagner com estas formas de arte talvez seja a obra do artista e arquiteto russo Vladimir Tatlin (1885–1953) que criou um novo idioma abstrato geométrico em uma forma tridimensional inovadora, que ele primeiro apelidou de relevos pictóricos e posteriormente de contra-relevos. Eram montagens de materiais industriais encontrados aleatoriamente, cuja forma geométrica era ditada por suas propriedades inerentes, como madeira, metal ou vidro. O que podemos fazer um paralelo com o fotógrafo, na imagem que traz uma pilha de tijolos de concreto, próxima da conhecida "Torre" de Tatlin, um monumento à Terceira Internacional de 1919, que sacramenta o inter-relacionamento atemporal representado pela arte em seus meios mais improváveis.
Sem a conexão com o assunto literal, o espectador das propostas de Roberto Wagner possivelmente responderá mais aos fatores quase subconscientes da sua fotografia, certo que as imagens abstratas dirigem-se para um nível mais emocional ao usar apenas forma, cor e outros elementos de criação. Na sua forma mais pura, o tema de uma fotografia abstrata é muitas vezes irreconhecível. A beleza não deriva do assunto em si, mas de suas formas, texturas ou cores. Guardadas as proporções, um pequeno cubo vermelho em meio a uma grande parede cinza, nos sugere o americano Mark Rothko (1903-1970) ou os brocletes largados no asfalto nos lembram uma instalação do chinês Ai WeiWei e os azulejos quebrados e sujos na parede nos levam a produção dos escoceses Boyle Family.
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Em maio de 1951 o Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York abriu a mostra Abstraction in Photography, com curadoria do luxemburguês Edward Steichen (1879-1973), 150 fotógrafos e artistas, entre eles os franceses Eugène Atget (1857-1927) e Henri Cartier-Bresson (1908-2004); os americanos Harry Callahan (1912-1999), Charles Eames (1907–1978), Jeannette Klute(1918-2009), Isamu Noguchi (1904-1988) e o húngaro Laszlo Moholy-Nagy (1895-1946). Para o curador, a abstração, como lógica, é uma maneira do pensamento do homem e geralmente está incluída no que chamamos de Simbolismo. Isto é, suas particularidades é que fazem sua distinção. Em resumo, o que vemos em Untitled de Roberto Wagner é resultado da eliminação das impurezas dos fatos e a manutenção do essencial da estrutura ou forma. A fotografia abstrata como forma de arte.
Imagens © Roberto Wagner. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Fotografia: Roberto Wagner
Edição/ Coordenação editorial/ Produção executiva: Ale Ruaro
Projeto Gráfico: Alyssa Ohno
Encadernação artesanal: Eliana Yukawa/Yume Ateliê & Design
Tratamento de imagem: Chris Kehl
Impressão: Gráfica Ipsis Editora/ Papel Munken Lynx Rough, 100 exemplares 11,5X15cm
*Box com edição especial de apenas 11 exemplares no formato 21X28 cm + print 24X36cm assinada pelo autor.
Para aquisição: [email protected]
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UTOPIA > LUCAS LENCI
A relação problemática entre ambiente e o ser humano representada pela imagem fotográfica ganhou notoriedade em 1975 com a mostra New Topographics Photographs of a Man-Altered Landscape, no museu de fotografia da George Eastman House, em Rochester, Nova York, com curadoria de William Jenkins, um importante papel na ruptura da história da fotografia e as representações não tradicionais da paisagem.
A visão romântica e transcendente deu lugar às indústrias austeras, a expansão suburbana e cenas cotidianas, elaboradas por fotógrafos e artistas como os alemães Hilla e Bernd Becher e os americanos Robert Adams, Lewis Baltz (1945-2014), Joe Deal (1947-2010), Frank Gohlke, Nicholas Nixon, John Schott, Stephen Shore e Henry Wessel (1942-2018) que tomaram seu lugar na arte estabelecida. Sem dúvida um marco ao tratar desta relação na construção de uma imagética constituída pela apresentação conceitual e gráfica.
Utopia (Vento Leste, 2023) do paulistano Lucas Lenci é mais uma tentativa de transformar essa relação em arte pela reflexão projetada por uma topologia sentimental ora poética, ora cética, no embate entre a natureza e o urbano, um conceito atraente tanto visualmente quanto ontológico. Entretanto, a proposta procura ser mais ampla no sentido de anexar a ideia da construção digital em seu trabalho, quando produz uma clara dicotomia entre a realidade e a ficção em suas cenas. Embora ao observador mais atencioso ela seja evidente de início, a compreensão mais complexa pode ser lenta ao leitor desavisado, o que parece atingir a maioria imersa na confusão visual mais contemporânea, formatada pelo excesso de imagens produzido sistematicamente e difundido pelas redes.
Em um sentido mais filosófico, Lenci cria formas nas quais sua própria invenção e conteúdo em suas construções - na verdade, suas percepções e sensações que dão origem a este volume - são incorporados em sua execução e permanecem essenciais para sua eficácia. Os filósofos mais remotos já haviam notado que um evento deste tipo é de natureza altamente tátil, um momento- se puder ser medido, garantido no tempo cronológico- que pode de fato ser da mesma ordem. Assim, a etimologia de invenção, como descreve o filólogo americano Tom Conley em seu An Errant Eye (University Minnesota Press, 2010) explica como a topografia, a arte de descrever o espaço local é algo que acontece, ou aqui melhor dizendo, que o artista faz acontecer. Um evento que cria uma sensação de espaço e lugar porque exige uma consciência elevada de compreensão, que é, de contato com o ambiente de tal forma que as relações até então desconhecidas são feitas a partir da experiência das coisas apreendidas pelo autor.
Então vejamos o pensamento de Lucas Lenci: "Os conceitos de velocidade e distância foram distorcidos pela minha geração. Inebriados pela internet, abraçamos com paixão a desmaterialização de praticamente tudo: de produtos, serviços, informações e da própria fotografia. Agora uma foto viaja instantaneamente, transformando-se em dados e pixels, percorrendo distâncias antes inimagináveis." O fotógrafo nasceu em 1980 e é graduado em fotografia e desenho industrial. Iniciou sua carreira profissional como fotógrafo após atuar como produtor executivo de projetos comerciais, editoriais e culturais. Publicou o livro Desaudio ( Ed.Madalena, 2013) [ leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/116469317861/desaudio-lucas-lenci ], Movimento Estático (Editora Valongo, 2016) [ leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/153956336821/movimento-est%C3%A1tico-lucas-lenci ] e Still Life ( Fotô Editorial, 2020) [ leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/613665409938472960/por-mais-falso-que-o-assunto-seja-uma-vez ] entre participação em outras publicações.
Lenci revela que explora uma "geografia afetiva", uma reflexão acerca "das emoções que os lugares e os espaços que habitamos nos despertam." As fotografias, segundo ele, retratam endereços intangíveis, ao mesmo tempo que estão ancoradas em precisas coordenadas de georreferenciamento, na busca por capturar distâncias tanto físicas quanto virtuais. Imagens que buscam ir além das representações de cidades reais ou fictícias: "um interesse pelo simbólico, imbuído das experiências pessoais, da memória, da história, mecanismos que mostram os vínculos emocionais, entre o indivíduo e seu meio ambiente.
As imagens de Utopia nos levam para o pensamento do historiador Philip J. Edington, do Departamento de História da University of Southern California: "A posição “assimilativa” procura equiparar as fotografias a todos os outros signos num universo semiótico e derivar os seus significados principalmente deste contexto. Uma posição excepcional que sustenta que estes são signos indiciais que carregam uma impressão direta do mundo. Argumenta-se que as duas posições podem ser colapsadas numa espacialização radical do conhecimento visual, expandindo a tese do genial historiador da arte vienense Ernst Gombrich (1909-2001) sobre a “primazia do significado” para incluir os caminhos neurais através de mapas do campo visual.
Daí a importância de Lenci incluir as localizações exatas das suas tomadas fotográficas que compõem cada uma de suas imagens. "A mente exige que cada evento interpretativo, cada “leitura” de uma fotografia ocorra numa posição de perspectiva." Uma expectativa que o autor tem de distanciar-se da cartografia da plataforma geo-histórica (Hyper Cities), alimentada pelo Google, como um exemplo do mais recente conhecimento de redes na Internet hiperespacial, cada vez mais amplas em sua contextualização, que pode expandir o universo de significado interpretativo, ao mesmo tempo que aprofunda a sua inscrição nos locais terrestres da sua produção. Rejeitando o ceticismo radical da posição assimilacionista, o ensaio percebe as qualidades excepcionais da fotografia na circulação de signos que ancoram a interpretação à medida que constrói-se um conhecimento histórico, abrindo caminhos de uma perspectiva na topologia sem fundo e incorporada anteriormente pela semiótica.
O fotógrafo paulistano Tuca Vieira, autor do excelente livro Atlas Fotográfico da cidade de São Paulo e Arredores ( Casa da imagem/Museu da Cidade de São Paulo, 2020) escreve um ensaio no livro sobre a fugacidade da imagem digital, em contraponto a elaboração complexa das imagens de Lucas Lenci: "A vida útil de uma fotografia pode chegar hoje a apenas alguns segundos de duração, e ela logo em seguida pode cair no esquecimento. Disso também decorre a diminuição dramática do tempo que dedicamos a cada uma delas, tanto no ato de produzi-las quanto de apreciá-las..." Para ele, então passamos a desconfiar das imagens. No entanto, diz ele, "há também os que se dedicam a estudar as características únicas da imagem como ela é hoje produzida, e que são capazes de extrair de suas particularidades a força necessária para reter nosso olhar apressado.
Para Vieira, "Lucas Lenci trabalha de forma criativa essa desconfiança, equilibrando-se cuidadosamente numa fronteira entre o crível e o estranho, o possível e o improvável. As imagens da série "Utopia" [Alpha Cities] conseguem provocar justamente esse segundo olhar, que retém o observador para além do encontro fugaz inicial. E isso não é pouco num mundo de experiências tão fragmentadas, marcado pela economia da atenção. Essa fotografia em dois tempos primeiro captura a atenção do observador (que desconfia do que vê) e depois exige um olhar mais atento, detido, na promessa de revelar seu enigma.
A posição do autor de Utopia, encontra alguns paralelos na nossa produção, caso do belo livro Repaisagem São Paulo (Porto de Cultura, 2011) do artista paulista Marcelo Zocchio, que mostra aspectos da história da cidade de São Paulo nos últimos 140 anos. Uma montagem de imagens suas atuais e outras antigas, com uma inclusão cartográfica dos anos 1897, 1930 e de hoje, imagens de consagrados fotógrafos, como as suíço Guilherme Gaensly (1843-1928), do carioca Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) e do italiano Vincenzo Pastore ( 1865-1918) entre outros, cujo resultado é um interação temporal da do espaço e vida urbana.
Aproximando-se no sentido gráfico e conceitual, inclusive no formato de Utopia ( embora com imagens panorâmicas), o livro Entre Morros ( Cosac Naify, 2014) da fotógrafa carioca Claudia Jaguaribe igualmente problematiza a tensão entre a mudança e a permanência. Com imagens produzidas por ela, faz uma revisão da relação tempo e espaço com a noção de lugar. Segundo ela, "Na série a nitidez está no todo e nos detalhes das imagens, captando a força da trama urbana. Vê-se, simultaneamente, perto e longe, dentro e fora, de cima e na encosta dos morros cariocas. O Rio dessas fotos, assim como as cidades idealizadas por Lucas Lenci, não existe em estado natural. Ele é uma construção feita a partir de seus contrastes urbanos. Natureza e cidade, riqueza e pobreza, violência e gente.
Em termos mais conceituais, no trabalho de Jaguaribe ( assim como nos de Lenci) suas imagens estruturam-se a partir de evidentes elementos de contemporaneidade, como a simultaneidade de informações visuais que hoje permeiam praticamente todos os meios de comunicação, sendo em sua maioria construções digitais a partir de uma ou mais imagens, onde a perspectiva clássica e informação stricto sensu são por consequência fortemente alteradas, escreveu Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do Instituto Moreira Salles ( IMS).
Trabalhos que, no dizer de Lucas Lenci, não são apenas "o testemunho desta era de desmaterialização, mas catalizador de novas jornadas." o que podemos enxergar como um manifesto que nos leva às ideias, guardada a distância, introduzidas pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) no seu trabalho sobre o grande pintor francês Paul Cézanne (1839-1906), O visível e invisível (Ed.Perspectiva, 1984) (originalmente publicado em 1964, pela francesa Gallimard, que traz o conceito de visão topológica para descrever e explicar uma forma particular de ver que considera, no contínuo surgimento de uma imagem fotográfica, uma possibilidade de superar uma filosofia idealista que transforma tudo em pensamento, sem levar em conta o contato primordial com o mundo. O pintor ou aqui no caso, o fotógrafo não transforma o mundo em pensamento para fotografar e por isso, não faz uma representação do mundo em sua imagem, mas cria um mundo próprio, resultado da mescla entre o vidente e o visível, que possibilita por esse ato criador, a experiência com o Ser enquanto presença.
*Imagens © Lucas Lenci. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Vento Leste Editora: Mônica Schalka/Heloisa Vasconcellos
Fotografia, captação e montagem: Lucas Lenci
Textos Lucas Lenci/Tuca Vieira
Edição bilíngue: Português/Inglês
Tratamento de imagens: Marcos Ribeiro
Design Gráfico: Fábio Messias e Nathalia Parra [Zootz Comunicação]
Coordenação editorial: Lucas Lenci e Tuca Vieira
Produção gráfica: Jairo da Rocha
Impressão: Capa dura, 500 exemplares em papel Alta Alvura: Ipsis Gráfica e Editora
Para adquirir o livro ventoleste.com
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HÊMBA> Edgar Kanaykõ Xakriabá
"O céu respira a terra
Temos que ter cuidado
Pois uma foto é uma imagem"
[ Pagé Vicente Xakriabá, 2019]
Hêmba, na língua Akwê [ o povo Xakriabá pertence ao segundo maior tronco linguístico indígena brasileiro, o Macro-jê, da família Jê, subdivisão Akwê, um dos poucos grupos que habitam Minas Gerais.] traz a ideia de alma e espírito, na alusão da fotografia e imagem. É o nome do livro do fotógrafo e antropólogo paulista Edgar Kanaykô Xakriabá, publicado este ano pela Fotô Editorial, que promete ser o primeiro de uma coleção voltada para autores indígenas, publicação com incentivo do ProAc SP e com a parceria do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) da Universidade de São Paulo (USP) que disponibilizará uma versão permanente em e-book em seu repositório digital.
Fabiana Bruno, professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) edita - com participação de Fabiana Medina e Eder Chiodetto, e escreve o texto do livro, o qual também acomoda escritos do autor e suas narrativas indígenas ( visuais e textuais) que voltam-se não somente para uma poética vernacular, mas fortemente amparados pela produção gráfica do fotógrafo. A publicação teve consultoria da professora Sylvia Caiuby Novaes, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas ( FFLch) da USP, especialista na Antropologia Visual. ( Leia aqui no blog o excelente livro organizado por ela: Entre arte e ciência, usos da fotografia na antropologia (Edusp, 2016) em https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/143117323916/entre-arte-e-ci%C3%AAncia-a-fotografia-na-antropologia ).
Edgar Kanaykõ Xakriabá nasceu em São Paulo em 1990 e vive e trabalha na terra Indígena Xakriabá, compreendida entre os municípios de São João das Missões e Itacarambi, no estado de Minas Gerais. É graduado na Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei/UFMG) e tem mestrado em Antropologia Social (Visual) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua dissertação, Etnovisão: o olhar indígena que atravessa a lente (2019) é uma discussão acerca da utilização da fotografia pelos povos indígenas como instrumento de luta e resistência e o conceito de imagem, a primeira realizada por um pesquisador indígena em um programa de pós-graduação da UFMG. Sua composição baseia-se em registros fotográficos de sua comunidade Xakriabá, de outros povos, assim como de manifestações do movimento indígena no país.
Não somente para ler ou ver, Hêmba é um livro para uma imersão no universo peculiar do autor, que salvo raras exceções, distingue-se certamente de outras representações dos indígenas já publicadas no Brasil, as quais normalmente limitam-se a explorar o exótico e o superficial, explicitados pelo substantivo beleza. É uma publicação produzida por alguém que faz parte essencial de uma comunidade no sentido mais abrangente, ao incorporar uma colaboração multidisciplinar que assimila questões atuais de representação visual, como parte integrante de um processo mais profundo, filosófico e existencial, que apesar de nos mostrar belas imagens, algumas poucas até mesmo recorrentes, transcende em grande parte sua poética em seu fazer mais ontológico.
A editora Fabiana Bruno, alerta em suas preliminares que "a fotografia é um meio de luta para fazer ver - com outro olhar- aquilo que o povo indígena é." A definição do próprio Edgar Xakriabá de conceber as fotografias no mundo, daí um conjunto de imagens que ganham este título Alma e Espírito- Fotografia e Imagem, palavras que aparentemente sugerem a mesma coisa, mas que de fato não são. Para a professora, a imagem é um dispositivo de resistência em sua linguagem. O gesto fotográfico torna visível mundos e cosmologias indígenas, a resistência e a sobrevivência em histórias: "As fotografias de Edgar Xakriabá correspondem aos próprios atravessamentos da sua história e pertencimento ao mundo das aldeias, relações e compromissos com os povos indígenas sem desvincular-se da construção de um olhar, que define seu trabalho autoral há mais de uma década, no qual se incluem as suas pesquisas no âmbito da sua formação em antropologia." diz a pesquisadora.
Em suas narrativas os argumentos ficam evidentes quando o conteúdo desloca-se do mainstream dos acontecimentos generalizados sistematicamente. Já de início afastando-se das primeiras descrições mitológicas criadas pelos viajantes estrangeiros quando chegaram na América, mediações feitas pelo senso comum, que posicionavam-se diante desta incompreensível alteridade. O historiador americano Hayden White (1928-2018) em seu Trópicos do discurso-Ensaios sobre a crítica da cultura (Edusp, 1994),publicado originalmente em 1978 pela John Hopkins University , já apontava que a humanidade era então definida pela negação do divino ou do que não era animal, classificando os indígenas como estes últimos ou ao contrário como super-humanos, como os antigos patriarcas, algo impreciso, principalmente pelo medievo, escreve a professora Maria Inês Smiljanic da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em seu paper "Exotismo e Ciência: os Yanomami e a construção exoticista da alteridade."
O livro é resultado de associações entre fotografias desveladas como constelações, que emergiram após um longo e profundo mergulho de edição no acervo do autor formado por mais de duas mil imagens. Para ela, o autor " pontua a urgência de se tecer outras histórias não ocidentais da fotografia brasileira, descoladas de uma história única, defendida por muito tempo em campos especializados do conhecimentos." define a editora.
Imagens extremamente líricas, stills de flores abstratos abrem para o leitor a representação de sua cosmogonia, tão cara ao imaginário indígena, a qual ganha a amplitude visual do firmamento em seu esplendor, destacando o cenário da natureza- ao mesmo tempo uma visão poética e um manifesto contrário às atitudes do homem branco que vem desprezando este conceito estabelecendo resultados nefastos. Em seu texto: “Antigamente muitas pessoas eram conhecidas por virar toco, animais, folhas e então se dizia que esta capacidade é uma "ciência" um conhecimento dos antigos. Ver esse "outro mundo" é coisa de gente preparada e que tem "ciência" como os pajés. Ver esse "outro lado" sem os devidos cuidados e a preparação necessária pode levar a uma série de "alucinações" e até mesmo a um estado de loucura. Na aldeia a gente não aprende a lidar com a roça sem lidar com a "ciência" das plantas, dos bichos, dos tempos."
Imagens mais textos consolidam a estrutura ontológica do autor ao continuar pelo caminho natural, flora e fauna, em um belo preto e branco e cores românticas, ora a lembrar uma captura em infra-vermelho, nas árvores, nos ninhos de pássaros, nas asas de uma borboleta, nas patas assombrosas de um réptil, caminhando para uma alegoria do conhecimento ancestral, do homem e a natureza ou nas cores meio borradas próximas das experiências das capturas lisérgicas feitas pela fotógrafa suíça Claudia Andujar com os Yanomami nos anos 1970."Quando uma pessoa mais velha diz de onde veio, sempre aponta com o dedo mostrando que foi de muito longe. Outros relembram que, no passado, eram só um povo, junto com os Xavante e Xerente, formando assim os Akwê, vivendo no Brasil central. Quando se fala em povo Xakriabá, costuma-se dizer que habitam à margem esquerda do Rio São Francisco. Mas no atual território que vivemos não temos acesso ao rio..."
Inegável também é o caráter epistemológico que o autor adiciona ao artístico, quando descreve o conhecimento ancestral em seus textos enquanto procura também o registro mais documental e contemporâneo das manifestações urbanas pela causa indígena, uma vivência politizada de seu grupo, estruturada pelas novas gerações dos povos originários, essenciais no debate de seu tempo.
Se na estética romântica literária, as alegorias foram substituídas pelos símbolos, no sentido de uma ideia geral ou ideal, sendo que a primeira seria mais artificial e exterior ao seu conceito. Entretanto, esta se manifesta no romantismo brasileiro, com a ideia de realismo, como pode-se notar na obra de Machado de Assis (1839-1908) ou Oswald de Andrade (1890-1954), em sua fotografia Edgar Xakriabá aproxima seu imaginário aos detalhes mais emblemáticos e figurativos. Daí, por exemplo, os rituais das lutas indígenas, tão registrados ad nauseam, ganharem nova dimensão pela sua construção mais poética, descartando o confronto e revelando paradoxalmente certa amorosidade em seu extremo realismo.
Não é à toa que a maioria das imagens são noturnas, a reforçar a ideia das constelações, aludida pela editora Fabiana Bruno. Na alegoria proposta pelo autor, “a "noite" guarda seus segredos, como um modo fabulatório de seu projeto criativo, ao articular suas diferentes abordagens, com substratos conceituais estéticos próprios em suas cenas, mas entrelaçadas em um todo, constituintes de uma sedimentação histórica de sua herança e seu estado contemporâneo: " Os Xakriabá, assim dizem os mais velhos, são conhecidos como o povo do segredo. O segredo é importante para manter aquilo que somos. Não no sentido de "preservar" e sim de cuidar, de ter consciência daquilo que é parte. É um tipo de conhecimento que não é transmitido nos mesmos modos do mundo dos brancos. Quando se trata de segredo, há de se remeter ao sagrado..."
"Como almas as fotografias em Hêmba são as próprias evocações de outras existências e memórias." acertadamente escreve Fabia Bruno. " Os seus altos contrastes, de cores vibrantes. luzes e forma intangíveis transparecem como imagens densas e porosas, cujas espessuras resultam não explicações de mundos mas em manifestações de luzes e reverêcias de sinais..." Continua ela: Há de se concordar igualmente com suas ideias de 'temporalidades imemoriais" e da fotografia como o devir exploratório da vida, intrínseca ao seu processo primordial.
Imagens © Edgar Kanaykõ Xakriabá. Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Publisher: Eder Chiodetto
Coordenação editorial: Elaine Pessoa
Edição: Fabiana Bruno
Co-edição Fabiana Medina e Eder Chiodetto
Textos: edição trilíngue ( Akwê/Português/Inglês) Edgar Xakriabá e Fabiana Bruno
Consultoria editorial: Sylvia Caiuby Novaes
Design gráfico: Fábio Messias e Nathalia Parra
Impressão: 1000 exemplares, brochura, papel Munken Lynx Rough Gráfica Ipsis
Para adquirir o livro https://fotoeditorial.com/produto/hemba/
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IOLE DE FREITAS Anos 1970-Imagem como presença > HELENA ALMEIDA Fotografia habitada.

Helena de Almeida

Iole de Freitas
A arte é vida e movimento, muitas vezes interligados ao enigmático além do artístico, uma porta aberta a mostrar mistérios da vida e longe de ser superficial. Apresentada abertamente pela fotografia, alcança profundidade pela representação do Eu (a modificação por influência do mundo externo, que acentua a alteridade do autor). Além disso, essas imagens vão além da câmera, na maioria das vezes apenas um suporte. Imagens formadas por múltiplos meios, para que o resultado materialize-se na visão do artista com o apuramento de conceitos e sentimentos. O que vemos aqui em dois livros: Helena Almeida Fotografia habitada ( IMS, 2023) e Iole de Freitas Anos 1970-Imagem como presença (IMS, 2023), na construção de elaboradas narrativas que articulam o ficcional e o real.
As duas publicações são resultado de exposições nas galerias do Instituto Moreira Salles este ano. Esta última de maio a setembro, na sede paulista [e agora no Paço das Artes, Rio de Janeiro, de dezembro de 2023 a março de 2024] e a primeira de junho a setembro de 2023. Ambas mostram duas autoras com merecido reconhecimento internacional, como a lisboeta Helena Almeida (1934-2018) cuja carreira inicia em 1967 e a mineira Iole de Freitas, que iniciou a sua obra em 1970. Portanto, contemporâneas em amplo sentido, no tempo e no uso da fotografia como expressão artística, bem como em certo pioneirismo da expressão mais conceitual na abordagem visual de si mesmas.

Helena de Almeida
Iole de Freitas mostra trabalhos de mais de cinco décadas, alguns raramente exibidos, muitos deles conhecidos apenas de um círculo restrito de admiradores, afirma a curadora Sônia Salzstein, professora de História da Arte e Teoria da Arte do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Centro de Pesquisa em Arte Brasileira. "Embora as fotos, os filmes e as instalações da mostra talvez surpreendam o público que, desde o início da década de 1980, se habituou a associar a artista ao campo da escultura..." explica ela.
Para Salzstein é a primeira vez que um conjunto tão numeroso e representativo da produção desse período é apresentado, obras que já anunciavam características que de um modo ou de outro emergiram em tudo o que ela produziria depois – "mesmo que as peças em exibição, a diferença das esculturas, sejam feitas de algo tão imponderável e esquivo como a matéria luminosa das imagens."

Iole de Freitas
Helena Almeida disse certa vez: “A minha pintura é o meu corpo, a minha obra é o meu corpo”. Embora seu trabalho, questionador na essência, seja, por vezes, tratado como arte corporal, vemos uma variedade de meios como fotografia, performance, desenhos e vídeos. Suas atitudes ambíguas, cenários simples e acessórios pobres (arame de metal, cânhamo, espelhos, pigmentos em pó, entre tantos) a tornaram em pouco tempo reconhecida na Europa. O livro estrutura-se em sua maior parte em registros fotográficos auto referenciados de ações performáticas e alguns desenhos. Imagens ora líricas com inserção de pinceladas da cor azul IKB (Ink Klein Blue) -a nos lembrar do genial francês Yves Klein (1928-1962)- e outras mais contundentes pelo forte contraste do preto e branco.
"Passei para a fotografia através do desenho. Foi o desenho dos fios (colagens de fios de crina) que me obrigou à necessidade de ser fotografada." Para Almeida a linha no papel havia tornado-se sólida, liberta do papel e só através das fotografias isso podia ser expresso e representado, diz ela no livro A minha obra é meu corpo (Fundação de Serralves, 2015). Definindo assim suas preocupações e a diversidade de suas disciplinas, uma espécie de litania, como afirmava a crítica de arte e curadora portuguesa Isabel Carlos já em 1998, que organizou o volume atual do IMS.

Helena de Almeida
Se na obra da artista portuguesa o preto e branco mais definido tem sua preferência, acontece o oposto com a brasileira Iole de Freitas. Salvo poucas exceções a predominância é da cor em movimento e texturas mais acentuadas, fruto também de projeções, onde a autorreferência é igualmente presente. Em nota do texto da curadora, "casca" é um termo que a artista usa para referir-se ao próprio corpo em um breve texto datilografado originalmente escrito em italiano de 1972, no qual descreve sucintamente o filme Elementos (1972), "O corpo visto como matéria, a pele como casca, substâncias que se transformam, se movem, se alteram como a água e o mercúrio. A ideia do próprio corpo como elemento construtivo de sua obra, aproxima-se de Helena Almeida, ainda que o resultado seja distinto graficamente.

Iole de Freitas
Isabel Carlos com pertinência coloca que a realização da artista - em que resiste em identificar como fotografias, designando-as por "sequências fotográficas", é o encontro de uma sincronia entre seus movimentos, deu dispêndio físico e emocional enquanto se desloca e aciona o disparador da câmera fotográfica: "as imagens voláteis do corpo que os fragmentos de espelhos dispostos no chão oferecem à câmera ( e eventualmente, à artista) e, finalmente, as imagens que só as lentes lograram ver e fixar toda a performance."

Helena de Almeida
A ideia do registro fotográfico de uma performance, que por sua vez transforma-se na própria obra do autor, ou parte dela, remonta algumas décadas, como podemos ver nestes dois trabalhos aqui comentados. A estes, podemos juntar imagens de outras artistas contemporâneas a elas, que propõem uma leitura corporal, como Cut Piece, da japonesa Yoko Ono registros de sua histórica apresentação no Sogetsu Art Center de Tóquio, de 1964 que pode ser visto no livro Yoko Ono: One Woman Show, 1960-1971 (MoMA, 2015). Aqui no Brasil, vale lembrar do livro da artista sérvia Marina Abramović, Places of Power (com fotografias de Marco Anelli) produzido pela galeria paulistana de Luciana Brito em 2015, que inclui seu Diário do Brasil - 2012-2013, onde a utilização do próprio corpo estão presentes em imagens fotográficas.

Iole de Freitas
O trabalho de Iole de Freitas dos anos 1970 guarda algo da imagina��ão estética do corpo que inspirou as trajetórias de Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927- 2004) e Hélio Oiticica (1937-1980), diz Sônia Salzstein, uma imaginação que persistia como uma cintilação póstera do movimento neoconcreto que se transmitiu a jovem artista, a partir de meados da década de 1960, desde o tempo que ela praticava dança e frequentava o meio artístico carioca. Já em sua entrevista com Helena Almeida, a curadora Isabel Campos destaca que a questão da autoria sempre esteve presente em seu trabalho porque utiliza o seu próprio corpo como veículo primeiro da obra. Almeida argumenta que mesmo antes da fotografia já sentia-se como uma autora. "Parti de linguagens familiares ao princípio porque é assim que todos começamos.”

Helena de Almeida
As duas belas publicações quase simultâneas, do IMS celebram a importância da posição feminina na arte fotográfica em seus manifestos transmitidos por uma expressão corporal intensa, lírica e essencialmente autoral, que destacam as suas distintas maneiras de ver o mundo e a si mesmas. Mais do que isso, completam-se ao discutir a importante produção das mulheres nos anos 1960 e 1970 e seus inter-relacionamentos, que até hoje mostram-se de vanguarda. Ainda que distantes geograficamente, consolidam a suas posições na arte contemporânea.

Iole de Freitas
Imagens © Helena Almeida e Iole de Freitas Texto © Juan Esteves
Infos básicas:
Helena Almeida
Organização: Isabel Carlos
Projeto gráfico: Bloco Gráfico/ Ass.Stephanie Y.Shu
Tratamento de Imagens e Impressão em capa dura : Ipsis Gráfica e Editora
Iole de Freitas
Organização: Sônia Salzstein/ Ass. Leonardo Nones
Projeto gráfico: Celso Longo+Daniel Trench, Caterina Bloise e Bárbara Catta
Fotografias: Vicente de Mello, Ass. Guilherme Siqueira
Tratamento de imagens: Núcleo de Digitalização IMS
Impressão brochura: Ipsis Gráfica e Editora
para adquirir as publicações ims.com.br
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CERCO FLUTUANTE > Helena Giestas KIRIRI> Ivonete Leite
imagem: Ivonete Leite
Imagem: Helena Giestas
Cerco Flutuante, da paulista Helena Giestas e Kiriri, da mineira Ivonete Leite, são dois livros da Fotô Editorial publicados neste final de ano com edição do fotógrafo e curador Eder Chiodetto e da professora e pesquisadora Fabiana Bruno. O primeiro reúne fotografia, monotipia e desenho com técnicas mistas (em parceria com Peter Erik Siemsen) e o segundo além da fotografia constrói seu itinerário usando técnicas como a frottage e a assemblagem. Ambos evocando um conjunto próximo de abstrações em agudas interseções imagéticas essencialmente gráficas expandindo o uso da câmera e ampliando o conceito de seus trabalhos para uma interessante forma de arte mais artesanal cujos resultados projetam representações mais atemporais.
A abstração- a idéia de que elementos das coisas visíveis representam pouco ou nenhum papel na arte, e mais calcada em forma, cor, linha, tom e textura: "uma superfície coberta por cores em uma determinada ordem..." como pensou o artista francês Maurice Denis (1870-1943) ainda no século XIX, rompendo com a tradição renascentista, abandonando a representação da realidade mais exata. Com diferentes percursos está incluída no que genericamente chamamos de simbolismo, uma arte distinta. É alcançada pela eliminação das "impurezas" dos fatos e mantendo o essencial de sua estruturas, uma questão vital, pois está na raiz de cada discussão sobre a fotografia como uma forma de arte.
Imagem: Ivonete Leite
Como sugere o nome, a fonte de Ivonete Leite, está na região do Cariri, outrora chamado Kiriri pelos povos originários da região do sertão da Paraíba, atribuída pelo povo Tupi, da costa deste estado cujo significado é "calado" ou "taciturno". Na poética definição do curador Chiodetto: "é uma dessas áreas que nos defrontam com os mistérios da formação do universo" O que certamente amolda-se ao conjunto de imagens e design gráfico evocativos e sublimes, onde a sua peculiar paisagem e suas frottages percorrem páginas cobreadas e monocromáticas em contraste com a imagem fotográfica em preto e branco mais tradicional.
Imagem: Ivonete Leite
O curador explica, que a autora em 2015, ao deparar-se com a geologia local que insinuava "terem sido esculpidas pelo divino" foi arrebatada por formas análogas à "paisagem lunar ou outro corpo celeste entrando em estado de gravidade ou flutuação", o que a transportava para uma perceptível manifestação de um tempo imemorial. "Enigmas que rondam a ordem cósmica e os desígnios da natureza." Certamente, as estruturas naturais das rochas arredondadas são recordativas de uma certa construção enigmática, que paralelamente aos belos mandacarus, plantas nativas do semiárido brasileiro, fornecem um bem elaborado contraponto por seus atributos tipológicos claramente românticos e belos.
Imagem: Helena Giestas
Cerco Flutuante para Fabiana Bruno é “ uma obra em que imagens se desdobram nas tentativas inventivas de imprimir tempos sobre tempo. Vidas, materiais e pessoas se entrelaçam por meio de linhas que Helena Giestas intercepta com o seu olhar e as transforma em emaranhados que se metamorfoseiam nas superfícies. As imagens- linhas traçadas pela prática artística da fotógrafa em Cerco Flutuante são também forças invisíveis, que se expressam como vínculos, afetos, memórias e costuram mundos."
Imagem: Helena Giestas
Neste sentido, Helena Giestas produz trabalhos que juntam-se a desenhos e pinturas por afinidades estéticas e íntimas, aqueles produzidos pelo grafite e tinta de seu avô Peter Erik Siemsen e a sua fotografia que revela as tramas urdidas pela natureza, enquanto o mar traça suas linhas em sua borda e relevos são esculpidos em rochas, assim como galhos de árvores secos acomodam-se na transição de suas existências e na transmutação para uma arte híbrida bem constituída.
Imagem: Ivonete Leite
A aproximação da representação abstrata, fruto da criação do autor e uma fotografia, resultado de uma reação química ou digital, algo produzido por um registro mecânico, já mostrava-se interessante concomitantemente à pintura e outras artes nas primeiras décadas do século XX, mas ganha atenção quando em 1951, o Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York promove a mostra Abstract Photography, com curadoria do luxemburguês Edward Steichen (1879-1973). Pela primeira vez fazia-se uma tentativa de definir a ideia de uma abstração fotográfica, tanto seu método quanto o conteúdo em uma exposição eclética com autores como o suíço Robert Frank(1929-2019), os americanos Louis Faurer (1916-2001), Harry Callahan (1912-1999) e Man Ray (1890-1976), o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), o húngaro László Moholy-Nagy(1895-1946) e até mesmo nosso conhecido Thomaz Farkas (1924-2011),húngaro radicado no Brasil, entre umas duas dezenas de autores, em 150 images.
Imagem: Helena Giestas
Considerando também a difusão da fotografia mais ligada a arte provocada pela Editorial Fotô, lembramos de alguns livros que associam-se ao conteúdo produzido por Helena Giestas e Ivonete Leite, como por exemplo os belíssimos Sublimação (2014), da artista paulistana Ana Nitzan e Herbário Baldio, (2019), da também paulistana Ana Lucia Mariz. [ Leia aqui review https://blogdojuanesteves.tumblr.com/post/185680834281/herb%C3%A1rio-baldio-ana-lucia-mariz ]. Ambas publicações que desenvolvem as técnicas e conceitos já comentados aqui anteriormente, os quais representam mais fielmente um "livro de artista".
Imagem: Ivonete Leite
Cerco Flutuante e Kiriri, transcendem o discurso pessoal, ainda que sustentados em parte por tal, e ampliam os requisitos da imagem a outros patamares. Objetos que "devem finalmente ocupar o seu lugar no campo tonal da imagem e conformar-se ao seu ambiente espacial." como pensou o fotógrafo e poeta americano Aaron Siskind (1903-1991) - A ideia de que suas estruturas entram em cena de certa forma e que, mesmo fotografadas diretamente, muitas vezes transformam-se em outras, pois tiradas do seu contexto habitual, dissociadas dos seus vizinhos habituais e levados a novas relações. Momento em que a consciência das artistas (o que sentem, a imagem a fazer, a relação destas com outras já feitas e outras experimentações.) surge pela habilidade em criar “amálgamas dessas matérias” como escreve Fabiana Bruno ou de transcender o tempo geológico, em metáforas de tempos-espaços, como escreve Eder Chiodetto.
Imagens © das autoras. Texto © Juan Esteves
Infos básicas
Kiriri
Fotografias, Frotagens e Assemblages" Ivonete Leite
Edição e Texto: Eder Chiodetto
Co-edição Fabiana Bruno
Projeto gráfico: Rafael Simões
Coordenação Editorial: Elaine Pessoa
Tratamento de imagens: José Fujocka
Impressão: Gráfica Ipsis- 500 exemplares- capa dura
Cerco Flutuante
Concepção, Fotografias e monotipias: Helena Giestas
Desenhos com técnicas mistas: Peter Erik Siemsen e Helena Giestas
Edição e Texto: Fabiana Bruno
Co-edição: Eder Chiodetto
Design Gráfico: Letícia Lampert
Coordenação Editorial: Elaine Pessoa
Tratamento de imagens: José Fujocka
Impressão Gráfica Ipsis - 500 exemplares assinados e numerados - brochura
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