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O caçador virou caça: da poupança à desgraça
por Fabiane Carvalho @fabicfc90
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O ano era 1989, um país inebriado pelo sucesso “Tieta” e com grandes investimentos da TV Globo na produção e transmissão de novelas, que elevaram o padrão técnico e estético das produções, apostando em gravações externas, trilhas sonoras marcantes e cenários grandiosos para captar o novo espírito da televisão brasileira, que ia ao encontro do novo espírito pós-ditadura de libertação cultural. Tieta representava, em sua exuberância e insolência, um anseio popular por renovação, justiça contra elites decadentes e liberdade — não apenas no corpo, mas na própria vida social. Era a fantasia de uma sociedade cansada de escassez, censura e promessas vazias. A personagem Tieta, interpretada por Betty Faria, era uma jovem expulsa de sua cidade natal, Santana do Agreste, por comportamento considerado imoral. Anos depois, retorna rica e poderosa, desafiando os antigos valores locais e expondo a hipocrisia da elite social e religiosa. A novela mesclava humor, crítica social e sensualidade, criando uma narrativa de revanche e transformação que fascinou o público brasileiro.
A novela que exibia sem pudores a hipocrisia das elites locais e da Igreja causou grande alvoroço na população, provocando discussões acaloradas sobre quem estava certo ou errado, representava a ideia de renovação através do escândalo, justiça contra a hipocrisia e ascensão da periferia sobre as elites provincianas. Este enredo foi muito bem aproveitado por Duda Mendonça, primeiro marqueteiro da campanha de Fernando Collor, que apostou em forjar uma estética para a campanha baseada nesse ideário popular. O simbolismo que carregava a imagem de Collor correndo na praia, praticando esportes, para simbolizar vigor, velocidade e energia, era tudo que o brasileiro, cansado da burocracia e da corrupção lenta, queria ver. O jovem político de classe média alta, atlético, elegante, com boa aparência, representava a modernização e o combate aos "vícios da velha política". Tal dinamismo e vigor deveria se refletir na sua atuação como presidente, assim os eleitores de Collor esperavam, afinal ele era o “caçador de marajás”.
Não bastasse uma atuação política marcada por escândalos como o caso PC Farias — seu tesoureiro de campanha acusado de tráfico de influência e enriquecimento ilícito —, denúncias de corrupção no governo, favorecimento de empresas amigas e compra superfaturada de equipamentos para programas públicos, Fernando Collor também foi o responsável pelo confisco das poupanças dos brasileiros, conhecido como o “Plano Collor”. Em março de 1990, no início de seu governo, Collor anunciou que todas as cadernetas de poupança e contas correntes com valores acima de 50 mil cruzeiros novos (cerca de 6 mil dólares da época) seriam bloqueadas por 18 meses. O objetivo alegado era combater a hiperinflação, mas, na prática, o plano sequestrou a liquidez da população, congelando o dinheiro de milhões de brasileiros sem aviso prévio. Esse gesto provocou uma onda de revolta e desconfiança irreversível no governo, quebrando rapidamente a esperança que sua imagem vigorosa havia gerado.
Hiperinflação: a herança da ditadura militar
A hiperinflação que assolava o Brasil no final da década de 1980 foi resultado de anos de descontrole fiscal, crescimento excessivo da dívida pública e sucessivos fracassos de planos econômicos que tentaram conter o aumento de preços por meio de congelamentos e choques heterodoxos. Na prática, o governo gastava mais do que arrecadava, e para cobrir esse rombo emitia moeda, alimentando um ciclo vicioso de desvalorização e alta desenfreada dos preços. Em 1989, a inflação anual ultrapassou a marca de 1.700%, corroendo salários de maneira brutal. Nos supermercados, os preços mudavam várias vezes ao dia: funcionários reetiquetavam produtos com etiquetas novas, às vezes enquanto os consumidores ainda estavam nas prateleiras. Comprar mantimentos se tornou uma corrida desesperada contra o relógio — o dinheiro desvalorizava tão rápido que, muitas vezes, a quantia que se tinha na mão de manhã já não era suficiente à tarde para o mesmo carrinho de compras. Era um cenário de instabilidade extrema que gerava insegurança social e econômica generalizada.
Essa crise não surgiu do nada: foi, em grande parte, a herança do modelo econômico adotado durante a ditadura militar (1964–1985). Apesar do mito do "milagre econômico" da década de 1970, o regime militar baseou o crescimento em endividamento externo massivo, concentração de renda e privilégios fiscais para setores específicos. O que parecia ser crescimento acelerado era, na verdade, uma bolha sustentada por empréstimos internacionais baratos — que, com a crise do petróleo e a alta dos juros no exterior, se tornaram impagáveis. Nos anos finais da ditadura, o país já enfrentava inflação crescente, recessão, desemprego e dívida pública explosiva. Além disso, o autoritarismo eliminou qualquer espaço para a sociedade civil cobrar responsabilidade fiscal ou transparência, agravando a ineficiência e a corrupção estrutural. Ao longo da década de 1980, conhecida como a "década perdida", o Brasil amargou as consequências desse modelo insustentável, culminando no caos hiperinflacionário que Fernando Collor herdou — e tentou enfrentar com medidas extremas como o confisco da poupança. Assim, longe de ter deixado um legado de desenvolvimento sólido, a ditadura militar entregou ao país uma economia frágil, desequilibrada e profundamente injusta.
Emissão de moeda: a tática desastrosa para controlar a hiperinflação
Para tentar contornar as crises fiscais e econômicas durante e depois da ditadura militar, o Brasil recorreu repetidamente a uma solução perigosa: a emissão descontrolada de moeda. Em termos simples, isso significa que o governo, sem ter dinheiro suficiente para pagar suas despesas, mandava imprimir mais dinheiro para cobrir seus gastos — como salários, obras públicas e pagamento de dívidas.
Embora, à primeira vista, essa estratégia pareça uma saída rápida — afinal, se falta dinheiro, basta fabricar mais —, na prática ela tem consequências graves. Quando o governo injeta muito dinheiro novo na economia, sem que haja um aumento correspondente na produção de bens e serviços, o resultado inevitável é a perda de valor da moeda: ou seja, a inflação.
Imagine que a quantidade de produtos nas prateleiras continua a mesma, mas agora há muito mais dinheiro circulando. As pessoas têm mais dinheiro no bolso e passam a disputar esses mesmos produtos. O que acontece? Os preços sobem. Esse movimento gera uma espiral: os preços sobem, os salários tentam acompanhar, o governo emite mais dinheiro para pagar esses salários, e assim por diante, alimentando o círculo vicioso da hiperinflação.
No caso brasileiro, essa prática de imprimir moeda para financiar déficits públicos se tornou crônica. Durante a década de 1980, sucessivos planos econômicos tentaram estancar o problema com congelamentos de preços e trocas de moeda (como o cruzado, cruzado novo e depois o cruzeiro novo), mas sem atacar a raiz do problema: o descontrole dos gastos públicos e a emissão desenfreada de dinheiro. O resultado foi uma escalada inflacionária tão severa que, na virada para 1990, a simples ida ao supermercado se tornava um exercício de sobrevivência financeira, com preços mudando de hora em hora.
A emissão irresponsável de moeda é, portanto, como tentar apagar um incêndio jogando gasolina: oferece um alívio imediato ilusório, mas rapidamente agrava a crise em proporções catastróficas.
O fim de um ciclo: da esperança ao acerto de contas
Trinta e cinco anos após o confisco da poupança, Fernando Collor foi preso em Maceió, Alagoas, para cumprir uma pena de oito anos e dez meses por corrupção e lavagem de dinheiro, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal. A prisão ocorreu na madrugada de 25 de abril de 2025, quando o ex-presidente se preparava para se deslocar a Brasília. A condenação está relacionada a esquemas de propina envolvendo contratos da BR Distribuidora e a construtora UTC Engenharia. A coincidência temporal entre o aniversário do confisco e a prisão de Collor serve como um marco simbólico do encerramento de um ciclo histórico, ainda que o país siga demonstrando, em sua dinâmica política recente, que velhas ilusões autoritárias e salvacionistas continuam a encontrar terreno fértil.
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