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uma receita; mais uma cidade

Me preparo para fazer as malas novamente.
Desta vez eu tinha certeza que ficaria aqui para o resto da vida. Eu senti que eu tinha encontrado um lar para permane(ser). Eu fiz um transporte de mudança cruzando do cerrado brasileiro, para o sudeste e região sul do brasil. Como eu posso estar arrumando as caixas e me despedindo de plantas, objetos e de uma casa inteira, novamente? Foram 7 meses. O que são 7 meses no percurso de uma vida? Qual a marca que essa morada deixará em mim? Não sei. Hoje passei horas conversando com o mar, pedindo compreensão, mas ainda é tudo breve, tudo fulgaz, ainda tudo me foge.
Para me entender,
cozinho.
Cozinho convocando uma abuela que mora em mim e me dá calma. Para convocar minha abuela, preparo qualquer coisa que vá para o forno, que exija um preparo com procedimentos, esperas, fermentações, cozimentos demorados… cozinho, cozinho em silêncio, somos eu e minha abuela em conversa profunda. Resolvo repetir a receita da cuca de uva vegana, com massa de fermentação natural que eu inventei há algumas semanas. Quero repetir a receita e entendê-la melhor para poder replicá-la. Estou motivada e estimulada com a possibilidade de oferecer minhas experiencias gastronômicas para um público em breve.
Enquanto preparo a massa do bolo, deixo-a em fermentação lenta por algumas horas, preparo as uvas para a cuca, manejo os ingredientes, canto e cuido da cozinha, começo a pensar: e se o sentido de vir até aqui fosse ter esse pequeno lapso de inspiração que me fez fazer esse bolo? E se, uma pequena abertura de criação fosse o que me trouxe até aqui, teria valido a pena? Estar aqui, fazendo este bolo nesta tarde de sábado com ventania e sol azul, teriam feito esse percurso valer a pena?".
Como sabemos que chegou ao fim um percurso, um relacionamento, um trabalho, uma cidade? o que nos indica que há uma morte para ser aceita, para que haja um renascimento logo adiante?
As expectativas são sempre gigantescas, movidas ora por otimismo ora por pessimismo. Meu lado sonhadora, otimista, achou que faria casa e uma família nesta ilha. E isso fez eu sonhar e experienciar esse lugar com um corpo e um coração lotado de expectativas. Cada parte do meu percurso, virou um percurso inventado com alguma expectativa futura sem hora para se materializar num contexto tão maluco, singular e intempestivo como este de aqui e agora. Quando não sou otimista, estou sempre de malas prontas, com a sensação terrível de profundo não pertencimento, que já me fez mover mudanças drásticas as quais até hoje ainda vivo seus lutos e cato com cacos que foram deixados em esquinas de saudade.
Mas, o que faz uma experiencia valer a pena? O que nos diz que aquilo ali que foi vivido, já se bastou e que está tudo bem seguir em frente?
Pensando sobre isso tudo, fiquei viajando sobre a receita da cuca de uva. Eu jamais fiz uma cuca em Goiânia, no Rio de Janeiro ou em Curitiba. E muito menos, uma cuca de uva niagra orgânica, de cultivo tão específico em algumas regiões do país. A cuca é uma receita típica das abuelas do sul do brasil. Minha abuela fazia bolo de arroz e mané pelado, no Rio de Janeiro, nunca soube o que as abuelas cariocax faziam (acho que elas compravam bolo na padaria ou faziam bolinho de chuva). E foi aqui, em Santa Catarina que num belo dia, após encontrar uvas fresquinhas e orgânicas no mercado eu decidi: eu vou fazer uma cuca de uva. E eis que comecei a saga da busca das receitas.
Todos os meus bolos são veganos e sem nenhum ingrediente transgênico. E por isso, HAJA busca, cálculos, substituições para fazer um bolo. E assim após um misto de receitas de mil abuelas, jovens e youtubers descoladas, eu fiz minha primeira cuca na vida. Na verdade, essa é praticamente, a primeira cuca de verdade que eu já comi. Vegana, caseira, com pouquíssimo ingredientes, todos integrais.
A primeira receita - pura sorte de principiante - deu certo. E hoje, repeti e vingou de novo. Após um sábado de mar, degustei essa maravilhosidade que tem um dos aromas mais especiais que já saíram do meu forno mágico. Fiquei sentindo o aroma um tempão, depois fiz uma foto. Sob a forma ainda quente, coloquei um pano que era de uma abuela, que passou para sua filha e chegou até eu, por acasos de destino amoroso. Naquele pano, muita história, muitas travessias e derivas, e sob o pano, mais uma camada de histórias e travessias.
E se, esta travessia, tivesse me trazido para este ínfimo segundo de aroma e sabor, as coisas teriam valido a pena?
Talvez essa pequena sensação de prazer me cure de toda e qualquer expectativa e sensação de loucura por sentir-me insana em minha itinerância. Talvez o momento em que decido criar algo, levo a sério e desdobro mil caminhos e experiências gustativas, me mostre que há sanidade no meio do caos, e que há beleza em cada segundo. E que, cada segundo, vale o percurso inteiro.
E agora, qual a próxima cidade? Qual a próxima receita?
ps.: a cuca foi um ótimo motivo para me despedir das amigas do bairro. rolou distribuição de cuca entre as amigas amadas, nos últimos dias da cidade.
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0. CONVITE PARA O CHÁ CAÓTICO como seria receber um convite para um chá em meio a um cruzamento movimentado de uma grande cidade? Te mando um bilhete, informo que te encontro no cruzamento entre a rua tal e aquela outra, naquele pequeno, quase triângulo, que se forma no entrecruzar delas. sabe aquele espaço que não é nem para ser utilizado pelos pedestres e nem pode ser atravessado pelo ônibus? entre cá e lá, um vacúolo sonoro feito de motores e marulhos. um respiro – que quase nunca é respeitado – mas ainda assim, um respiro. então, o chá será ali. preciso conversar com você, te contar um pouco sobre o meu encontro com a cidade e não consigo pensar numa situação mais propícia que um chá caótico para isso. já adianto que estou levando uma pequena mesinha e banquinhos, uma chaleira, torrões de açúcar e três xícaras – nunca se sabe se alguém passa por nós e acaba achando interessante o convite
trecho introdução da dissertação de mestrado cor(poro)cidades: experimentando (re)existências ((http://www.slab.uff.br/images/Aqruivos/dissertacoes/2014/2014_d_CamilaCaires.pdf))
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