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Sobre "A Hora do Lobisomem"
A Hora do Lobisomem é uma história muito curta, escrita pelo autor americano Stephen King. Normalmente, não costumo gostar dos livros desse autor. Dos quatro livros que eu tentei ler antes deste, três foram abandonados e o único até então que eu havia gostado bastante parecia haver um consenso entre os fãs que era o que menos tinha características do seu estilo.
Por causa de todo esse contexto, eu não tinha muita pressa — ou vontade, se for sincera — de fazer novas tentativas com os livros do autor. Estava quase aceitando a ideia de que ele não era um autor para mim, mas quando assisti a resenha que a Tati Feltrin fez deste livro, pensei que poderia tentar mais uma vez. Preciso confessar que, apesar de estar esperançosa, também fui preparada para este livro ser outro livro abandonado, mas felizmente não foi o que aconteceu. O livro é super fluído de ler e não cansa absolutamente ler por um período longo. Acho que em duas horas eu o li de cabo a rabo, porém suspeito que seja pela sua particularidade.
De acordo com a resenha que a Tati Feltrin fez em seu canal, este livro foi desenvolvido de uma maneira bastante peculiar. Começou quando uma editora grande decidiu fazer um calendário com a temática de lobisomem e chamou um artista muito cotado dos quadrinhos, Bernie Wrightson, para fazer as ilustrações das capas dos meses e o Stephen King foi convidado para escrever um textinho pequeno sobre as ilustrações, algo como uma descrição das imagens, porém o King não se contentou só com isso e foi além.
Em uma exibição de toda a sua expertise e criatividade, King criou a partir de cada ilustração uma história sólida e conectada, contada mês a mês, costurando um mistério de vários assassinatos em série. Houve algumas licenças poéticas como o próprio autor avisa ao final do livro, por exemplo, ao alinhar a lua cheia com datas comemorativas, como o Dia dos Namorados e o 04 de Julho, que é o Dia da Independência dos Estados Unidos.
Sendo assim, o primeiro capítulo está ambientado no mês de janeiro, numa pequena cidade do Maine, chamada Tarker’s Mills. Em meio a uma nevasca forte, um sinaleiro da ferrovia fica preso num barracão de ferramenta a quinze quilômetros da aldeia, quando o lugar é invadido por um lobisomem e o sinaleiro é morto pela besta.
Outro assassinato se repete em fevereiro, em março, em abril, em maio, em junho… Nós, leitores, sabemos pela narração e pelas ilustrações que o culpado é um lobisomem, mas a cidade ainda não sabe e vemos ao longo dos meses as pessoas começarem a ligar os sinais, como os assassinatos acontecerem somente uma vez por mês, nas noites de lua cheia, as pegadas de lobo em volta de uma cena de carnificina, os uivos que coincidiam com as noites das mortes. Logo começa um burburinho entre os cidadãos, principalmente nas crianças, de que o assassino é um lobisomem. Como sempre acontece com esse tipo de boato numa cidade pequena, há quem acredita, há quem não acredita, o fato é que pessoas estão morrendo de maneira muito violenta e a polícia não tinha provas nenhuma…
Apesar de sabermos desde o início que quem está matando as pessoas é uma criatura folclórica e como os corpos ficam daquele jeito, o mistério de descobrir quem é o assassino continua para nós leitores porque não sabemos quem é o lobisomem e isso vai sendo destrinchado mês após mês.
Esse estilo funcionou muito bem comigo. Eu me senti cativada pela construção do ambiente desde o primeiro capítulo, já tecendo teorias, prestando atenção aos detalhes. Eu descobri relativamente rápido quem era o lobisomem, acredito que muitas pessoas talvez também tenham seguido a mesma trilha que eu, mas ter as minhas desconfianças que se provaram corretas não abalou em nada o divertimento da leitura.
O mais interessante para mim foi lá no início do final, quando temos a revelação de quem é o lobisomem e temos um capítulo pelo seu ponto de vista. A pessoa está finalmente aceitando as esquisitices ao seu redor, a maneira como lida com essa verdade e as escolhas que faz. Vemos que pouco a pouco, o monstro passa não só a ser a sua contraparte bestial, mas também a sua parte humana, porque há decisões que toma enquanto sua mente ainda está consciente, lúcida e racional. Lembrei-me daquela frase “o homem é o lobo do homem” e esse momento da história em específico é um bom lugar para refletirmos sobre aquela parte feia de nossa alma e o quanto somos influenciados por ela ou o quanto tentamos justificá-la.
No final, a proporção “gosto de Stephen King'“ versus “não gosto do Stephen King” para mim ainda está mais para o segundo tipo do que para o primeiro, mas fiquei feliz que gostei dessa leitura e redespertou a esperança de que pode haver outras obras do autor que funcionem para mim.
Link do vídeo citado: https://www.youtube.com/watch?v=U-kV4NPUqeg&ab_channel=tatianagfeltrin
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Sobre "Vozes de Tchernóbil"
Vozes de Tchernóbil é um livro jornalístico escrito pela autora ucraniana Svetlana Aleksiévitch, que reúne diversos relatos de sobreviventes que foram diretamente afetados pelo Acidente Nuclear de Chernobyl[1], tais como parentes dos bombeiros que foram chamados para conter o fogo da explosão, pessoas que estão vivendo nas zonas proibidas, liquidadores[2] que sobreviveram à radiação, ex-cidadãos das cidades em torno da usina que precisaram evacuar de suas casas e nunca mais retornaram, cientistas e políticos.
O estilo narrativo contido no livro é o estilo característico da autora, uma literatura oralizada, onde ela praticamente transcreve os diálogos, mas também consegue transmitir os silêncios através das reticências. Ao ler os depoimentos, parece que conseguimos sentir as emoções dos depoentes e é como se estivéssemos assistindo a um documentário ao invés de ler um livro de tão visceral é a escrita da autora. É ler o que estão dizendo e ouvir a voz embargada, vê-los se debulhando em lágrimas, com as mãos trêmulas e ansiosas; perceber seus olhos fixos no nada, memorando o passado.
Na introdução do livro, a autora nos traz um contexto histórico-cultural da região. A usina ficava numa extremidade norte da Ucrânia Soviética, na fronteira com a Bielorrússia, que na época era uma país agrário, formado por uma população quase totalmente rural, que já havia sido bastante prejudicada durante a Segunda Guerra Mundial. De acordo com a autora, foram 619 aldeias destruídas pelos nazistas, e mesmo passando quarenta anos, mais ou menos, desde o fim da guerra, ainda havia um povo traumatizado por ela e que se lembrava daqueles horrores.
Além dos fantasmas da Segunda Guerra Mundial, também é importante lembrar que na época do acidente, a União Soviética estava em uma guerra fria com os Estados Unidos, portanto além dos riscos e das conquistas da corrida científica, também corria no imaginário coletivo que uma nova ameaça viria do estrangeiro através de uma nova guerra, com explosões que tomariam a forma de um cogumelo gigante e uma invasão de soldados com armas. Fica claro ao longo dos depoimentos que para muita gente do povo, se eles não vissem a ameaça, ela não existia de fato, portanto para eles era difícil compreender o que era esse perigo que não tinha forma, nem cheiro, nem cor e nem som.
Por tudo o que eles viam no dia a dia, as abelhas continuavam vindo buscar pólen nos seus prados, os animais selvagens continuavam voltando ao rio para beber da água que diziam que estava contaminado, os caramujos continuavam comendo suas plantações que diziam que não podiam mais consumir porque morreriam, porém a vida continuou, nenhum deles bebeu do rio e caiu morto por terra. Portanto, essa era a mentalidade da região na época e é importante ter isso em perspectiva para entender o relato de algumas pessoas e poder ter uma noção maior do impacto do acidente para aquele povo.
Durante a minha leitura, houve vários relatos que me chamaram a atenção e me despertaram emoções, mas nenhum deles se comparou ao primeiro. Penso que não foi por acaso ele ter sido o escolhido para ser a história de abertura do livro porque é uma chocante e trágica história de amor entre um bombeiro chamado Vassíli e sua esposa grávida, Liudmila.
“Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a mesma coisa?” — Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassíli Ignátienko
O que mais chamou a atenção desde o início do relato é o quanto eles eram jovens na época e o quanto a vida deles retratava aquela juventude perfeita que sonhamos e buscamos, vivendo naquela fase de "lua de mel" típico de um início de vida conjunta, cercados por amigos próximos que experimentavam a mesma fase da vida e estavam cheio de companheirismo. Liudmila e Vassíli estavam até mesmo começando a própria família, já que ela estava grávida de quatro meses quando ocorreu o desastre.
Do jeito que Liudmila conta, parecia que eles faziam parte da pintura de um quadro que retratava aquele tipo de casal feliz e otimista com o futuro deles, mas também era inegável que ambos eram absolutamente apaixonados um pelo outro. A prova estava em tudo que ela fez e sacrificou para estar com ele em seus últimos momentos.
A dedicação da moça ao marido beira realmente a uma burrice insana, ela própria dizia que era o que os médicos e enfermeiros pensavam e cochichavam sobre ela, quando se recusava a seguir ordens médicas, passando dias e mais dias ao lado do leito de hospital, tocando-o, abraçando-o, beijando-o quando diziam para não fazer isso porque iria se contaminar também. Talvez eles tivessem certos em julgá-la como maluca, mas em defesa da moça, nós não abandonamos quem amamos, ainda mais quando a pessoa querida está passando por um inferno na Terra, com seus órgãos virando liquefeito ao longo das semanas.
“As pessoas não querem ouvir falar da morte. Dos horrores…
Mas eu falei do amor… De como eu amei.” — Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassíli Ignátienko
É por isso que a história é tão chocante. É uma situação tão absurda, tão cruel, tão horrorosa, mas ainda houve uma mulher que foi capaz de passar por isso movida por amor. Daí o sentido que ela disse no começo e ainda finalizar que aquela foi uma história de amor.
Mas o relato dessa moça, Liudmila, não foi o único dessa natureza. Há muitos outros relatos das consequências da radiação que também nos tocam fundo, sobretudo sobre as crianças que nasceram após o acidente e são de certa forma anomalias genéticas, que vieram a esse mundo com má formação.
Há um relato em especial de uma mãe cuja filha nasceu sem nenhum orifício que também me levou às lágrimas. Quando a bebê nasceu, os médicos tiveram que criar um ânus e uma vagina nela porque a radiação impediu que ela se desenvolvesse corretamente durante a gestação, afora outros problemas de saúde que esse problema congênito trouxe.
A dor e o amor daquela mãe pela filha é palpável na leitura de seu relato. Muito emocionante. Lembro-me que pensei quando terminei de lê-lo, que eu se eu tiver filhos, quero amá-los tanto quanto aquela mãe ama a sua filha, mas também pensei que Deus me livrasse de ter uma criança que tivesse que passar pelo que aquela menina passa. Mais do que nunca, fiquei admirada pela força e resiliência daquela mãe que se ressaltou durante toda a leitura do seu depoimento.
E isso é o que há de mais místico deste livro, o quanto ele consegue ser bonito e difícil de ler ao mesmo tempo. Ao passo que há toda uma admiração pela força de algumas pessoas em lidar com as consequências de uma fatalidade como essa, também há o horror escrachado da situação que nos leva a pensar "ainda bem que eu não vivi isso".
É terrível pensar e sentir isso, sentimo-nos culpados em termos pensado assim em primeiro lugar, mas também nos dá uma percepção real do que é viver momentos verdadeiramente difíceis, é uma sensação que vai além de um choque de realidade, porque racionalmente as pessoas sabem que certas situações são verdadeiros horrores, mas às vezes não temos noção do quanto é horrível sentir aquilo, mas esse livro consegue nos transmitir, quase por osmose, as dores daquele povo.
O que não posso deixar de comentar, porém, é o quanto esse livro mostra a real face da União Soviética da época. Houve omissão por parte do governo de alertar a população do riscos que estavam sofrendo, houve manipulação de mídia com falsas notícias de sabotagem do ocidente para derrubar a “incrível nação soviética”, houve censura a todos que tentavam expressar uma opinião contrário aos canais oficiais, acusando-os de ataques a ideologia do Partido e houve protelação de medidas.
Um jornalista chamado Anatóli Chimánski depôs no livro dizendo que cobriu o caso nas zonas proibidas e disse que a mídia focou muito mais nas teorias de trabalho de espionagem do que em alertar a população a tomar medidas profiláticas a base iodo. Ele disse que chegou a falar com o chefe dele de publicar um depoimento da mãe de um dos bombeiros que respondeu a ocorrência de fogo na madrugada, mas o chefe barrou a reportagem e disse para falar sobre os "herois", que eram os liquidadores que ingenuamente eram sugestionados ou forçados a irem em missão suicida, já que vários morreram pouco anos depois por cânceres relâmpagos.
Mas não só ele, Guenádi Gruchevói, deputado do Parlamento bielorrusso e diretor da Fundação para as Crianças de Tchernóbil também comenta sobre o aspecto político do Partido Soviético. Entre muitos comentários dele, ele diz em essência que mudou a opinião que tinha do governo depois de Chernobyl. As palavras dele foram:
“É a continuação da conversa sobre a nossa mentalidade, a mentalidade soviética. A União Soviética caiu, desmoronou. E continuavam esperando a ajuda do grande e poderoso país que havia deixado de existir. O meu diagnóstico… Você quer? Uma mistura de prisão e jardim de infância, isso é o socialismo que conhecemos. O socialismo soviético. O homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, e em troca recebia uma ração. Uns tinham mais sorte, recebiam uma ração maior, outros ganhavam uma ração menor. No final das contas dava no mesmo, todos davam em troca a sua alma. Mais que tudo, temíamos que a nossa fundação caísse nesse tipo de distribuição de cotas. A cota de Tchernóbil. As pessoas já estavam acostumadas a esperar e a se queixar: ‘Eu sou de Tchernóbil. Isso me cabe porque eu sou de Tchernóbil’. O que eu entendo hoje é que Tchernóbil é também uma grande experiência para o nosso espírito, para a nossa cultura.”
Há relatos ainda mais graves, como do professor Vassíli Boríssovitch Nesterénko, ex-diretor do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências da Belarús; um físico. Ele contou a experiência dele na época do acidente. Disse que estava a trabalho em Moscou quando viu as notícias de Chernobyl. A primeira ação dele foi ligar para o primeiro secretário do Comitê Central da Belarús, informá-lo que deviam dar soluções profiláticas de iodo para a população e esvaziar a região num raio de cem quilômetros, mas além de ter tomado chá de cadeira por horas, ninguém lhe deu ouvidos.
Sempre que tentava informar alguém por telefone, a KGB cortava a ligação. Ameaçaram sua carreira e sua vida se continuasse espalhando o pânico nas pessoas. Confiscaram papeis e equipamentos em seu escritório. Entraram com um processo criminal contra ele. Em seu relato também nos disse que o primeiro secretário com quem tentou entrar em contato estava para receber uma promoção em Moscou, por isso ele trocou a vida de milhares de pessoas por uma carreira política mais alta, porque ele fazia pouco caso do acontecimento. Tranquilizava a população com palavras mentirosas, que foi uma explosão simples e ninguém estava em risco.
O livro se encerra da mesma maneira que começou: com uma trágica história de amor, desta vez com o relato de uma esposa de um liquidador, que morreu um pouco mais de um ano depois de servir em Chernobyl. Assim se inicia com amor e termina com amor.
A minha opinião sobre o livro é que Vozes de Tchernóbil não é um livro literariamente lírico, com uma narrativa poética. Não penso que alguém que o leu dirá que a "escrita da autora é linda", porque este é um livro que veio para dar voz ao povo de Chernobyl, portanto as palavras são simples, nada de espalhafatoso, de metafórico, cheio de alegorias ou de filosofias profundas, nada disso. Podemos entender o livro como uma transcrição de um desabado individualizado de cada depoente.
Ainda assim, há muita emoção na conversa de um povo sofredor, simples, formado por uma maioria de camponeses e pessoas não-filósofas. É essa simplicidade que nos prende à leitura. É gente como a gente.
Como falaríamos se fôssemos nós na situação de Chernobyl? Pensem em como falariam se fossem as vítimas dessa tragédia. É exatamente assim este livro.
*** Notas de Rodapé ***
[1] O acidente nuclear de Chernobyl, também conhecido como "desastre de Chernobyl", foi um acidente nuclear ocorrido em 26 de abril de 1986, quando o reator n° 04 da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu, espalhando por dias uma nuvem radiativa pela Ucrânia, Bielorrússia e vários outros países, como Polônia, Alemanha, Áustria, Romênia Suíça, norte da Itália, França, Bélgica, Países Baixos, Grã-Bretanha, norte da Grécia, Israel, Kuwait, Turquia, Japão, China, Índia, Estados Unidos e Canadá.
[2] Liquidadores foi o nome dado aos 600 mil voluntários, homens e mulheres, civis ou militares, que se ocuparam em minimizar as consequências do acidente nuclear de Chernobyl, seja abatendo os animais, enterrando objetos, casas, plantações ou construindo o "sarcófago", uma construção desenvolvida para impedir que radiação continuasse emanando pela atmosfera.
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