SEQÜÊNCIA 8 - A ILHA DO PESCADOR
Separou a camiseta branca e a blusa de moletom bege siri, junto com a calça preta dela, antes de fechar a mochila. Usaria na manhã seguinte pra nova travessia. Para logo mais à noite reservara só o branco e as sandálias de couro. Também as calçaria no outro dia.
Na tarde anterior, às 5 horas, a traineira os descarregara para novas horas de lazer em Cabo Coral. A noite prometia. Um grande toldo branco estacado na areia guardava a área para a dança de casais ao som de uma grande caixa de som, sob as luzes de lâmpadas coloridas pendidas dos fios. O areião era coberto de lona preta evitando que ele se espalhasse, ou fizesse os passos mais pesados. De um lado e de outro, vinha a arquibancada. E na frente, ao sul, cadeiras de plástico brancas. Fileiras. Como uma nave de igreja. E ao norte, encabeçando um palanque, um grande holofote. Sob o qual, microfone e assento alto, além de uma mesinha com jarro e copo d’água - vestida de toalha branca rendada -, e portando o bolão giratório, figuravam. Um locutor de bingos - e correio-elegante -cantava as pedras, e nos intervalos, fazia correr o coração de papel, pelos quatro cantos, nas cestas de vime do menino Pardinho - moleque arretado, sardento, de cuca ruiva -, zunindo no passadio de tanta gente pra entregar o bilhetinho. E amores eram feitos. Ele, o Cupido. Era ele também que levava o palitinho pro espetar dos cartõezinhos da jogatina da sorte. E por prenda se tinha pares de sapatos congas, chinelos, ramalhetes florais, miçangas de conchas e cordões, cartuchos de doces de frutas cristalizadas como figo, mamão, marmelo e laranja, varas de pesca, vale-tickets para café da manhã e almoço na Pousada do Grilo, a mais afamada da região, por seus quitutes e peixada no azeite–de-dendê, jogo de panelas de alumínio, canecas de times de futebol, vestidos de chita pra crianças, tabuleiros de jogo de mesa como xadrez, dama, gamão e jogo da velha, passadeiras pra corredores, bonecas de pano e sungas de banho.
A pipoca comia solta. E o amendoim e a cocada. Tinha pastel e chupe-chupe. Maria-mole. Bolinho de peixe e tapioca. A bebida mesmo, de álcool, faltava. O mar perto desapreciava. Só mesmo uma caldeirada de leve sangria de maçã, embalsamada num susto de champanha, pra acordar o espírito. Os sucos de frutas coroavam iluminados, e adocicados o triunfo desses rigores salutares. No mais, água.
Isso tudo se passava ao largo de minha ventura própria. Perto.
No mar.
Cena “X”: (Plano Geral) (Som: vento/ camisa ricocheteando) Do alto. André rodopia de braços abertos a 100 m da quermesse.
Cena “X”: (Plano Médio) (Som: "Pescador" - Mestre Ambrósio ou "Sem Ganzá não é côco" - Chico Cézar/ burburinho ao fundo) André, braços abertos a rodopiar. Quermesse, ao fundo.
... só, destampei a falar asneiras ao léo, bem alto, a rodopiar de braços abertos, soltos, no espocar das ondas espraiadas aos meus pés. Ao contrário dos caretas, ali atrás, impedidos de travessuras bombásticas assim, eu antes me embebi em mel e cachaça nos arrabaldes da quermesse, num cubículo de um balcão só. A temperatura do ambiente ali era alta, encardida, cor de terra queimada, recobrindo as paredes e os móveis, em meio ao converseiro do grupelho de três ou quatro, sentado, de pernas cruzadas, à porta. A entrada e saída era rápida. Reservada para a guarnição. Pitéu de siri. Ou quiche de camarão. Que vinham buscar. Em pé, enrodeados, lá fora, esperando, cada um a sua vez, ficavam. A prateleira de tábua velha, corcunda com o peso, encarquilhava garrafas e garrafas de groselha, e licores de amora silvestre, melancia e abricó. Salvava no meio deles um tonel de “marvada”, munido de bica pra quem apreciasse a bebida, pura; ou com mel. Aceitei da segunda. Mandei um, dois quiches de camarão com geléia de abricó. Que ali, numa estante pequena, tal geléia também se vendia, tanto quanto das demais frutas, a amora e a melancia. Bebi sem meias peias, o que parece muito. Mas, meu sangue puro e fraco, com pouco se entrega fácil demais às desmesuras do etanol. Logo estava embriagado.
No mar:
Cena “X”: (Plano Americano) Câmara atrás de André, voltada para o mar. Braços abertos a rodopiar.
... minha roupa branca soprava fustigada com a força do vento na beira da praia. Restos de luz me pegavam da grande cobertura e arena iluminadas por refletores e lâmpadas na agremiação. Esquecido do frio, eu girava, sob os pés descalços, livres das sandálias de couro, me rindo à toa sem motivo, e tudo ao meu redor me fazia girar. Minha cabeça, a girar. Sob o giro das coisas ao redor. Nesse momento, eu era alegria. Solto. Respirando liberdade. Feito pássaro a voar. Leve. Nada sentindo pesar. A não ser a garrafa de licor que carregava, no alto, deslocada na extensão dos meus braços, a cada gole molhando meus lábios, e tingindo-os docemente de preto rubro. Meu estômago embrulhou. O que parecia incerto - o mergulho - encontrou vazão na falência dos meus sentidos, e fui encontrar solução para o meu enjôo no mar. Mergulhei. Ninguém parecia ver. O súbito gelo a me tomar tragou de mim toda a bebedeira, trazendo-me acalante a sobriedade, e um gole revivescente da água salgada, eu trouxe na garganta abaixo, com as mãos, em concha, pra bater limpo no estômago, a cura do mar.
Devolvi meu tronco e pernas contra a correnteza no vai-e-vem das ondas, na direção da orla, vencendo estonteante, a resistência do embate. Pouco a pouco, avancei, e fui saindo inteiro. Meus cabelos castanhos a tocarem-me o rosto entre as mechas, escorreram pelo pescoço. Minha magreza era vista agora, mais anoréxica ainda. Colada, úmida, sob o manto da camisa branca franzida de encharcada água - que imóvel parecia indiferente ao vento que fazia. Meus braços vinham tombados e bambos ao longo do corpo. Volta e meia meus olhos ardentes obtiam o alívio do sal ao esfregá-los; e, as madeixas rebeldes, arrancadas da fronte, abriam-me pouco a pouco a visão. Segui adiante, sob meus passos ainda cambaleantes. Trôpego, calcei as sandálias. Alguma arruaça tinha se formado a meio caminho, com algumas crianças, e alguns adultos curiosos atentos ao que ocorria, montando vigilância a fim de acorrerem em caso de anormalidade.
Com frio trincante agora, eu me envergonhava. Mal podia olhar pra cara estupefata de uma ou outra pessoa, a cujo caminho eu atravessava. Fizera uma estrepolia. Senão inconseqüência, repreensível. E, em momento algum, quisera chamar atenção. Em momento algum. Tinha sido boa a bebedeira, apesar de não ter passado desapercebida. Mas, isso em nada me afetava, quase, afinal, pois não devia nada a ninguém. E, ali, ninguém me conhecia.
Voltei pra pousada correndo, como pude. E me despi logo que cheguei pra me jogar de vez num chuveiro quente. A cabeça, contudo, não lavei. Deixei pra que terminasse de secar, e eu pudesse dormir mais adiante. Assim foi feito. Enquanto esperava, aproveitei pra pesquisas e anotações. Saiu o texto da pescaria.
***
André deixa atrás de si a viagem turística, e parte rumo a uma aventura junto ao desconhecido, no cerne de uma nova Utopia encantada
CANTO I
“Ó, Aclamado dia! O de fugir, longe da Civilização. Uma lancha me esperava nas margens do ancoradouro. Balouçava mansa minha bagagem, tanta, a essa altura revolta. Suja a roupa toda, a sabão merecendo a trouxa. Longe eu ia vasculhar outra terra, além-mar, Caronte a me guiar, de ilha sem algum lugar, pra eu lá chegar. Era ilha onde se vai pescar, com nome importante de gente por lá. Quase nenhuma alma a nunca lhe atravessar, o Portal da Ilha Perdida não a deixar. Comitiva nenhuma não há, também não carece surtar. Há muito que se vê lá, apesar de estória nenhuma nos chegar. É um mistério que a cerca, a Ilha do Pescador em pleno ar, sagrado seu canto louvor, da natureza intocada, infinda, que a tudo se diz não perdida estar, e dentro do mundo insertar. Basta com os olhos abertos flertar, e à sua venda descortinar, para ver o quão maciça é em seu flutuar, ao elevar-se como uma pena no ar. Ali tudo é possível, que cá: pra frente pra trás o andar, de costas de pernas pro ar, sem nunca parar de obrar: as artes que uma criança faz.
As coisas que na terra há são dadas à carniça amar, como à carcaça animal cheirar: tão fétido (!) fedor a alma a exalar entre a vida e a morte, ainda quente a estar, vendo num salto mortal a ave de rapina lhe exortar, tal qual matéria putrefata ao sol, ao luar ...
Essas, a outras cousas, são favas da vida da gente a caiar os sonhos do além-mar: o poder ser e ter um cantinho de Deus, que seja a poética prosaica, dos filhos e dos cantos do mar.
: ou, o labirinto que nos lança, o microrganismo que a tudo enreda, levando à (de)composição a vida que há. Adeus, no mundo sem vida, ao verme que a tudo dá, mas na ilha ainda ele há de calhar, com seus pontos fortes, e a todo o ciclo vital fazer girar, como na carcaça cabe lembrar ‘o que um dia era vivo e no outro dir-se-á: a morte ainda virá’”.
Estreitamos em três o caminho. As horas. Passaram rápidas. Mas, à medida que nos aproximávamos, mais lentos parecíamos ir: como um homem a deslizar num campo de horizonte de eventos à beira de um buraco negro, cuja irresistível e tremenda força de atração gravitacional, não lhe deixasse escapar, e nos parecesse de algum lugar bem longe dali, vê-lo cair cada vez mais, mais lentamente, apesar da máxima velocidade ele estando a alcançar.
Lento, lento ... muito lento. Muito lentamente. Até cair no sono, e dormir. O que vi ali, não sei se acordado ou dormindo, foi um canoeiro, que veio me buscar, com um cajado rajado, ao lado, na mão direita, em pé, apoiado, o mesmo que se lhe prestava a remar. A neblina espessa cobria os flancos de uma canoa, que na verdade, mais parecia uma galé ou nau em miniatura, trazendo desde a quilha até à proa, sobre o corpo todo, bem à frente, como carranca, a cabeça de uma cobra, bem marchetada a assustar. Em meio ao pântano, vinha abrindo caminho o canoeiro, em traje cru – ou, roupana. Quase não se movia. Movimentos curtos, lentos. A cabeça, às vezes, volvia: toda ela, careca.
Alcançou-me, deveras, nem dia nem noite fazia. Uma ausência de tempo, eu sentia. A bruma densa descorava de eivado branco, o cinza. Um bafo azinhavre subia dos vapores d’água, aquecidos, nos gases borbulhantes dos gêiseres, de cujo torto desenho fugíamos. Me cambiei pra barca de Caronte, já no outro lado do Estige. Depois, tendo estado às raias da Ilha Pedida, de nada me lembro, de ter visto como me aludira, outrora, o velho, partido. Mas, passado o limiar de qual cenário não acudido, inundou-nos tal luz, que antes que nos engolfasse fez estender Caronte a sua mão, e lembrando-me do passe a pagar-lhe, depositei nela a moeda para o Portal do Tempo defronte passar.
Um nevoeiro então enegrecido, num turbilhão envolvido, passou densamente a girar. Do centro se abriu, e mais denso ainda da borda fez a roda girar. Era um redemoinho, voraz a me tragar. Uma ventania logo se fez, quase roubando-me a roupa, difícil de controlar. Contra tanta pressão não podia meu corpo lutar. Enquanto eu rijo, enquanto pude, me dobrava como vara, ou um bambu, Caronte nem de longe mexia. Era um só bate-estaca a olhar.
Sem ter onde me agarrar, a centrifugação venceu-me a resistência e fui sugado, violentamente, naquela direção, em que um enorme bocal amedrontador e ruidoso, lançou-me num tubo de sucção, engolindo atrás de si toda a luz radiante, e deixando-me na mais profunda escuridão. Bastou esse ínterim para que num átimo de segundo a porta toda se fechasse. E já nem mais os “habitantes” da ilha, nem mesmo Caronte me vissem jamais. Eu, nesse tempo, havia zarpado.
***
Inconsciente, tombara nalgum lugar de uma floresta. O chão úmido, lodoso, encardia toda a minha vestimenta, e o rosto. Ao primeiro sinal de despertar, ocorreu-me logo como tinha ido parar ali. Em seguida, um susto de supetão me tomou, antes que visse a um braço de distância meus pertences. De alguma forma, tive um deslumbramento de que eles não seriam tão úteis assim. Mas, miraculosos. Sentia-me no meio do nada. Guardado, apenas, por sentinelas. Altas árvores recobrindo o céu. Não podia aventar o que seria de mim. Estava lançado à sorte. Cedo ou tarde o cansaço e a fome me abateriam. Precisava contar com alguém pra vir em meu encalço. Mas, quem se eu nada sabia, nem ninguém me conhecia. Esse foi meu desespero.
Desejei aquele túnel roubar-me a consciência de novo, e me livrar dali. Era desconhecido demais. Por fim, a andança e a empresa para dar cabo de empestamento de insetos, perigos incautos à espreita – que me acossariam ao longo de toda a jornada - e um sem número de manifestações sobrenaturais da natureza consumiram minhas energias, e fui dar num riacho, às margens do qual, me estirei e bebi, sedento, de suas águas, vindo a banhar-me nele para acalmar meu espírito.
Não sei quantos dias tomou. A mata cerrada escondera a lua, ocultando-me sua face. Tanto quanto o sol era parco por entre as fissuras das plantas acima. Apenas a clareira, agora, reluzia sob fúlgidos raios sentidos. O mormaço era incólume a essa abertura na atmosfera. Um oásis para o interior da floresta. Sinto que fui falindo, rendendo-me ao meu próprio peso.
Sonhei com os motores dos carros a roncarem na minha cabeça. Era tudo o que ouvia do meu quarto, em São Paulo. Rom Rom Rom ... Rom Rom Rom ... Rom Rom Rom ...
Cena “X”: André se vê correndo em disparada, acuado. (Smasch cut)
***
De repente, acorda assustado.
Deu de cara com as paredes finas de madeira rachada à sua frente. Um cheiro campeiro de pêlo de animal molhado, latrina, e esterco, profusos, no ar. Uma leve sacudidela da estrutura sob a qual estava lhe tomava a cabeça zonza. Não sem se inquietar, foi lá fora olhar: estava sobre uma palafita.
De certo com os animais enxovalhados para as bandas baixas da planície, na vazante, sobrou-lhe o merecido estábulo. Como posto provisório. Por certo. De qualquer forma, alguém tinha lhe dado a mão. Tinha sido encontrado, e não dado como morto. Ali estava ele naquele quadrante flutuante, sem poder acorrer a nenhum lugar, por ora, à espera de um salvador aportar.
E foi Terêncio ... ruguento. Foi se chegando na barca à beira do igarapé, rondilhado da água reinante. Os olhinhos miúdos, espicaçentos, por sob os cabelos pretos cortados a escovinha, vasculharam o menino-garrote, que ainda não reconhecia naquela arribação traço nenhum de pertencimento. Ainda assim, passou a cuia com pão e uma mistura à base de farinha de mandioca e feijão pra fartar a fome infame do retirante extraviado, de viagem ainda não intuída.
André não titubeou. Tomou ávido da cumbuca, e devorou o alimento. Foi o primeiro sinal que viu de que tinha encontrado um verdadeiro amigo. Daí em diante o desenlace entre ambos não mais se deu.
***
Foi da boca de Terêncio, justamente, que pela primeira vez André ouviu uma narrativa autêntica sobre o Pescador. E foi também a partir daí, que sua admiração por aquele ser tão mitificado, se tornou mais uma obsessão em sua paixão por estórias de mar e de pescadores.
Conta a lenda que desde o ano que chegou na ilha, não se tinha notícia de ter sido visto em nenhum lugar. Vivo mesmo eram só os boatos, e lendas. Todos ignoravam a sua existência. Exceto um homem, o Criolo. Um negro quilombola, de olhos vermelhos estriados, e pele retinta azul, e unhas compridas, corpanzudo, que negava na robustez e feições atléticas a idade que tinha. Criolo passava já dos 80, e era visto a pescar de vez em quando sozinho, a falar pelos cotovelos como um doido. Todos o temiam. Achavam ser vítima de sortilégio: da vez que entrou na cabana de Zé Ramiro, lançador de rede da turma de Geovardo da Lua, nunca mais foi o mesmo; vivia escondido pelos cantos do mundo, rogando pragas ...
Muito se acreditava que o falecido morador dali, o tal Zé Ramiro, nem mesmo antes de esfriar debaixo da terra, cedeu pouso em sua habitação ao dito fantasma do Pescador, que àquela altura sem o povo o saber, de fantasma não tinha nada. Estando mesmo por obra de artifício misterioso, reputado à uma cigana e longe do conhecimento de todos, vindo a convalescer por dias a fio ali, desacordado, sobre o rudimentar catre já destituído do corpo quente de outrora. Criam os moradores do povoado - versados no mito do canoeiro e do Portal Sagrado do Tempo guardado pelo barqueiro Caronte -, que vindo dos confins da Ilha Perdida o Pescador tratava-se de um ser mitológico ancestral de há tempos imemoriais atrelado ao espírito das baleias. E, por ter sido banido e condenado pelo irmão malfeitor Thanos a se desligar da ilha foi obrigado a vagar solitário para além dos limites da realidade e do sonho, da vida e da morte, do tempo e da eternidade, passando desencarnado à deriva de sua natureza primordial, a qual era: a de lutar sempre em benefício da coexistência pacífica da ilha e a perpetuação do santuário ecológico das baleias. Tal exílio, diga-se de passagem, foi causado por ter-se quebrado um mítico tabu num antigo ritual sagrado do povo dali.
Dito isto, vem a seguir como tudo se deu:
Foi o negro arrumar o corpo do defunto Zé Ramiro - conhecedor que era das artes de embalsamento, de ervas espirituais e do disfarçamento do forte bodum -, ... que o estranho se deu! José Maria, outro do grupo de Geovardo, correu pela porta adentro, num apavoramento, e declarou ter visto vindo do céu, o que não sabia dizer o que era, mas que feriu-lhe os olhos tão forte o clarão, e a coisa foi ter longe da praia, próximo à linha do horizonte, como um ponto de luz. Até que desse ali naquela areia branca, não se sabia que o que pousara do céu feito o vôo de uma fragata fulgurante era um barco à vela, às voltas de uma baleia, semi-destruído, sem ter em seu interior uma alma viva ou coisa outra qualquer; senão que dois estranhos objetos - sendo um deles, uma espécie de frágil caixa de madeira; e, o outro, as folhas de pardo material manuseável, logrado em tinta preta, com traços ininteligíveis, de fácil despedaçamento.
Sem poder deixar o defunto sem unção, Criolo negou-se a ir ver do que se tratava. Continuou suas rezas de raízes negras com pajelança, feito ribeirinho que era, e, surpreendentemente, três vezes condenou-o o espírito: na primeira, relutou que seus andejos pelo mundo espiritual se despregassem da ilha; na segunda, jurou-lhe perseguir caso a extricação não fosse cumprida; e, na terceira ordenou que se lhe emprestasse corpo substituto para que não vagasse sem rumo, afinal.
Na hora sem ver presteza naquilo, o pobre negro não quis aludir. Mas, sendo mais forte o pensamento daquele sobre o seu, não viu outro jeito senão tomar por solução o contato com o desaparecido náufrago, que devia estar às vias das cercanias daquela embarcação; vinda sabe-se lá de onde. Dentro, sobre o tapume, estava a Dracca, a moeda sagrada do Portal do Tempo. Desde sempre invisível aos olhos dos não predestinados. Somente a mão crioula reconheceu-lhe o peso da existência. Vista, pairou antes, breve, no ar. Reza a lenda que só quem transita magicamente entre o mundo dos vivos e dos mortos é capaz de enxergá-la. Ou, os de coração puro, sendo capazes de transmiti-la a outro iniciado.
Naquele dia, ninguém soube quem deu pouso ao Pescador na cabana. Nem mesmo Criolo. Mas, encomendou à alma do finado Zé Ramiro que tomasse o corpo do perdido náufrago, para lhe pôr os pés na ilha. E assim, se fez.
O defunto - por precaução, ou vadiagem, ou mesmo ruindade - voltou contra o seu próprio benfeitor um sortilégio em que para furtar-se a qualquer contrafeita de seus pedidos malfazejos, ao negro encantaria. E o negro aluou.
Se o espírito de Zé Ramiro vingou a contento ou não na pele do desaparecido náufrago, de sua feita pouco se sabe. A língua do povo diz que não: “o Pescador não se deixa levar”, dizem. As conversas com o quilombola mais tarde eternizadas em estórias que se espalharam por toda a ilha, parece também, dizem que não. Mas, o negro caducou.
Fato foi que, deu-se, porém, à chegada do Pescador na ilha encantada, território das baleias - únicos seres animais a reconhecê-lo em sua ancestralidade, e pôr nele os olhos - uma maldição que o acompanhou por onde fosse. A mesma cunhou na sua morte as condições para sua salvação e destino. Assim, sentenciava-se: só ser visto por puros e crédulos de coração, até o último dia de sua vida terrena. A exceção se daria exatamente nesse último dia de vida. Quando expirasse o ar de seus pulmões. Aí a maldição falhava. E todos o veriam.
Pois bem, o único a pôr-lhe os olhos quando chegou à ilha foi Criolo. Aluado, que já era. A cigana também, mas não sabia. A barreira da comunicação aparentemente intransponível entre o Pescador e o negro foi transcendida milagrosamente ao longo de imerso e intenso convívio, à espreita da vida local. Com ele Criolo tinha longas conversas desse e do outro mundo, o dos mortos. E o de onde viera o Pescador. E o de onde não se sabia onde ia se dar, o enigmático mundo vindouro. Entre ambos os amigos, desafiavam-se as leis e noções pré-estabelecidas. Mas, o Pescador pouco falava de si. Mantinha segredo de seus medos, traumas e feridas.
Criolo esteve assim na companhia do amigo por um ano, até cumprir sua sina, como pescador, e ir se estender numa esteira debaixo duma camada funda de sete palmos de massapé. Já desde os 70, bem vividos, que deixara a lida com a pesca por precisão, e se cumpria subir ou descer o rio por pura diversão. Mas, desde mesmo que o Pescador apareceu em sua vida, que recuperou foi a alegria boa de viver, das vezes e outras que dividiam boa prosa juntos nas andanças pelas matas adentro, e subiam o rio arriba em cima da mesma canoa. Gritando o negro, ao léo, nessas ocasiões, sob forte euforia em sua plena “vislumbração”: "Ó, que do lado do Pescador tudo é só uma grande alegria!”. E a loucura meio que passava.
Foi através dele, que num último suspiro, o Pescador recebeu a moeda de prata. Mágica e instintivamente ligou-se, logo, a ela. Enquanto estava moribundo, Criolo revelou, delirante, suas visões desconexas e descabidas, quanto a um futuro incerto do amigo no outro lado do mundo, apartado das demais almas, dividido entre idas e vindas sofridas ao continente de origem. Seu desgraçado apego aos erros do passado o fariam ter que se haver com os resgate de coisas terrenas e ancestrais.
Foi tudo o que me disse Terêncio.
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🍗 NOTÍCIAS COM FAROFA (ou sem)
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🇧🇷 NOSSO MUNDINHO BRASIL
- Em breve poderemos ter MORO CASSADO. Isso porque CNJ abriu investigação obre irregularidades de repasse feitos para Petrobras antes do trâmite em julgado de ações penais.
- Ministro Gilmar Mendes arquivou inquérito que investigava aliado de Arthur Lira. QUEM TEM AMIGOS E ETC.
- Julgamento da ADPF sobre aborto é pausado em plenário virtual do STF após ministro Barroso encaminhar destaque. A votação vai ao plenário físico da Corte.
- STF rejeitou Marco Temporal, mas ainda precisa definir sobre possível indenização de supostos proprietários de terras.
- O Governo Federal pretende utilizar imóveis da União em desuso para o programa Minha Casa, Minha Vida. Objetivo é entregar 2 milhões de moradias até final de 2026.
- O Brasil colherá a terceira maior safra de café da história. A produção nacional está estimada em 54 milhões de sacas.
- CGU vê indícios de irregularidades em pagamento de benefícios sociais pelo governo Bolsonaro durante período eleitoral. CGU também indicou problemas nas concessões de crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil.
- Supremo Tribunal Federal mantém direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff.
- General Heleno é convocado pela #CPMIdoGolpe e depoimento deve ser realizado na terça (26).
- Lula decreta no X (ex-Twitter) o início do final de semana. #SEXTOU
🌐 NOTÍCIAS INTERNACIONAIS OU RESTO DO MUNDO
- Mais de 10 mil policiais participaram da ação de retomada do presídio Tocorón, na Venezuela. O local havia sido transformado em um ambiente de luxo com zoológico, piscina, quadras esportivas, boate e até um cassino.
- Richard Roouz foi condenado na Rússia há 8 anos de prisão por publicar no Instagram mensagens anti-Putin. Imagina o que a Rússia faria com o anon que aparece lá no NGL da @letioliveirajor?
- Xangai ultrapassa Los Angeles e se torna capital mundial de e-sports.
- Satélites estariam demonstrando aumento de atividades em locais de testes nucleares nos Estados Unidos, Rússia e China.
- Mundo teve o mês de agosto mais quente da história segundo agência dos Estados Unidos.
- Autoridades de Taiwan relatam “movimentos anormais” de tropas chinesas próximos a ilha.
- Xi Jinping ofereceu ajuda a Bashar al-Assad para reconstrução da Síria.
- Irã anuncia novo projeto de lei que pode impor pena de 10 anos de prisão por não uso do hijab.
- Índia acusa Canadá de ser refúgio para terroristas após assassinato do líder Sikh.
💅CELEBRIDADES E SUBCELEBRIDADES QUE NINGUÉM LIGA
- Lexa e Mc Guimê anunciam divórcio e deixam de se seguir nas redes sociais.
- Após 11 dias hospitalizado para tratar de pneumonia, Agnaldo Rayol recebe alta.
- Alicia X, Cézar Black, Nadja Pessoa e Shayan vencem votação popular do Paiol e ingressam no elenco de #AFazenda15
- Em conversa no programa #AFazenda15, Sheherazade afirma ter sido advertida por opinar sobre a religião de Sílvio Santos. Comentários sobre conflito entre Israel e Palestina teria desagradado o dono do SBT.
- OpenAI, dona do Chat GPT, será processada por George RR Martin e John Grisham, autores de Game of Thrones, por violação de direito autorais.
- Shakira lança “El Jefe” com indiretas para ex-sogro e com dedicatória para babá.
- Esquadrilha da Fumaça vai realizar sobrevoo no Morumbi antes da final da Copa do Brasil
- Bia Zaneratto e Guilherme Madruga concorrem ao Prêmio Puskás de gol mais bonito da temporada.
- Kayky Brito tem alta da UTI e, segundo a família, está consciente e conversando.
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Resumo: Cézar batendo um papo com Morfeu paizão tm. Era pra ser poucas palavras, mas sou eu escrevendo né gente.(ficou enorme). Recuperou as memórias, viu ele sendo babaca na missão que ele morreu, conseguiu um carro com um maconheiro aleatório. E é isso.
“Finalmente decidiu aceitar meu convite. Sente-se”
O rosto de Morfeu não estava bravo, nem feliz - só neutro. Se sentou na cadeira oposta de uma longa mesa e apontou a cadeira do outro lado para Cézar. Estavam no meio da sala de estar do castelo místico do tão famoso reino do pai. O semideus se sentou, ainda apreensivo com o que sairia dali. Mas foi o sorriso bem mínimo na boca do Deus que plantou a semente de dúvida que talvez a conversa não fosse tão ruim.
Para te contextualizar, ó caro leitor, Cézar não engoliu seu ego logo de cara - antes, ele tentou sozinho recuperar as memórias emboladas em sua cabeça. A conversa com Barbara foi o que deu esse pontapé inicial de necessidade em precisar pelo colocar as ideias em ordem e descobrir qual foi a magnitude da merda que fez. Por isso, saiu do acampamento, decidiu uma floresta aleatória e usou a chave para entrar em sua cabeça. Para quem não sabe como funciona, pense em algo assim: tem uma fechadura em sua nuca, vira a chave mágica, seu corpo cai sem vida no chão e é criado uma versão duplicada sua. Tipo uma viagem astral. Confuso? Provável, mas já acostumado agora ele passa por uma porta cheia de “keep out” e entra na biblioteca que contém todas suas memórias. Livros alados desesperados voam para todos os lados tentando se encaixar nos vãos das estantes, sendo expelidos por não ser o local correto que deveriam estar. Quando entrou na primeira vez quase foi atacado pelos livros, mas agora bastava um erguer de mãos para que desviassem seu caminho. Recuperou a memória dos seus poderes só ajudando os livros voltarem para o lugar correto, mas já havia sido uma dor imensa. Tentou fazer isso com os livros que continham alguns nomes conhecidos dos campistas + os de datas próximas ao que ‘morreu’ e, novamente, sua cabeça latejou numa profundidade que até seu ouvido começou a sangrar. Foram muitas memórias recuperadas nessa tortura que te causava sozinho, mas o sangue te fez perceber que o trabalho de formiga não ia funcionar, então foi assim que seguiu as placas e chegou ao Reino dos Sonhos.
Pois bem, contextualizamos agora podemos seguir para o momento atual. Morfeu solicitava para criados servirem comida como se fosse uma visita qualquer e não iniciou nenhuma conversa por um longo tempo. Se sentiu obrigado a iniciar a conversa, já que tudo que recebia era um bife em seu prato. “Então.. Oi. Todo esse tempo cê tava me pedindo pra falar contigo pra uma janta? É .. isso? Nem um xingo, eu te avisei, nada?"
“Não estou aqui para brigar com você, Cézar, se é o que estava esperando. Estou realmente feliz em vê-lo” o Deus servia vinho no próprio copo e oferecia, mas o semideus prontamente recusou. Tudo estava pacífico demais, ainda tem suas desconfianças - mesmo a intuição dizendo que não, seu pai era assim mesmo. Calmo feito um sono tranquilo. “Subestimei sua teimosia, admito. Este encontro deveria ter ocorrido assim que acordou. Pensei que não ter memórias seria o suficiente para que falasse comigo para compreender o ocorrido. Como cabe tanta falta de juízo em você, é um mistério” Se sentiria ofendido, se não fosse verdade. “Sei que está tentando recuperar suas memórias. Por que mudou de ideia? Estava tão confiante em seu plano em seguir em frente e ignorar tudo. Estou curioso” Não havia sorrisos ali, mas a provocação estava no olhar. Cézar se curvou na mesa e soltou um suspiro em deboche.
“Não seja cínico, como se não soubesse. Mas.. Acho que ta na hora de concertar as coisas né. Eu tô puto contigo por muito tempo por essa maldição aí..” - Morfeu o cortou, dizendo “Não é uma maldição, é uma consequência. Prossiga” - Cézar suspirou e deu um semi revirar de olhos. Que vibe de pai que ele tinha mesmo. Parece que mesmo sem lembrar dele seu instinto reagia como um adolescente tentando convencer o pai que precisava da chave do carro “Ta, consequência. Mas eu preciso saber consequência do que exatamente. Eu descobri muita coisa e.. que merda, preciso de ajuda para resolver.. Um pontapé inicial, só isso. Para concertar algo preciso saber o que é o algo. Só dizer que sou irresponsável não adianta de porra nenhuma, saca. Sou irresponsável? sou, mas por quê? Preciso de motivos caralho. Por enquanto só tenho conhecimento de que foi você que me deixou em coma e me tirou 6 anos de vida” ficou mexendo na comida sem fome e pensando como poderia concluir, pois saiu meio rancoroso no final. Talvez pedir desculpas ajudasse a convencê-lo a te ajudar. Se Morfeu dissesse se vire, ia mandar o Deus pra puta que pariu “Desculpa não ter vindo antes. Pode me ajudar para que de fato eu possa 1. justificar a culpa e 2. realmente fazer algo para melhorar? Tá foda ficar no escuro, só tô fodendo as pessoas e aumentando o carma”.
Para sua surpresa, e posterior desespero, Morfeu disse sim. Foi com um sorriso mais amigável, quase orgulhoso - ainda que Cézar tivesse só rancor nas palavras - que as memórias começaram a disparar em sua cabeça como se tivesse sido disparado um flash de câmera em seu rosto. Obviamente, a dor de cabeça te acompanhou da mesma forma como se tivesse ido livro a livro. Em algumas memórias específicas, Morfeu parava ao estilo apresentação de Power Point e explicava a problemática. Explicou todo o treinamento que tiveram e como Cézar ganhou a chave da cabeça, mas que não compreendia como o semideus conseguiu misturar o seu poder de entrar nos sonhos alheios com as ilusões e os efeitos da chave de acessar ao subconsciente = resultando no poder problemático. Era fascinante, dizia o Deus, mas sabia que arriscou muito pois ninguém acreditava na possibilidade de Cézar entrar nos eixos. Explicou da sucessão de erros que fazia em todas as vidas que já viveu, como sua arrogância e sede por poder te seguia. Que sempre voava muito perto do céu e se destruía, mas dessa vez Morfeu quis cortar o ciclo tentando guiá-lo e puni-lo, invés de afagar seus cabelos. Viu seus amigos: a relação de irmãos com Solomon, o acompanhando em missões e quantidade de festas que o obrigava a seguir; recebendo Barbie no acampamento, o que parecia um olhar apaixonado e juvenil dela com ele e a relação de super protetor que possuía com a menina; as memórias que Summer lhe mostrou também apareceram, as piadas ruins compartilhadas e os dias lendo na biblioteca (com ela surtando com ele todas as vezes). Ex-relacionamentos, amigos, meio-irmãos, a obsessão por esconder a própria sexualidade. Viu o relacionamento com Milo e o quão adolescente e bobo parecia tudo aquilo. No final das contas, sentiu como tudo se tratava mais de uma necessidade de carinho e desculpa para se assumir do que amor de verdade.
Logo as memórias foram piorando o teor. Entrar em sonhos, criar pesadelos, alteração de memórias, brincadeiras inofensivas para ele - mas que deixavam muitos apavorados. Nada com consequências permanentes, mas ainda um babaca invasivo. Cada vez mais missões para que pudesse testar essa forma dos poderes nos campistas desavisados. Tinha acesso a informações privadas e usava isso como moeda de troca. Cézar se sentiu uma pessoa péssima e ainda mais egoísta, em algum momento perdeu toda a compaixão por ele mesmo e acabou perdendo pelos outros também. Mas, como sempre, seu trio ficava do seu lado. Deveria ser um puta mentiroso ou só passavam pano mesmo. Morfeu continuou sua explicação, frisando bem a arrogância e como nem seus meios-irmãos gostavam muito dele por isso, principalmente quando ganhou o título de conselheiro. Cézar só soltou um já entendi, estava vendo, não precisava que cutucasse tanto. O Deus também enfatizou que a partir de sua maior idade ficou mais em cima do rapaz, porque não era do seu agrado que usasse seus poderes para invadir a cabeça dos demais. Os avisos de que não estava preparado eram muito mais ligados ao caos emocional que Cézar possuía e a falta de empatia, No entanto, jamais se metia em seu livre-arbítrio. Até sua famosa última missão.
Vejam só, Cézar é uma pessoa curiosa que não mede muito as consequências dos seus atos. Morfeu disse que o motivo que lembrava tão pouco das memórias com seus pais, era porque havia queimado todas as memórias muito traumáticas dentro de sua própria cabeça - só não conseguindo deletar as mais enraizadas. O pai já achava ruim o suficiente que ele não buscasse lidar com aquilo, mas foi pior ao resolver testar a mesma coisa em um mortal aleatório. A princípio entrou em sua cabeça para tirar a informação de um lugar que tinham que ir em missão, apagando o mortal com a areia do sono que ganhou do pai. Pegou a informação, mas resolveu só testar uma coisinha: apagar uma pessoa aleatória de sua mente e tirar a lembrança de que ele conseguia andar. Sinceramente, nem achava que funcionaria. Afinal, como poderia mover uma lembrança que a vida toda o cara andava tranquilamente? Quando o rapaz acordou, confirmou que sim tinha funcionado. Complicado que a pessoa aleatória era sua esposa e que agora o rapaz não conseguia andar, mas não se lembrava de como se locomoveu a vida toda. Notou a merda que fez, mas ao tentar entrar na cabeça do mesmo homem percebeu que não sabia incluir memórias com a mesma precisão que conseguia tirar. E Morfeu se irritou, foi a gota d’água da palhaçada que Cézar estava fazendo. Não tirou sua responsabilidade dessa vez, o semideus queria se afundar na cadeira com a culpa e com os olhares de eu avisei que agora sim faziam sentido para um caralho. Puta que pariu. Caçar merda sua não foi uma boa escolha, porque realmente achou.
O papo terminou de forma meio abrupta porque começou a sentir mãos em seus ombros e uma voz te chamando. Uma voz aleatória, que dizia “Cara, ei, cara” diversas vezes. Morfeu disse que podia ir, que teriam tempo para conversar novamente. Mas que pensasse nessas memórias, em como seu poder poderia fazer muita coisa boa - mas preferiu não seguir por esse caminho. “Você não é uma pessoa ruim, Cézar. Há muitos atos de amor e caridade que tem com seus entes queridos. Mas fez escolhas ruins. Não há como mudar o passado, mas sim como ajustar o futuro. Ser melhor. Parar de se esconder tanto e não medir suas consequências. Você ficou irritado comigo mexendo em seu livre arbítrio, mas como todas essas pessoas se sentiram quando mexeu no delas? Estou te dando uma nova chance. Use com mais sabedoria, senão eu mesmo farei questão de finalizar sua passagem nesta vida”. E com isso Cézar voltou para o Mundo Desperto, segurando a chave nas mãos e vendo um rapaz aleatório meio desesperado te sacudindo. Viu ele suspirar aliviado e se sentar nos tornozelos.
“Cara, achei que ce tinha morrido. Parei o carro aqui, na moral pra fumar um e tals, mas aí vi seu corpo ta ligado? E nem tenho celular saca. Foda cara” Claramente o outro estava chapado, mas culpa do Cézar em resolver fazer isso numa floresta que com certeza teria escolhido para fumar um. Trocou mais umas palavras com o cara e quando percebeu já estavam dividindo um beck e falando como a vida era foda na frente de um lago. Ouviu várias histórias do cara explorando o mundo com sua van e de liberdade e daqueles papos que ele mesmo tem quando chapado. A diferença era que ganhou a van dos pais ricos. Quando viu, já estavam trocando saliva e arrancando a roupa para transar dentro do colchão que tinha dentro da van. Claramente, zero segurança envolvida porque se pensasse melhor facilmente pegaria uma micose ali. Ficou bem reflexivo na van, em tudo que ouviu e viu, e como agora que sabia das coisas como realmente tentaria ser uma pessoa melhor. Ao mesmo tempo, seu espírito trambiqueiro estava ali. Seria melhor em coisas sérias, mas uma mentirinha inofensiva realmente faria mal a alguém? Em breve teriam o Halloween e faria bom uso para compor sua fantasia. Além disso, tava na hora de ser adulto e ser adulto envolvia ter carro né? “Hein, quanto tu quer pela van?” Soltou para o outro rapaz, que prontamente respondeu que não estava a venda não, cara. Era seu xodó e tudo o mais. Cézar apelou para o emocional usando o papo contra consumismo que o outro havia falado, e os pais dele eram ricos facilmente dariam uma melhor. Viu o balançar ali, mas deu sua cartada final falando do dinheiro e da erva que tinha na mochila. “Muita. E da boa” e logo mostrou, abrindo o zíper. Ok, tinha um tanto sim e dinheiro também, mas fez uma ilusão inofensiva para aumentar de leve a quantidade. O olho do outro brilhou e ele concordou, saindo com a mochila do Cézar e as próprias roupas no braço. Foi agradecer a natureza ou qualquer coisa.
E Cézar, enfiando a calça e colocando um novo cigarro de maconha na boca, foi para o volante e ajustou o GPS para o acampamento. Prometeu para Morfeu que honraria a confiança que lhe deu e seria uma pessoa melhor. “A partir de amanhã, eu juro”. Ele realmente tentaria, só precisava ajustar um pouco o juízo de certo e errado dentro da própria cabeça. Mas primeiro, resolveria as pendências com os amigos e daria um jeito de descobrir como ajustar as coisas para o homem que ferrou a vida com tanta destreza. Agora a culpa era justificada, mas pelo menos a vontade de fazer melhor também.
Ah, esqueci de comentar, foi voltando para casa que encontrou Scooby na beira da estrada e o adotou. A vida estava colaborando para sua fantasia ficar perfeita. E também, precisava de um pouco de suporte emocional para não surtar quando estivesse sozinho no chalé. Talvez a conversa com Morfeu caísse pior na garganta quando não estivesse tão chapado.
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