I
"No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz." (Genesis 1)
Eu sempre quis morrer e sempre gostei de dormir por que existir nunca me pareceu agradável. Dormir, de certa forma, se assemelha muito com a minha ideia de morte: silenciadora e prazerosa. Minha língua então estaria muda, meus ouvidos finalmente surdos e minhas artérias já não teriam mais com o que se preocupar: meu cérebro seria desligado assim como as luzes de um salão após uma festa ruim e cansativa.
Meu pai sempre leu a Bíblia e, inclusive, comungava desde ainda quando garoto. Que faltasse biscoito no armário de casa, mas o dízimo indo pra Igreja era de lei. Beata, conservador e homem de Deus em público. Secretamente, um alcoólatra infiel e viciado em nicotina e jogo de máquina. Ao invés de me ajudar com as lições de matemática, me fazia gravar algumas passagens, ainda criança, na marra.
''Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Todo-Poderoso descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza...", eu recitei, assim que o aprendi.
Uma vírgula errada e eu ganharia um tapa, em nome de Poderoso Criador.
Na catequese, eu nunca contei pra ninguém como que adquiri a habilidade de recitar o Salmo 91 até do avesso.
Apesar de orar assiduamente, acredito que meu pai nunca foi bom em Redação na época da escola. Sempre interpretou muito mal a Bíblia e, talvez, por isso, eu sempre acreditei naquela história do "sono da alma". Dormir seria só uma forma de descrever a morte, porque um corpo morto aparenta estar dormindo enquanto sua alma está no Paraíso ou Hades.
Assim, quando criança, eu me cobria até os ombros, à noite, e ficava mentalmente me fustigando com a ideia de que talvez eu não fosse bom o suficiente para os Céus. Pois, no oposto, provavelmente encontraria meu pai. Então, eu rezava mais.
Assim, a ideia do Sono me confortava. E meu pai, bêbado na maioria dos dias, alimentava ainda mais o meu desejo.
Uma noite aleatória de sexta, eu saí e voltei só pela manhã do sábado. Eu tinha bebido o suficiente pra me sentir enjoado só de ver uma acetona na minha frente e tinha fumado mais maconha que Cheech & Chong juntos. Meus olhos pesavam e provavelmente estavam tão vermelhos que eu devia ter no rosto duas cerejas com sobrancelhas.
Entrei pela sala e o encontrei afundado na poltrona velha, segurando um copo de vinho barato.
"Eu queria que sua mãe tivesse me dado uma filha decente, não um maldito vagabundo desobediente", murmurou, com escárnio.
Bebeu o resto em um gole e empurrou o copo. As lascas de vidro rolaram pelo tapete coberto por uma nata de poeira, cinzas e respingos de vinho.
"Limpe essa sujeira".
Eu me ajoelhei, evitando que ele reparasse nos meus olhos. Recolhi os cacos que consegui encontrar.
E, então, continuou: "Maldita hora que fodi sua mãe sem camisinha".
Eu senti algo dentro de mim congelar.
"Você é um bêbado", eu disse como se cuspisse as palavras.
Ele me deu um tapa.
"Não pense que não sinto de longe o seu cheiro de álcool e fumo, maldito."
Segurou meu rosto, me obrigando à olhá-lo nos olhos.
"Me vejo toda vez que olho pra você. Não pode fugir do seu pai, garoto."
Ele se levantou e foi deitar.
Não pode fugir do seu pai, garoto. Não pode fugir do seu pai, garoto. Não pode fugir do seu pai, garoto.
Aquilo ecoou na minha mente. Encarei como um desafio.
Eu também deitei, só que no tapete. Fiquei encaranto o ventilador e as rachaduras no teto até que senti meu celular vibrando no bolso. Ah, lar doce lar e o wi-fi que conecta automaticamente. Tinha umas cinco mensagens do Jhone Martins logo nas notificações. Haja paciência.
Jhone: GUSTAVO - (08h21)
Jhone: como cheguei em casa?? - (08h21)
Jhone: MEU DEUS - (08h23)
Jhone: pq meu olho ta ficando inchado???? - (08h23)
Jhone: ????????????????? - (08h25)
Senti algo me incomodando nas costelas. Cheguei pro lado. Era a carteira e o maço do meu pai. Abri: cartões e mais cartões, a imagem Jesus Cristo branco e loiro de olhos azuis, dinheiro e uma nota fiscal de alguma compra numa joalheria. Como assim ele andava comprando jóias?
Meu celular vibrou de novo.
Jhone: me responde seu porra - (08h28)
Deixei a carteira de lado e guardei a nota fiscal e uma cédula de vinte. Com Jesus me encarando daquele jeito, não me senti bem pegando uma de cinquenta. Peguei também quatro cigarros do maço.
Eu: mais respeito, moleque - (08h29)
Jhone: foda-se - (08h29)
Eu: pra começar, você disse ter dinheiro pro táxi mesmo a gente tendo combinado diferente - (08h30)
Eu: mas você não tinha dinheiro - (08h30)
Eu: e a gente tomou uma coça do motorista - (08h30)
Jhone: HAHAHHHAHAHA - (08h30)
Jhone: quando isso???????? - (08h30)
Jhone: cade meu dinheiro cara - (08h30)
Jhone: porra eu ainda to chapado - (08h30)
Eu passei a mão pelos cabelos e suspirei.
Eu: espera eu terminar de falar - (08h30)
E então eu tive uma ideia.
Eu: merda - (08h31)
Eu: foda-se - (08h31)
Eu: você tem máquina aí?- (08h31)
Jhone: rude - (08h31)
Eu: te dou exatos onze minutos pra aparecer aqui com o pente de um e fazer as honras - (08h31)
Jhone: HAHAHAHAH será um prazer - (08h31)
Jhone: eu sempre te odiei com esse cabelo bob dylan - (08h31)
Jhone: só deixar a janela aberta, rapunzel - (08h31)
Jhone Martins surgiu na janela e praticamente voou pra dentro do meu quarto. Com ele, surgiu um cheiro forte de erva. Típico.
"Você demorou..." eu olhei no relógio antes de continuar. "Dezessete minutos. Muito além do prazo, sendo que você mora na rua de cima".
"Que apaixonado!" ele debochou. "Sentiu minha falta, baby?".
O ignorei.
"Seu olho tá horrível", o ofendi antes de ir para o banheiro.
Jhone veio atrás de mim com a máquina na mão, desembolando o fio. Ele se olhou no espelho, tocando o olho inchado e roxo.
"Isso que dá inventar de pegar táxi sem ter dinheiro pra corrida" eu disse, rindo.
Ele fingiu me ignorar e perguntou, puto:
"Por acaso tem gelo nessa porra de casa?".
"Porta de cima. No freezer".
Ele me entregou a máquina nas mãos como se entregasse uma espada chinesa de honra.
"Quando eu voltar eu quero te ver sem esse ninho de passarinhos em cima da cabeça".
Eu balancei a cabeça. Ele se virou e saiu. Foi mancando até a cozinha.
"Esses taxistas de hoje... Brigam melhor que o Mike Tyson" Jhone murmurou.
7 notes
·
View notes