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Visita
Ele amava sua casa. Sempre com muito cuidado deixava a casa em ordem. Sentia-se muito bem lá. Nunca saia de casa. Não via motivo para sair, tinha tudo o que precisava ali. E quando sentia vontade, convidava pessoas para conhecê-la. Era um ótimo anfitrião e adorava receber visitas. Sempre tinha o cuidado de deixá-las felizes, à vontade, como se estivessem em seu próprio lar. Agradava-lhe o fato de receber diferentes visitas, e como cada uma contava o mundo de forma singular. Fazia café, servia comida, contava histórias, ouvia histórias e sempre deixava a poltrona mais gostosa para a visita. Queria, também, saber o que mais a agradava, com muita atenção aos detalhes e sempre pensando em como ela se sentiria ali, em seu lar. Amava ver as visitas felizes por ali estarem. Por um bom tempo, recebeu visitas e gostava disso. Gostava muito. Gostava do som que a campainha fazia quando alguém chegava. Gostava de ouvir os passos através da porta. Sabia que alguém estava chegando. Seu corpo esquentava, começava a transpirar, sentia as borboletas alçando voo em seu estômago, pensando no que podia dar errado, mas no fim das contas, lembrava-se de sua bela casa, como estava bem preparado para receber alguém e se lembrava porque gostava de receber visitas.
II
Em uma tarde qualquer, a campainha tocou. Estava animado, como sempre, para receber mais uma visita. Sentia-se animado. A casa estava em ordem. Tinha até trocado os tapetes e as poltronas da sala, sempre mantendo uma mais confortável que as outras, pensando em reservá-la para a visita. Como de costume, abriu a porta com um sorriso sincero, saudou a visita e com um gesto caloroso, a convidou a entrar, oferecendo um café e algo para comer. Mostrou-lhe a casa e o jardim. Enquanto conversavam, foi guiando sua visita para a sala, onde adorava ficar. Via na sala o espaço perfeito para se receber alguém. A princípio, sentia o fluir da conversa e estava feliz com isso. Estava adorando as conversas que escutava e se sentia muito à vontade para compartilhar das suas.
No meio das risadas e dos petiscos, sentiu algo estranho. Nunca tinha sentido aquilo antes. Se sentiu cansado. Sentiu que precisava se deitar. Não entendeu muito bem, mas seu corpo e sua mente pediam por um descanso. Mas como dizer isso à visita? Talvez ela fosse se sentir ofendida. Não poderia pedir para que ela fosse embora subitamente, afinal estavam ali conversando e estava tudo bem. Depois de algum tempo matutando o que deveria fazer, resolveu então, na mais boa das intenções, comunicar à sua visita que precisava ir para o quarto se deitar. Pediu desculpas, mas disse que ela poderia ficar ali quanto tempo quisesse e que qualquer coisa que precisasse, podia lhe chamar. A visita pareceu não se importar muito. Estava à vontade. Concordou e lhe desejou melhoras. Ele foi para o quarto e, respondendo às necessidades de seu corpo curiosamente cansado, dormiu. Não sabe por quanto tempo.
III
Levou um tempo para que acordasse completamente, depois de um sono tão profundo. Quando finalmente despertou, não reconheceu, a princípio, o lugar onde acordara. Esfregou os olhos e olhou de novo – quando reconheceu, seu corpo todo congelou. Foi como se o tempo tivesse parado, todos os sentidos atordoados e todas as emoções tivessem se esvaído. Por alguns segundos, nada aconteceu. No mesmo instante em que voltou para si, sentiu uma dor muito forte crescendo em seu peito, como se quisesse sair. Em questão de segundos, a dor foi aumentando até que finalmente saiu. Caiu em prantos. Ele estava imóvel, ainda sentado na cama, chorando como nunca tinha chorado, olhando seu quarto destruído. Sim, seu quarto, que tanto gostava e cuidava, em ruínas. Os lixos revirados no chão, seus livros rasgados e espalhados pelo quarto, sua TV e cadeiras quebradas, todas as paredes pichadas, o armário que antes guardava as roupas, com as portas quebradas e, tudo que antes havia nele, destruído e jogado pelo chão. O lugar estava praticamente irreconhecível. Levou um tempo para que conseguisse parar de chorar.
Quando os soluços tomaram o lugar do choro, tentou se recompor. Começou a respirar fundo. Levantou e, desviando dos restos no chão, caminhou até a porta, já temendo o pior. Mesmo tendo se preparado segundos antes, não conteve a tristeza e, sentando-se no chão, desolado, voltou a chorar. A casa toda havia sido destruída. Sala, cozinha, banheiro, tudo. Todos os móveis quebrados e fora de lugar, janelas em cacos, papéis de parede rasgados. Até mesmo algumas partes da parede haviam sido destruídas. Pequenos objetos, decorações, tudo quebrado e espalhado pelo que restou de seu lar. Lá fora, no jardim, o mesmo. Flores arrancadas e mortas, a grama toda maltratada, mais lixo espalhado. Quando finalmente parou de chorar, sua cabeça doía. Não conseguia entender o que tinha acontecido. Sua visita tinha feito aquilo? Se sim, porque? Tinha certeza que tinha a tratado muito bem. Tinha certeza que ela fora recebida tão bem quanto as outras visitas. Será que o fato de ter ido dormir enquanto ela estava ali a deixou chateada? Mas a esse ponto? Talvez ela tivesse ido embora e deixado a porta aberta. Talvez alguém tivesse visto a porta aberta e entrado. Talvez mais de uma pessoa. Não conseguia encontrar respostas.
Levou um tempo até que ele conseguisse se levantar. Ficou ali imóvel, sem pensar em nada, só olhando através daquilo tudo esperando acordar de um pesadelo terrível. Infelizmente, aquilo não era sonho. Aquilo havia acontecido. Mesmo assim, se levantou. Respirou fundo algumas vezes. Olhou em volta e, ainda arrasado, pegou a vassoura e a pá e começou a recolher os cacos do chão. Afinal aquela ainda era sua casa.
IV
Ao mesmo tempo em que sua dor ia lentamente amenizando, ele ia voltando seu foco para a limpeza. Passou um bom tempo sem sair de casa, só limpando e reconstruindo. Tentava se lembrar de como era a casa - de cada detalhe - e ia recolhendo os lixos, varrendo as sujeiras, um cômodo por vez - um dia por vez. Não sabia ao certo quanto tempo ia levar. Só foi arrumando uma coisa de cada vez. Em algumas partes, gostava de como era antes e buscava manter as mesmas configurações. Em outras, sentia a necessidade de renovar o que via e tentava experimentar novas ideias. Reconstruiu as paredes que precisavam ser reconstruídas, pintou as que estavam pichadas, trocou os papéis de paredes rasgados. Aos poucos foi substituindo os móveis, plantando novas flores em seu jardim. Onde já era possível redecorar, colocava quadros na paredes, vasos e outras minúcias que deixavam o lugar com a sua cara. Passaram dias, meses, anos. Em nenhum momento pensou em receber mais visitas. A casa, por sua vez, ia retomando sua forma. Cada vez mais ele se sentia em casa de novo. Porém, ainda não sabia ao certo se poderia dizer que ela estava pronta. Não saberia dizer nem quando estaria. Sempre se perguntava se estava faltando algo. Desde o incidente, não tinha recebido visitas. Nem queria. Inclusive, passou a não achar mais tão interessante assim recebê-las. Pensou em todo o trabalho que teve para deixar a casa habitável novamente. Pensou em toda aquela dor que sentiu ao ver a casa em ruínas e não queria passar por isso de novo. Às vezes se sentia sozinho, até pensava em como estaria se estivesse recebendo visitas. E, por vezes, nem lembrava como fazia isso. Nem se lembrava mais como era ser um anfitrião. Passou um tempo sem receber ninguém. Um longo tempo. Durante esse período, até fez algumas ligações para números antigos da agenda, às vezes conversava pela janela com alguém de fora que estava de passagem pela rua e com algumas pessoas a conversa até chegava na porta de casa - mas ninguém entrava. Sentia medo. Não se sentia mais capaz de receber alguém ali. Às vezes, sentia falta de recepcionar pessoas em sua casa, mas nem se lembrava porquê. Acostumou a não receber mais ninguém. Era bem mais fácil. Não precisava fazer café a mais, sempre sobrava comida para o outro dia e a poltrona mais confortável ficava sempre para ele – enquanto as outras, vazias.
Depois de muito tempo, ouviu um barulho que não ouvia há tempos – a velha campainha.
V
Não sabia ao certo quem poderia ser. Não estava esperando ninguém. Olhou pela janela pra tentar descobrir algo. Viu um rosto familiar, mas que nunca havia recebido. Mas seria uma visita? Ficou se perguntando se deveria abrir a porta. Se deveria dizer algo caso abrisse. Sentiu as borboletas na barriga, depois de muito tempo. O corpo tremia. Olhou novamente pela janela, viu a imagem familiar – ficou encantado. Aquele rosto e aquela presença fizeram com que se sentisse bem. Quis abrir. Pensou novamente. Estava nervoso, não sabia ao certo o que fazer. Dentro de sua cabeça, acostumada com a solitude, infinitos pensamentos acordavam seus medos e vontades internas. Seria mesmo uma visita? Como recebê-la? Depois de certa resistência, abriu a porta. Começaram a conversar na entrada da casa, como tinha se tornado costume. A conversa fluía naturalmente e de forma que o deixava cada vez mais intrigado. Estava se sentindo muito bem. Eram sensações que pareciam inéditas, de tanto tempo que não apareciam. Queria saber mais sobre a pessoa. Queria ouvir novas histórias. Queria contar histórias que há tempos já não contava mais. Nem sabia se lembrava delas. Estava nervoso. Disse, lutando contra aquele medo recém desperto, para que ela entrasse. Não havia preparado a casa para uma visita. Afinal, nem se lembrava o que deveria fazer. Nem sabia se aquela era uma visita. Questionava-se silenciosamente se deveria oferecer água. Não ofereceu. Pegou uma cadeira da cozinha, trouxe até a sala e pediu para que se sentasse. Era levemente desconfortável. Ela sentou, sem tirar o sorriso do rosto. Era muito simpática e parecia muito paciente também. Pediu a ela que esperasse, pois já voltava. Foi até a cozinha, sem dizer muita coisa, mas com o fluxo de pensamentos cada vez mais intenso. Tentou forçar uma busca interna para se lembrar quais os próximos passos para recebê-la. Deveria ter mostrado a casa? Foi errado deixá-la sozinha na sala? Era mesmo uma visita? Depois de tanto tempo, estava preocupado, pensando no que deveria fazer.
Como se seus pensamentos tivessem sido ouvidos, surgiu a doce voz vinda da sala: “O que acha de um café?”. Sentiu o corpo todo esquentando. Aquela frase foi como um banho de água gelada. Fez com que ele pensasse em muita coisa. Refletiu ali, parado na cozinha, por um tempo. Não se sabe ao certo quanto. Acabou se perdendo no mundo das ideias em meio à sua busca. Aquela pessoa fez com que ele começasse a relembrar. Finalmente, começou a ferver a água. Por fora, silêncio. Por dentro, os pensamentos não paravam. Continuou pensando: Quais histórias deveria contar? Será que ela gostaria de as ouvir? Será que deveria ter oferecido a poltrona? Ao mesmo tempo, pensava que gostaria muito de ouvir o que ela teria pra contar. Estava gostando do que sentia e queria saber mais. Lembrou da água fervendo e começou a passar o café. E passava o tempo. Finalmente, depois de muito refletir, se sentiu confiante para mostrar a casa. Estava decidido. Ia recebê-la com o café, ia oferecer a poltrona e conversariam – aquela conversa gostosa que tanto lhe cativou - por horas. Sentia o corpo todo vibrar em alegria. Finalmente, tinha uma nova visita. Começou a lembrar dos prazer de receber uma visita. Passou a lembrar dos detalhes que o tornaram um bom anfitrião. Queria fazer com que ela se sentisse em casa. “Como pude não oferecer a melhor poltrona?”. Riu sozinho. Planejando os próximos passos para compensar a primeira má impressão que percebera ter causado, pegou o café pronto, duas xícaras e caminhou em direção à sala. Mesmo antes de passar pela porta, já tinha começado a perguntar se ela gostaria de conhecer o resto da casa. Quando chegou na sala, silêncio. Olhou em volta por alguns segundos. Sala vazia. A porta estava aberta.
Com o café na mão e tristeza no peito, percebeu que tinha demorado demais.
VI
Ele ficou sem saber o que fazer. Só sabia que queria conhece-la melhor. Queria muito se redimir. Queria recebê-la bem. Mas sabia que não tinha sido um bom anfitrião. Sabia que nem um médio anfitrião ele foi. Sabia que ela não tinha gostado de ser recebida daquela forma. Provavelmente ela não voltaria mais, nem se fosse convidada.
Compreendeu, então, que deveria sair de sua casa e fazer uma visita.
***
VII
Conferiu as portas e janelas - todas trancadas. Queria manter a casa segura enquanto ficasse fora. Ao sair, sentiu-se entranho. Lembrou de pegar o essencial – coisas que não se imaginava sem – a bolsa, os óculos e o guarda-chuva. Nem nublado estava, mas ele não poderia sair sem carregá-lo. Gostava de estar sempre protegido. Os óculos lhe traziam a segurança de ver onde pisava. E, por fim, sempre vislumbrava a possibilidade de trazer algo que gostava de fora para casa e, por isso, sempre levava consigo sua bolsa.
Não se lembrava mais como era estar fora de casa. Fazia muito que tempo que não saia, principalmente para fazer uma visita. Realmente, as coisas estavam muito diferentes. Tinha dificuldade em reconhecer as placas e os caminhos pareciam ter mudado. Pensou em voltar. Começou a se sentir perdido. Por que havia saído mesmo? Lembrou, então, da última visita e da sensação ao ouvir a doce voz vinda da sala. O corpo esquentou um pouco. Continuou a caminhar. Lembrara da forma que ela havia descrito o caminho, sem muitos detalhes, mas suficiente para que pudesse chegar. Enquanto caminhava, colocou-se a pensar nas coisas que tinham conversado e nas outras infinitas que ainda tinham para conversar. Havia se encantado pela naturalidade com que se entendiam e como tal naturalidade fazia parecer com ela fosse uma visita antiga, mas tinha sido a primeira vez.
Foi reconhecendo as casas através da descrição que lhe tinha sido dada. Estava na rua certa. Os pensamentos voltaram a surgir em sua cabeça. “E se ela não estiver?”. “E se ninguém atender?”. Pensou na hipótese de ter saído à toa de casa. Não gostava desse pensamento. Mas estava decidido. Ia tocar a campainha. Queria saber o que sentiria ao ver sua visita novamente. Queria dizer a ela o que sentira na cozinha e ao ver a porta da sala (vazia) aberta.
Reconheceu o número da casa e estava na rua certa. Era ali. Observou por um tempo tudo em sua volta. O bairro era calmo, bem arrumado, nada muito chique, mas aconchegante. Passavam alguns carros. Crianças brincando na rua. Uma senhora estendia as roupas no varal enquanto ouvia seu radinho de pilha. A casa, por sua vez, era muito bem acabada e passava um ar mais aconchegante ainda. Contemplou, por um momento, o fato de estar ali, em pé, em frente àquele lugar. Respirou fundo algumas vezes. Tentou programar um roteiro de fala, mas lembrou da naturalidade com que haviam conversado e confiou que, mais uma vez, o diálogo fluiria naturalmente.
Deu alguns passos em frente até chegar na entrada. Apertou a campainha. Soava diferente da sua. Pôde ouvir os passos vindo em direção a ele, através da porta. Sentiu o corpo, novamente, esquentando. Estava tentando respirar fundo e manter a calma, lembrando o porquê de estar ali. Escutou o barulho da maçaneta da porta. Conforme era aberta, via a figura, com um olhar curioso, surgindo. Ela parecia não estar esperando ninguém. Reconhecera aquele olhar. A cumprimentou, com certo receio, mas saudosamente. Ela, de forma acanhada, respondeu com respeito, mas sem muita abertura. Perguntou como ela estava e, rapidamente, sentiu certa resistência. Ela parecia não estar tão segura. Sabia que o último encontro acabara de forma estranha. Queria fazer com que ela entendesse as suas intenções, que queria se redimir. Precisava dizer alguma coisa. Precisava ser honesto. “Eu vim fazer uma visita”. Sua expressão, então, mudou. Ela deixou de se apoiar na porta, enquanto a abria por inteiro. Parecia terem se reconhecido novamente. Aquela estranheza dava lugar a um ar muito mais leve e receptivo. Ela então, o convidou a entrar. Simultaneamente, os dois abriram um sorriso e, trocando olhares profundos, entraram juntos.
VIII
Assim que pisou dentro da casa, percebeu que tudo era diferente. Olhou em volta e viu alguns móveis que nunca tinha visto, decorações inusitadas, combinações de cores que jamais pensou em fazer. A própria disposição dos cômodos parecia não ser a mesma que a sua. Algumas observações mentais que fazia, a princípio, lhe causavam estranheza. Mas tinha que reconhecer – era tudo muito bonito e harmonioso. Nunca havia estado na casa de outra pessoa como uma visita. Não sabia muito como se portar. Não sabia o que dizer. Ela, por sua vez, parecia tranquila, afinal estava em sua casa. Convidou para que fossem para o seu jardim, dizendo que gostava de receber ali seus convidados. Na mesma hora, ele começou a se perguntar o motivo. Achava que o lugar de receber visitas era na sala, e não no jardim. Ficou confuso. Será que ela não o considerava uma visita? Ainda estava sentida com o último encontro? Por que não quis recebê-lo na sala?
E foram caminhando em direção ao jardim. Enquanto passavam por dentro da casa, ela ia lhe perguntando como estava e mostrando seu lar. Pôde observar que haviam muitas plantas ali, o que não era o caso da dele. Não tinha o hábito de cultivar muitas plantas em sua casa. Ela, em contrapartida, parecia gostar muito e o verde natural que predominava trazia uma atmosfera muito agradável. Ele também notou que muitos dos móveis de decoração eram feitos a mão. Achou isso muito interessante, já que a maioria dos seus eram comprados. Passou a vê-los como genéricos e gostava dessa sensação de identidade própria que os móveis caseiros traziam. Deixavam tudo mais com a cara dela e isso era incrível.
Chegando no jardim, ela cuidou para que os dois ficassem à vontade e ofereceu algo para comer e beber. Enquanto ela ia buscar os agrados, ele ficou, sentado numa cadeira extremamente confortável, que combinava muito com o ambiente externo, refletindo sobre aquele momento. Ao mesmo tempo em que não reconhecia partes daquela casa e via muitas coisas inéditas, pasmava com a facilidade com que ia se sentindo familiarizado com o lugar. Era um jardim lindo. Flores e folhas de todos os tamanhos, espalhadas por todos os lados. Pássaros visitavam constantemente o ambiente e era possível observá-los e ouvir seu canto. Fechou os olhos e respirou fundo por um segundo, sentindo os agradáveis aromas naturais que ali se encontravam. Abriu os olhos. Observou o caminho de pedras muito bem cuidado que se estendia por toda a parte externa. Pequenos móveis rústicos completavam o cenário fabuloso. Todas as sutis minucias daquele lugar pareciam ser cuidadosamente pensadas e traziam uma sensação de paz muito boa. Passou a entender o motivo dela receber as visitas ali. Passou a compreender que, não necessariamente, uma visita precisaria ser recebida na sala, como ele fazia. Passou a perceber que não somente a sua concepção era aceitável, mas também que outras, muitas vezes, totalmente diferentes, poderiam surpreender. Estava muito feliz. Tinha compreendido, naquele momento que, ali, ele era a visita. Havia entrado na casa de outra pessoa, que possuía outros costumes, outras visões e que, mesmo assim, elas poderiam ser muito agradáveis, mesmo sendo tão diferentes. Tinha percebido o quanto era importante dar valor a isso. Ao mesmo em que se sentiu mal por não ter tratado sua visita como gostaria naquele momento, estava muito empolgado com a possibilidade de se redimir. E também, muito grato por ter sido recebido como uma visita. Se deu conta do quanto estava feliz por estar ali.
Ele tomou um leve susto quando ela voltou com os aperitivos. Estava perdido em seu devaneio. Demorou um segundo para que voltasse ao presente. Ela percebeu e riu. Ele riu também. Se aconchegaram e começaram a conversar.
IX
Nenhum dos dois sabia dizer quanto tempo havia passado. Na verdade, nem queriam manter uma contagem. Estavam ali, satisfeitos e extremamente confortáveis, conversando há horas. Ambos se sentiam à vontade, como se já se conhecessem há muito tempo. Escurecia e eles não queriam sair dali. Continuaram. Decidiram cozinhar algo juntos. Era uma experiência diferente para ele. Na primeira vez em que fazia uma visita, já estava totalmente à vontade a ponto de dividirem a cozinha, além da sala (naquele caso, o jardim). Continuaram as conversas, risadas, brincadeiras. Passaram o dia todo se conhecendo e trocando experiências. Ambos se sentiram bem próximos um do outro. Apreciavam aquele momento. Ele se sentia aliviado por ter decidido fazer uma visita. Se sentia cada vez mais certo de que tinha tomado a decisão que deveria ter tomado.
Estava ficando tarde. Já estava escuro e quando se deram conta, já tinha passado da hora dele ir embora. Mas, na verdade, nenhum dos dois queria. Depois de um curto debate, ela disse que não se importaria se ele ficasse. Dividiram então, além do jardim, da cozinha e da sala, o quarto.
***
X
Passaram semanas e as visitas se mantinham acontecendo. Poderia demorar alguns dias para que se vissem novamente. *As vezes mais, as vezes menos. Mantiveram o contato e sempre se encontravam. Nas duas casas. Ambos eram anfitrião e visita. O que era extremamente justo, visto que os dois adoravam receber vista, mas também eram muito bem recebidos mutuamente pelo outro. Ele pôde, então, se redimir. Quando ela voltou para sua casa pela primeira vez, fez questão ao máximo de substituir aquela primeira impressão por algo bem mais agradável. Ofereceu-lhe tudo o que poderia, cuidou para que estivesse à vontade. E sabia que ela estava. Estava estampado em ambos os rostos o quanto estavam confortáveis um com a presença do outro. Recebeu sua visita muito bem e adorava ser recebido por ela também. Ele estava muito feliz e, a cada encontro, sentia que aprendia algo e saia mais leve.
Certo dia, ela o convidou para uma visita. A princípio, seria uma visita com qualquer outra. Resolveu, dessa vez, levar algumas coisas para prepararem uma janta, além de um filme para assistirem. Já sabia que seria uma noite muito agradável, como todas as outras que haviam passado juntos. Ao chegar, foi muito bem recebido. Já começaram a noite sorrindo, sem medo de demonstrar o quanto estavam feliz ao ver o outro. Foram preparar o jantar na cozinha, inspirados. Estavam, inclusive, muito bem sincronizados. Enquanto um fazia uma coisa ali, o outro já estava preparando outra coisa lá, e assim fizeram um simples, porém delicioso banquete. Degustaram a presença um do outro enquanto comiam. Acabaram nem assistindo o filme. Outras coisas foram tomando a atenção dos dois. Na intimidade em que ali se encontravam, em meio a risadas e muitas reflexões, começaram um debate sobre a relação que se criava entre eles e como parecia que estavam visitando um ao outro há muito tempo. Realmente, a impressão que tinham de se conhecer por mais tempo que, de fato, se conheciam confundia um pouco os sentidos e sustentava a sincronia entre eles.
Gostava muito do quarto dela. As decorações eram ainda mais íntimas, no sentido de representarem traços mais certeiros de sua forte, porém doce personalidade. Os quadros, as fotos, as artes. Tudo. Ele se sentia muito bem ali também. O quarto também era decorado com alguns móveis feitos à mão, que ao mesmo tempo pareciam ser firmes, porém delicados. A cama era muito confortável e espaçosa, e com certeza o fato dela estar ali, deitada ao seu lado, tornava tudo ainda mais bonito. Em meio às suas reflexões, percebeu que estar em meio à sua intimidade e se sentir extremamente à vontade com isso, a ponto de querer compartilhar a sua própria também, era algo que lhe agradava muito. Expôs esse pensamento, e ela o recebeu com um enorme sorriso - tal sorriso que parecia ter algum feitiço ou alguma substância altamente viciante, pois era encantador.
De repente, os risos cessaram e ela estampou em seu rosto um olhar mais pensativo. Percebeu que ela estava ensaiando para dizer algo. Pensou em se preocupar, mas o momento era tão agradável que era difícil pensar em algo que a estivesse incomodando. Preferiu perguntar. Ela ficou surpresa com uma reação quase que direta dele. Afinal, era uma imagem que tinha acabado de surgir em sua cabeça. Tomou algumas respirações mais profundas, se aconchegando na tranquilidade que ele passava. “Já estamos nos visitando há algum tempo. Gosto das suas visitas. Gosto, também, de te visitar. Gostaria que ficasse com isso”. E se revirando um pouco, esticou o braço, de modo que alcançasse a mesa de cabeceira. Abriu a gaveta e pegou uma chave. Retornando, olhando no fundo dos olhos dele, ele sabia. Era a chave de sua casa.
***
XI
Ele ficou sem reação por alguns segundos. As borboletas surgiram em seu estômago. Sensação que não o visitava por um bom tempo. Entre receber aquela informação e estender o braço para receber aquele presente, em sua cabeça o tempo pareceu não passar. Pensava em tudo. Deveria ter preparado uma chave para ela? Deveria estar recebendo aquela chave? Afinal era a chave para a casa dela. Entrada livre para o seu porto seguro, seu lugar de aconchego e segurança. Ela estava querendo dividir isso com ele, e ele tinha sido pego de surpresa. Ficou dividido entre estar extremamente feliz com aquilo e se sentir culpado por não estar fazendo o mesmo. Queria dizer algo, mas não disse. Queria retribuir igualmente o feito, mas não o fez. O sorriso em seu rosto não escondia sua gratidão e alegria pelo presente, mas ele o recebeu em silêncio. Ficou com muito receio de tê-la decepcionado. E se ela esperasse por algo em troca? E se ela quisesse ter recebido o mesmo?
Ela se levantou normalmente, sem parecer chateada ou decepcionada, e foi para o banheiro. Ele ficou ali, com a chave na mão, reflexivo. Por alguns instantes, ficou segurando o objeto e olhando para ele, pensava na situação. Após algum tempo, guardou a chave em sua bolsa. Quando ela voltou do banheiro, chegou perguntando sobre o que fariam no dia seguinte. Ele, ainda levemente preocupado, respondeu e após mais um pouco de conversa e até algumas risadas bobas, se deitaram para dormir.
XII
Continuaram com as visitas. Ambos estavam muito contentes. E elas aconteciam naturalmente, sem que um dos dois precisasse marcar ou se preparar. Só aconteciam. E estava sendo incrível. Sempre inventavam algo novo para fazer, e quando não, apreciavam a velha e boa conversa. Às vezes ele se pegava pensando no que tinha acontecido no outro dia, quando recebera a chave. Às vezes ainda pensava no que deveria fazer. Mesmo tendo recebido a chave, se sentia um pouco desconfortável em usá-la, já que sabia que ela não faria o mesmo ainda, pois não tinha recebido chave alguma. Quando estava sozinho, tirava um tempo para pensar nisso. Às vezes o pensamento também aparecia quando não estava preparado para isso. Isso ficou um tempo em sua cabeça. Um dia, enquanto estavam juntos, percebeu estar pensando nisso involuntariamente. Naturalmente, ela sentiu que algo o perturbava. Na verdade, ela percebeu exatamente o que era. Com aquele olhar doce e um sorriso tranquilo, ela chegou mais perto e disse que tinha dado aquele presente sem esperar nada em troca. Simplesmente o quis fazer, pois aquilo era importante para ela, mas entendia que cada um tinha seu tempo para que isso acontecesse. Mais uma vez ela o surpreendeu. Ela entendeu o que tanto lhe causa dúvidas e o incomodava. Sem que ele precisasse dizer qualquer coisa. E mais uma vez o acolheu. Aquele gesto fez com que ele se tornasse ainda mais grato. Fez com ele sentisse ainda mais vontade de dividir suas experiências com ela. Mais uma visita que acabara melhor que o esperado.
Ao sair da casa dela, começou a seguir da sua, como de costume. O dia estava lindo. Ao menos sob os olhos de alguém com tamanha sorte. Sorte de ter encontrado alguém que o entendesse como as vezes nem mesmo ele entendia. Sorte de, por muitas vezes, poupar a própria fala por já ter se comunicado pelos olhares e sentires. Enquanto caminhava, via as pessoas passando, os pássaros voando, a vida acontecendo. Tinha costume de caminhar com a cabeça em outro mundo. De repente, seu olhar buscou um prédio pequeno, no meio de outros bem maiores. Nada em especial chamava a atenção dele, era só um predinho, parecia um pouco antigo, pois a pintura já não estava mais em seu auge. Na placa um pouco apagada ainda era possível ler “Chaveiro”. Sentiu a chave de sua casa no bolso. Sentiu o corpo aquecer um pouco e sorriu, sozinho. Mudou seu rumo e entrou. Já sabia o que ia fazer. Era uma questão de tempo.
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what a lovely day...
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the ideia just came and as soon as my new mic arrives, I will give it a try
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