Meio barroco, meio besta, meio bosta. Mas acho que essa coisa chamada escrita dá em algo interessante...
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As faces do mar de Olinda
A água verde faísca sorridente sob o sol de meio dia de Olinda. Usando seu charme de esmeralda, enamora-se com a areia como jovens amantes: ela vai... e vem... e vai... e vem... numa cálida e lenta conquista de poéticos movimentos e beleza intrínseca. Os barcos, deitados um pouco mais ao fundo, descansam o sono do almoço em sua rede natural. Todas as proas apontam na mesma direção, revelando ao mundo aonde a correnteza lhes segredara pouco antes que queria ir. Perto dos arrecifes, calmaria: somente a espuma das ondas ultrapassa a barreia, cobrindo a tranquila manta verde das águas com uma brancura angelical. E nas partes onde a areia da praia dá lugar à contenção, as ondas que se jogam às pedras ecoam harmonia, dando aos ventos de presente a doce cantiga do mar. São os alísios, afinal, que chegam nos quentes meses de dezembro e penetram suas brisas pela cidade, banhando os homens com toda a plenitude do seu bem-estar. Ah, as águas do mar de Olinda, que de tão lindas, eu hei de amar!
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O sol se foi, a praia calou, caiu a noite. Sob a negra vastidão das estrelas, Olinda deita-se em silêncio. Nos escuros cantos da cidade, o que se passa? Um bêbado abraça a solidão, um corpo agonizando chama a morte e uma moça vê seu fim pelos olhos do estuprador. Sim... a Olinda das águas faiscantes é a mesma dos crimes brutais e sombrios. A desgraça toma a cidade como a peste, dizimando a dignidade e a esperança dos que ainda sonham viver. Mas que vida é essa, em que o crime é a ordem e cada cruz é uma espada? Que vida é essa, em que negros morrem aos centos e mulheres aos quinhentos? Que vida é essa, em que o terror persegue crianças esfaimando sem nunca parar? Ah, as desgraças mil de Olinda... que por serem infindas, jamais poderei escapar.
- Janeiro de 2019.
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A Dona Vero
Das coisas que conheci em Salta, não tenho dúvidas de que Dona Vero foi a mais especial. Não vivia em nenhuma das grandes casas antigas, com muros baixos e jardins na entrada, que abundavam na parte nobre da cidade. Tampouco constava nas tantas listas turísticas que chegaram às minhas mãos, parecendo assim só mais um ponto indiferente no meio da conturbada minitrópole andina. Mas se engana quem pensa de tal forma. A Cozinha de Vero foi o lugar mais saltenho que cheguei a conhecer, responsável direto por me imergir naquele mundo completamente distinto durante os poucos dias em que estive ali.
Nos conhecemos por causa da necessidade. Eu, mochileiro de primeira viagem, com menos dinheiro do que deveria ter e me forçando a economizar; ela, mulher firme e dedicada, no auge de seus 54 anos com contas e compromissos batendo-lhe à porta. Depois de uma vaga indicação que recebi no hostel, também eu bati lá. De início, comer em seu modesto restaurante soou como um erro: o pequeno e abafado lugar não parecia confiável, e suas mesas de madeira crua passavam longe de ajudar a dar credibilidade. Um balcão de concreto separava a área dos clientes da cozinha, pequena e simples como a de uma casa em construção. Ainda no salão, duas moscas solitárias brincavam perto da janela. Também vi na última bandeja do frigobar, que fitava atenta as primeiras mesas do restaurante, ingredientes pertencentes à cozinha que se perdiam em solidão, deslocados em meio aos refrigerantes pela falta de espaço do lugar. Mas me veio o olhar de D. Vero, esforçado e convidativo, indagando curioso se eu não iria entrar. E foi assim que me pus porta adentro.
O cheiro de fritura irrompeu em meus pulmões numa fração segundo. Como uma manta, o calor me envolveu o corpo, já atormentado pela aridez de Salta. Dona Vero parou de secar um copo e, com um leve sorriso no rosto, me estendeu o simplório cardápio do lugar. Das opções disponíveis – cujos preços certamente me atraíram –, apenas uma me parecia conhecida. Assim, indaguei sobre as outras com meu idioma único, misto de português, espanhol e gesticulês, ao que ouviu atenta e me explicou com paciência e simpatia o que era cada prato. Escolhi incerto a que me parecia melhor. Vi em seu rosto um suspiro, seguido pela determinação de mais um trabalho a se fazer. A expressão delineada em seu semblante revelava longos anos de batalha pelo pão de cada dia, mas Dona Vero não era mulher de desistir fácil. De jeito nenhum. Aqueles eram olhos de uma alma imensa como muralha, e eu os conhecia de longe. Antes de tudo, eram os olhos de mamãe.
Sentei e, imerso em pensamentos, me pus a esperar. Chegou à cozinha uma adolescente, de sorriso tímido e pontudo nariz, que logo percebi ser a filha de Dona Vero. Pouco falava, e observava atenta cada movimento que acontecia ao redor. Depois de lavar as mãos na parte de trás da cozinha, começou a descascar algumas batatas, que seriam fritadas em pouquíssimo tempo para compor o prato que pedi.
Sentou-se na mesa ao lado uma senhora, que falava de uma maneira incompreensível aos meus ouvidos, mas parecia cliente antiga da casa. Sem parar suas atividades, Dona Vero começou a tecer uma gostosa conversa, sorrindo a cada novidade que a senhora lhe contava. Interrompia-a por curtos períodos de tempo, apenas, para perguntar como preferiria seu jantar, e logo depois voltava a conversar e rir com a conhecida, nunca deixando suas mãos pararem de trabalhar.
Não sei bem quanto tempo esperei sentado na mesa de madeira seca. Às vezes me perdia tamborilando alguma canção com os dedos, ou mesmo observando Dona Vero e a filha na cozinha. Quando ficou pronto, porém, veio a belíssima surpresa do prato farto e delicioso. Naquele lugar, refletia-se a resiliência do povo andino, o cuidado com os que vinham de fora e a delicadeza intrínseca que possuíam. Paguei o jantar e, antes de sair, Dona Vero me ofereceu (sem custo!) um copo de suco, sobra do que fizera para si e para a filha. Foi assim que, pronto para a noite, parti, carregando em meu espírito a singular leveza que me ensinou.
Por todos os jantares de hospitalidade e simpatia, muito obrigado, Dona Vero.
Salta, 26 de janeiro de 2019
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Loucos?
Por um segundo pare para pensar: o que, afinal, é “loucura”?
O dicionário a define como “alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus habituais métodos de pensar, sentir e agir”. Mas se a loucura anda tão próxima do habitual, também o faz a sanidade. E eis que nós, imersos em insanos hábitos, sequer paramos para saborear o sentido do que nos cerca. Trabalhamos, discutimos e decidimos como loucos, mas sempre dizemos que loucos são os outros. Sempre os outros. E são moucos, ainda mais, por não querer ouvir a voz da razão! A última vez que tentamos compreender o argumento oposto... Bem, não interessa quando foi. Mas como são loucos os outros! Como são loucos.
Com ferro em brasa, atacamos a sociedade e criticamos as “horrendas” injustiças, mas cegamos nossa alma com vontade submissa caso alguém – nosso deus de estimação – nos ordene a assim agir. Para alguns, pecado maior não há que imagens adorar, mas não são imagens, distantes e desconhecidas, que lhes dizem no que devem pensar? O salvador não mais desce dos céus, mas do planalto, e seus súditos aguardam com intenso sobressalto a cada novo mandamento de suas bíblias digitais. Como pardais, comendo os farelos do sofrimento alheio, dizemos nós que “fizemos do que podíamos até mais”.
Pois eis que agora, ao fim de tudo, assistimos de longe as ruínas do mundo nas mãos de poucos. Mas loucos? São sempre os outros.
Recife, 08 jan 2019.
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Coisa de Deus
Diante de vagos olhos desatentos, aquele tímido ser provavelmente passaria despercebido, camuflando-se em meio aos infinitos detalhes esculpidos nas majestosas colunas da catedral. Para mim, no entanto, que por acaso o vi entrar por uma das capelas laterais, não poderia haver maior solidão. Enquanto concentrava-se em caminhar, sua musculatura, proeminente e natural, marcavam presença sob o tecido justo do delicado vestido. O curto rabo de cavalo que dava ordem a seus cabelos cambaleava desolado pelos corredores, buscando no mundo o perdão que necessitava encontrar em si.
Às pinturas dos santos, rogava tímidos pedidos de ajuda, rezando por um sinal ou um olhar de compaixão. Elas, porém, não se moviam. Sua barba por fazer sussurrava às esculturas o medo que sentia... e não respondiam. Mas em algum lugar, entre aquelas frias pilastras de mármore que iam do teto ao chão, tal ser sabia que se escondia o suave e aconchegante abraço da redenção. Tanto é que, a uma escultura determinada, lançou preces particulares por entre os lábios cobertos de batom. Que acharia Deus de tudo aquilo? Passara os últimos anos mendigando a resposta ao silêncio.
Seria ele um anjo? Uma besta? Uma curva errada no curso da evolução? Era comumente chamado de “coisa” por não encaixar-se em lugar nenhum. Aos homens, parecia uma aberração enfeitada; às mulheres, uma tentativa inútil de negar sua realidade.
Mas não era monstro, tampouco iludido. Aquele ser apenas era. Com suas pernas cabeludas e cabelo até as pernas, simplesmente era. Era a Terra, o infinito, o universo; como poucos autêntico, magnífico inverso. Desafiava as leis dos homens, dos Átilas e Romeus. Mas será que ainda estava dentro das leis de Deus?
Todos os padres diziam que não, mas a lógica (e o Papa) apoiavam sua decisão. As escrituras sagradas condenavam sua forma de ser, mas não fora ele forjado pelo Sagrado ver? Nunca quis contrariar o desejo do Pai, ou mesmo desafiar a ordem dos céus. Mas se Deus lhe fez, no mundo lhe pôs e ainda o deixava... Por que nos versículos não se encontrava?
Seria aquele um jogo sádico, triste e cruel, em que o ponto final é a condenação por um crime que não cometeu? Pois bem lembrava que nada tinha feito, se não seguir sua natureza. Duvidava que fosse esse o caso, tamanha era sua crença na bondade do Senhor. Mas o que seria, então? Havia anos que se perguntava, e na catedral agora sentava-se ao meu lado em busca de solução.
Terminei minha prece, abri os olhos, senti suas lágrimas respingando no chão. Sofria sozinho, gritando calado por uma luz no meio da escuridão. Pouco depois nos separamos e seguimos assim os nossos próprios cursos. Será que Deus o perdoaria antes de mutilar os pulsos?
- Santiago, Jan/19.

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A viagem
Peguei hoje um ônibus diferente para chegar à UFPE. Na entrada da universidade, há um novo trecho da avenida em obras; o ônibus que eu normalmente pego caiu no abismo do caos e eu não podia chegar atrasado de jeito algum.
Subi no ônibus e o único assento vago à vista era o do cadeirante, logo à frente da porta do meio. Mesmo no sol, com a cadeira torta e sem ventilação, me sentei. A música tocava alta nos fones de ouvido enquanto minha mente vagava em um pensamento qualquer. Senti uma pontada de estranheza e, incerto, comecei a pensar. Foi então que lembrei que poucas paradas depois da minha – por razões inexplicáveis à ciência –, um fluxo grande de idosos costuma entrar nos coletivos. Não foi diferente dessa vez, e diante do meu assento, os idosos começaram a subir. Em uma parada, a porta se abriu e subiu uma senhora. Sentado em cadeira preferencial, era meu dever levantar, e eu ainda pegava fôlego para oferecer meu lugar quando, de subto, um rapaz sentado próximo o fez primeiro. Fiquei feliz pelo gesto dele e surpreso com a velocidade que teve. A senhora sentou-se, o rapaz acomodou sua bolsa no chão e assim seguimos viagem. Mal imaginava eu que aquilo era um aviso do universo sobre o que estava por vir.
Na parada seguinte, um casal de idosos. Outros dois rapazes, com a mesma velocidade, ofereceram seus lugares. Na terceira, um senhor de cabelos ralos; levantou-se uma menina um pouco mais atrás para que se sentasse. Surpreso, eu assistia a todo o episódio. Ninguém dizia nada ao outro. As pessoas que levantaram não trocaram uma palavra sequer. Mas era como se competissem para ver quem seria o mais gentil daquela curta viagem.
O padrão se repetiu mais algumas vezes antes que chegasse minha parada. Não vi quando nenhuma daquelas pessoas desceu do ônibus. Também não vi aonde cada pessoa foi, seguindo sua vida depois de tanta cordialidade. Mas vi como pequenos gestos têm um poder incrível de mudar o dia alheio, e foi feliz assim que cheguei à universidade.
- Recife, Junho/19
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Aos antepassados
Coisa mais comum era Carmelo raiar quando o sol ainda tava no braços de Morfeu. Sentava na cama, esticava a coluna e cumpria o ritual com o suspiro de sempre. De madrugada ele não usava lampião. De jeito algum. Carmelo conhecia cada poeira da casa com a palma da mão. Às vezes ia na calçada olhar a rua e respirar o vento frio. Só Deus sabe o que ele via dentro da escuridão, mas que via alguma coisa eu tenho certeza que ele via. Era homem esperto, com um olho na sabedoria e outro no Cão.
Pouco depois já tava com a peixeira no braço e a rede nas costas, caminhando inté o areal pra botar a jangada no mar. Parece que teve um compadre, um dia, só que tentaram lhe passar a perna e ele preferiu trabalhar só. Eu confesso que naquela época ficava com medo até de pensar, mas Carmelo era homem que navegava pelo som. Conversava com as ondas, sentia o gosto de tempestade que tava por vir, vez por outra fumava um cachimbo marrom. Um homem disse uma vez que ele fazia pacto com o Diabo pra pegar os peixes bons, mas nisso eu nunca acreditei. Não era lá chegado ao povo, mas dava pra ver que ele era um homem bom. Gastava o tempo que tinha cuidando da família, da pesca e da peixeira. E quando o sol levantava, já ia ele saindo do mar, pronto pra levar a mercadoria nas costas, de porta em porta a quem quisesse.
Talvez até dê pra dizer que Carmelo saiu da fome pra “fama”. Não que ele fosse um coroné; ficou conhecido pelo trabalho honesto, fosse chuva ou fosse sol, pelas ruas da cidade de Olinda. Quando chegava, já tinha certa a freguesia: os que só queriam peixe de primeira, os que se satisfaziam com ter pra comer os de segunda, os que ficavam esperando as sobras dos melhores cortes pra tentar pechinchar... E quando já se aproximava o fim da manhã, ele parava sempre pelo caminho em alguma bodega que esperava entediada a hora passar e tomava um gole de cachaça pra aliviar o calor. Jogava conversa fora com o compadre do balcão, perguntava sempre como ia a família, depois voltava a caminhar com a peixeira embainhada e o último pedaço de peixe no ombro. Era o pedaço dele.
Os meninos de Carmelo eram novinhos, naquele tempo, e se escondiam toda vez que o pai chegava na casa velha de barro com o comer. Tinha dia que Rosa até saía pra o rio, mas ainda assim voltava antes de ele chegar. Ela era lavadeira, e afeita que só ela pela senhora do engenho alto. Não passava três dias sem ir pegar as roupas na casa grande, e era sempre a mesma coisa: dava bom dia, arrumava o cesto, colocava na cabeça e era interrompida pela sinhá que sempre se danava a conversar quando ela tava pra ir simbora. Mas olhe, eu preciso dizer: Rosa tinha uma mão...
Até quando Carmelo trazia peixe ruim ela fazia ficar bom. Podia ser cavala, cioba ou tainha: só o cheiro do peixe no fogo já era de fazer a vila estremecer. E quando era época de fartura, então, que se conseguia trocar um peixe bom por uma parte da colheita do povo, aí é que não tinha pra mais ninguém. O peixe no coco de Rosa, mesmo, deve ter sido a coisa mais cheirosa que eu já senti.
Recife, 07 de outubro de 2018
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Sintonia
Em sintonia. Era assim que ficava toda vez que tinha encontro marcado com o mar. Deixava que as águas abraçassem seu corpo e não mantinha na superfície mais que o necessário para pensar. Longe, as ondas quebravam na areia de sua consciência, que caminhava com a leveza pura do oceano, indo e vindo, indo e vindo, indo...
Imersa em pensamentos, ela fazia o mundo ganhar uma nova dimensão. A dança das águas compassava sua alma e cadenciava sua mente, redimindo pecados, refletindo conceitos e revelando ideias nunca antes sonhadas. O mar era sua zona de meditação, e ao mesmo tempo o epicentro de seu furacão. E os peixes, nadando desavisados na imensidão azul, mudavam de curso quando sentiam a intensidade de sua presença; sabiam por instinto que a titã dos oceanos estava a se concentrar.
Às vezes levantava e se cobria com o vento. Saindo da água, marcava seu caminho pela areia, permitindo que o mar lhe procurasse caso um infortúnio a impedisse de voltar. Com as duas mãos e um pouco de força, levava um grande coco verde à face e refrescava-se usando um canudo de bambu; não ousaria jamais poluir com plástico aquele ambiente que lhe era tão íntimo quanto seus próprios segredos. Atrás dos óculos escuros, ela contemplava o mar, e ele contemplava-a de volta, aguardando ansioso o próximo momento em que viveriam mais uma vez aquela antiga paixão. E não demorava, bem dizer, mais que alguns instantes fora da água para a saudade ser maior que os dois e voltar a firmar sua conexão.
Era assim que vivia, dia após dia, o maior de seus amores. O coração partia-se quando o sol se escondia e ela se despedia com a roupa a pingar. Mas o sol sempre voltava a nascer, e novamente ela entrava em sintonia: era assim que ficava toda vez que tinha encontro marcado com o mar.

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Iconocracia

A brisa do mar não tardou em trazer à janela o estampido dos fogos. Na calada da noite escondiam-se os tiros, quase imperceptíveis por trás da beleza cintilante. Era o início do temido massacre velado, que chegara ao mundo já de todo desolado para dar à sua alma o destino mutilante.
Senhor, tende piedade de nós! Quantas vezes não roguei teu nome em busca de salvação para este povo sandeu? No clímax de um delírio coletivo, entregaram-se aos caprichos do clamor mais obscuro até estarem dos pés à fronte impuros e não mais haver jubileu. O perigo riu em nossa face, a desordem sentou à nossa mesa, e fechamos os olhos com estranha sutileza para então nos deixar pela morte possuir. Assim foi que dançamos uma ciranda sombria, de pés descalços em terra cortante, descendo e descendo o caminho derrapante ao escuro calabouço na beirada do porvir.
Senhor, como nos deixaste cair em tamanha tentação? Por que foi que abandonaste teus súditos à deriva, iludidos e desnorteados, caminhando saltitantes a tão grande perdição? Tortura, mesmice, loucura. Quatro anos de rumos velhos e putrefeitos a um povo que até o pescoço se afunda em solidão. E os poucos que se salvam, em mil desdobrando-se para a desgraça amenizar, logo são taxados de loucos – sendo à beira do fogo onde lhes põem a pensar. Estamos de volta à inquisição, e os hereges são os outros. Sempre os outros. Saiu de cena o diálogo e os canhões de luz logo expuseram a digladiação.
Em nome da tradição, da família e do sagrado, mais um governo tirano, mais um inferno instaurado.
- Recife, dez 2018.
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No carvão, eis a bela

Seus olhos navegavam leves pelo espaço enquanto a ponta da caneta fazia parar o tempo. Teria passado ali dias, horas ou minutos? Não sabia. Mas naqueles traços, o ínfimo e a eternidade se transformavam em um só elemento. A brisa, que fluía calma pela janela, fazia a ponta de seus longos cabelos escuros bailar. Entre um contorno do desenho e outro, o canto da boca ensaiava um sorriso – talvez o mais belo que aquele pedaço de papel jamais tivera o prazer de admirar. Onde estavam? Difícil dizer. A mente vagava a mil, dando voltas no infinito e retornando a lugar nenhum. Quando um detalhe não lhe vinha nítido à memória, trocava uma olhadela com a fotografia original e já tinha outra vez toda a obra na imaginação. Em breve tingiria a ponta dos dedos com carvão, gravando as sombras com a clareza que só o castanho de seu olhar conseguia carregar. Era a dona do impossível; seus rabiscos estáticos dançavam graciosos por entre as folhas do caderno. E a menina ao piano se tornara sua mais nova companhia: uma noite e três águas de coco depois, ela, o desenho e sua tela já pareciam conhecer-se de vidas passadas.
Simples e bela. Assim era ela.
Afastou o rosto do papel e contemplou o conjunto. Suas costas, aproveitando a volta ao mundo real, enfáticas reclamaram da posição. Arqueou a coluna, inspirou profundamente, afastou todo o peso do cotidiano com o ar de seus pulmões. Ali, o mundo eram os dois: só ela e seu desenho. Não havia régua, caneta ou papel. Tampouco cadeira, fotografia ou carvão. Eram apenas, juntos e a sós, águas correntes de um mesmo rio, em profunda sintonia e singular conexão. Saía daqueles contornos um dó? Tinha mais cara de fá. Fazendo descobertas em um piano de parede, uma garotinha desbravava a ponta mais aguda do teclado com seu leve vestido de algodão. Sorria a cada nota que ouvia. Dançava a melodia de seu próprio tom. E serelepe segredava, com bochechas risonhas e cabelos ralinhos, a canção que compunha à caneta que lhe criava.
Debruçada sobre o papel, ela ouvia, atenta. Contornando-o com leveza angelical, conversava com sua obra e vivia momentos que ninguém deste mundo jamais iria saber. Mas aquele era seu segredo. E sua boca guardava um sorriso ao vasto universo que cada novo traço vinha trazer.
Simples e bela. Assim era ela.
- F. Bandeira, 12 dez 2018.
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Adeus?
É, meu bem. Já passa das duas da manhã e ainda estou com os olhos inchados a pensar. Sequer lavei os pratos do jantar ou troquei de roupa quando cheguei. Apenas sinto o tumor da tua ausência, gritante no apartamento em seu silêncio descomunal.
Quando foi que os olhos nossos, firmes que nem estacas e sinceros tal a fé, de súbito se perderam em caminhos tão opostos? Como pôde o olhar meu não ver o claro apagado em teu brilho, o molhado nítido em teu cílio, em sombreado tua luz a virar?
Luz...
Uma fina réstia de luz atravessa a cortina e caminha até a cadeira em que você pela última vez se sentou. É azul fluorescente dos anos 80; triste como a madeira, fria como este cômodo e fraca como o próprio eu.
A luz, porém, ainda me supera na resistência, pois acende e apaga a cada três segundos enquanto meu ímpeto era de cortar o circuito e de uma vez desligar.
É, meu bem. Já passa das duas da manhã e eu ainda estou com os olhos abertos e inchados a pensar. A chuva enraivada que me engoliu o corpo enquanto tentava alcançar o teu carro agora caminha minhas roupas e encharca todos estes lençóis.
Pinga a lama, empoça a alma, lágrimas a ressuscitar.
Lembro das vezes tantas que vi teus olhos a chorar. Nossos corpos sintonizados, nossos lábios intercalados, nossos sorrisos a conversar. Lembras quando dormimos abraçados pela primeira vez? Do jantar à luz de velas quando a energia faltou? Lembras então, amor, da ardente paixão que vivemos, dos sonhos tantos que tivemos, da felicidade vívida que residia em nosso olhar? Pois fico a pensar...
Onde foi que tudo se perdeu? Onde foi que você deixou de amar? Onde foi que o meu abraço não servia mais pra te proteger? Onde foi, pelos deuses do céu, que eu perdi você?
Meu corpo pede clemência à tristeza. O estômago corroído pela dor se contorcendo em uma dança que invoca os mais escuros caixões. Ainda sinto o cheiro do seu perfume na porta, o sabor da sua voz ressonando pelas paredes e o vazio da sua presença tão macabra a me olhar. Desde quando você já previa o futuro? Desde quando você sabia do dia em que eu acordaria sorrindo pela última vez? Desde quando você tem a mala em que guardou as roupas e fez as rodinhas pela madeira rolar? Já passa das duas e eu fico a pensar...
(Recife, 21.05.17)
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Decência
Uma desgraça.
O bigode mal feito de Eudes se contorcia enquanto observava o casal.
Na parte de trás do coletivo, dois estudantes da rede pública queimavam em paixão como se não houvesse amanhã. Ao redor de suas bocas, a pele brilhava pelo suor e pela baba que escorria dos beijos. O pior de tudo eram as línguas. Puta que pariu, meu amigo, que seboseira do cacete. Eudes não conseguia, como todos que estavam por perto, ignorar o que pareciam ser parasitas saindo dos lábios de um e enfiando-se na boca do outro. Deus que o defendesse de um dia ter beijado uma morena daquele jeito. Abriu as pernas para ficar confortável e olhou pela janela em uma miserável tentativa de esquecer o casal. E ainda bem que a evangélica sentada ao seu lado escolheu sacrificar o próprio espaço a reclamar da invasão; no humor em que estava, Eudes a diria para ir tomar no cu.
Era por causa de gente daquele jeito que o país ia tão mal.
Gente sem vergonha, decência ou respeito, que ficava vadiando pelo mundo e atrapalhando a vida das pessoas de bem. O ônibus logo passaria pela Ponte do Janga. Por que os dois não desciam ali pra meter que nem cabritos? Pensar só lhe dava mais raiva. Cansado pelo trabalho exaustivo na firma, seu corpo declarava através do calor que só uma caninha poderia fazer bem. (Não contou, entretanto, com um rabo de saia de respeito, que Eudes prontamente gritou pela janela quando viu. Eita, filé danado!) Mas a distração não durou, porque o casal pediu parada, e o volume estampado na calça do boy só seria mais visível com neon em cima.
Eudes esperava mais era que os dois se fodessem.
Imaginou como eram na escola. Duvidava muito que estudassem ou fizessem qualquer atividade minimamente produtiva. Tinha, na verdade, quase certeza que os dois só iam pra namorar nos matagais de qualquer fim de mundo. Será que o boy era ladrão? O bigode dele era loiro. Devia ser maconheiro. Eudes lembrou de quando foi expulso da escola, ainda jovem, por desrespeito aos professores e depredação. Já fazia mais de trinta e cinco anos. E aí? Foda-se. Mesmo não sendo exemplo do que qualquer aluno deveria ser, a escola não tinha lhe feito falta, porque ele era esperto por natureza.
Ele, sim, era esperto. Se o povão da cidade era jegue, problema deles; Eudes sabia não ser otário como os outros. Se o mundo tentava derrubá-lo, o homem se reerguia como ninguém! O ônibus, por exemplo. Depois de meses trabalhando no mesmo lugar, as pessoas e a rotina tornam-se conhecidas. O ponto em que pegava era o mais movimentado de todos, mas isso lhe era bom, porque garantia que alguém desceria em sua parada. Enquanto um mar de gente subia pela frente, ele pulava rápido pela porta de trás e sentava sem demora. Além de poder descansar na janela, já economizava o dinheiro da cachaça. Às vezes encontrava com um senhor que tornou-se seu conhecido. Eudes não sabia bem a razão, mas o senhor todas as vezes o olhava firme e se danava a conversar sobre como os políticos provavelmente começavam a roubar com gestos pequenos. Por que repetia tanto aquilo? Talvez fosse gagá. O fato era que o velho não chegava a incomodar – diferente do que fazia uma mulher que todos os dias vinha sentada ao lado de uma amiga. Aquela cuidava da vida dos outros mais do que Deus. Misericórdia. Ela e o buço mal feito dela. Eudes queria que o diabo carregasse aquela derrota. Tentava imaginar a mulher jovem e não conseguia; era feia desde sempre. Se um dia chegou a beijar alguém, foi um doido que fugiu ou um cego que bebeu demais. E o espírito de pobre... Nossa Senhora que benza. Ele era observador dos bons e sabia que a mulher de bigode fofocava com maestria.
Voltou à realidade quando a barriga roncou. Já eram seis e meia, afinal, e muito chão ainda havia entre aquele ônibus e sua casa. De dentro da velha mochila, Eudes tirou um saco contendo escassos restos de pipoca e comeu. A embalagem em suas mãos virou uma bolinha, e a bolinha pareceu virar um amuleto de azar; uma ânsia crescente lhe dizia que precisava jogar aquilo fora o quanto antes. Lançou pela janela o saco amarelo – que acertou um motoqueiro pela viseira aberta, mas Eudes nunca soube disso – a tempo de uma criança, inocentemente observadora do grande universo daquele coletivo, perceber e chamar sua atenção. Não pode jogar fora, moço, porque a gente precisa cuidar da natureza e dos animais. E foi com o mesmo olhar inocente que a criança ouviu as mais humildes e delicadas desculpas de Eudes. Eu te perguntei? Cala a boca pra não levar uma lapada, visse, pirraia?
Em protesto, a mãe da criança logo informou que, à próxima ameaça, quem levaria lapada seria ele. O senhor gagá lhe mandou ter respeito O menininho deu língua.
Todo mundo naquele ônibus que fosse tomar no meio do cu.
Os passageiros sentados mais à frente também entraram na discussão. Um peão começou a avançar pelo corredor querendo tirar satisfações. A cobradora levantou-se de sua cadeira chorando por calma. Eudes acusou a mãe de barraqueira e a velha fofoqueira de Dona Dragão. Com dificuldades pela lotação, o peão ia lento, mas avançava ainda mais. O motorista encostou e abriu a porta apressado. Eudes foi praticamente enxotado dali. Vai tomar no cu todo mundo.
Não conseguia sentir outra coisa senão revolta. Eram idiotas como aqueles no ônibus que faziam o país ir tão mal.
- F. Bandeira
Recife, 31.01.18
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Morte súbita
Acho que fazem três horas desde que a última convulsão aconteceu. Certas coisas de fato são piores que a morte. Sinto meus olhos, vermelhos, outra vez querendo pular das órbitas em uma agonia louca que me engasga a respiração. Quando tento levantar, as mãos falham no apoio. Encharcado está o lençol em que me deito das horas e horas e horas em que estive aqui. Seria a fraqueza também desidratação? Possível. Há muito que perdi a noção de rumo e equilíbrio.
A vida passei ouvindo que há calma na morte para descobrir que, de calma, nada ela tem. Meus mudos gritos de socorro mal saem da garganta – que dirá desta casa escura. O ar... o ar que me cerca sente rarefeito nos pulmões. Com o desespero que me toma, tento preencher o peito e não consigo.
Eu não consigo.
Simplesmente não consigo. Não sou capaz de encher o peito de coisa alguma.
E essa comichão que sobe pela garganta, eu... Deus, eu sei o que é. Outra vez. Por favor, outra vez não. Pelo amor de Deus, mais uma vez não, eu não aguento mais, já chega disso outra vez não PELO AMOR DE DEUS...
Vejo o leve tecido da minha roupa saltar sobre o esterno. Sim. Mais uma vez. Três foi absurdo, mas uma quarta... É o que há. A contagem regressiva começa antes que eu trave dos pés à cabeça em agonia novamente. As lágrimas, que encharcaram todo o lençol desta cama, voltam a cair. Me sinto descoberto, vulnerável aos pesadelos que habitam os escuros cantos deste buraco vulgarmente chamado de "crise".
O claquear do relógio afasta-se de vista. O ar, o peito e o pulo param. Na leveza onírica que precede a queda, todas as dores flutuam sonolentas. Até mesmo o som da minha respiração, antes a arfar como um bicho caminhando no corredor da morte, torna-se distante de todas as outras coisas perto de mim. No íntimo, a doce voz da paz sussurra com carinho: "você vem?".
Estendo a mão, os lábios fraquejam, esboço um sorriso. Iria eu imaginar que a maior felicidade reside logo na paz? Ainda melhor: na ausência de sofrimento. O resgate pelo qual roguei com a última baforada de sanidade que me restava finalmente está aqui. Chega a ser apaixonante o castanho marcante de seus olhos em meio ao caos escuro no qual me afogo. Sinto o toque suave na pele, a pegada cautelosa, a segurança que me envolve...
Então a gravidade me traz o lembrete de que a esqueci. E tudo, da forma exata como manda a Física, desaba ao solo como a desgraça e me quebra os ossos restantes no corpo.
Descarga de serotonina. Todo o oxigênio parece ter entrado em combustão; sumiu. Tateio o corpo desesperado em busca de alívio com as mãos que parecem não pertencer a lugar algum. O arame farpado da ansiedade me toca o pescoço. As visões, terríveis e medonhas, banham as paredes que me aprisionam no antro do meu próprio inconsciente. Estou sozinho. Estou perdido, morrendo e sozinho.
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O que há, companheiro?
O que há, companheiro? A cadeira está vazia, a mesa é para dois, havia muito eu esperava por você. Sente-se um pouco e beba comigo. Da taça de cristal, o rubro amargo invadirá nossos lábios enquanto os salgados fatos, em nossos rostos, rios formarão. Cuidado com o descuido à mesa em que te sentas! De manchas redondas na velha madeira, as minhas já são suficientes. O que há, companheiro? Dói-lhe ver que a esmola restante do seu árduo trabalho não paga o mísero gole que atenua a sua dor? Aqui. Pegue uma faca e faça uma sangria. Das tuas veias encardidas, o fluido negro da morte - depois de todo te consumir - ansiosamente espera a hora; espera para sair. O que há, companheiro? És o último restante da miserável linhagem que carrega o teu nome? Saibas que a bebida, da qual retiras a finda força que te cabe, é servida pela Morte em dedos mutilados à carne. Nenhuma gorjeta é necessária; a conta já está paga. À última gota, aguardará por ti, maltratado, maltrapilho, uma carruagem em decomposição. Sete palmos abaixo do Inferno, é onde os teus ossos deitarão. O que há, companheiro? Tens medo de sair pela chuva lá fora? Ora, melhor que aqui há de ser. Não há em tua casa fumaça, velhos homens encasacados e suor regado a álcool, há? Não... claro que não. Não há um restante pedaço de honra sequer no criadouro de ratos que tu chamas de "lar". O que há, companheiro? Que tal uma gentileza e pagar uma para mim? Está bem, não te preocupes. Lembro-me do quão malogrado és. Há muito não lhe resta nem a alma que te foi dada na epigênese do teu ser. Foi-se embora, assim como o resto, nas ácidas mesas de jogo de bar. Os tantos imóveis, os infinitos móveis, as roupas todas do armário de marfim... O que há, companheiro? Não vês em teus olhos o que vês em mim? Veja a falência, veja a falácia, veja como nós chegamos ao fim! Olhos cerrados que um dia nos fitaram com certeza e gentileza já não mais se preocupam com as mentiras que contamos; viram tudo indo embora, viram a casa do lado de fora, viram a merda debaixo do pano. A esposa que tanto amava, os filhos que tanto criava, os amigos que tu tinhas de ter... Deixaste tudo de lado, arrogante caminhante, na caminhada do prazer. O que há, companheiro, é que não resta nem a paz. Nem a cova, nem o Diabo, nem os vermes te querem mais. As luzes amareladas deste lugar encobrem a doença que acomete os teus órgãos, mas eu a vejo bem. Oh, sim. Eu a vejo como via o futuro em nossa frente aguardando. Antes do tardio mergulho no concreto, a única coisa que te resta é a consciência. E acredite, desgraçado: estou eu, até eu, em estado de latência. Mande as minhas desculpas ao coveiro por ter de gastar tempo com nós dois.
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Como Pôde o Maquinista Velhos Trilhos Maldizer?
Como pôde o maquinista Velhos trilhos maldizer? Sempre fora o motorista Àqueles trilhos percorrer.
Sempre tarde, às onze da noite, Com a fornalha a fervilhar, Era ele, a única vida Por ali a transitar.
Neve, chuva, vento e frio O touro bufava a combater. Robusto e negro monstro sombrio Naqueles trilhos a percorrer.
Tempo tanto desde a tenra infância Por aqueles trilhos a caminhar Sempre esteve o maquinista Vivo e morto a carregar
Vagões tantos e tão diferentes; Carne, roupa, milho e fio. Nunca fora o velho contente Pensava sempre na casa do rio.
Sonhava alto, bebia memórias Dos trilhos deixar de percorrer. Falava sozinho, criava histórias De muito longe ir viver.
E quando por fim viu-se livre Do metálico e velho carrão Lágrimas tantas correram-lhe a face Via-se dentro do próprio caixão.
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Da Desgraça a Diversão
Se o fim entrasse em minha vista Entre risos perguntando “do que se trata?” Puto, velho, vigarista! Por que não logo que tu me mata?
Queima-me a pele e escalda-me a cabeça Gargalhadas satânicas a exalar. Não culpo a mim mesmo, pois eu que mereça Mas tão bom é meu peito para mutilar?
Atordoa-me até as últimas instâncias; Alicates e unhas a se encontrar. Minha mente delira a mil distâncias O que quer a morte me mostrar?
Às vezes penso que nada espera O desarmado caminhante para sempre a caminhar Puro tronco e cabeça, vara e esfera Miserável e sedento não pode descansar
E quando pôde, num dia distante, O desgraçado caminhante se libertar Tomou-lhe a cabeça o demônio falante “Felicidade? Alegria? Vamos apartar”
No negro se foi o mais puro semblante Em águas turvas e densas não parou de cair. Manchado e rasgado, irreconhecível caminhante; Não souberam que era ele quando voltou a emergir.
Ao escuro voltou, solitário viajante Sem risos, abraços, amores a ter Incompreensível estado, culpa andante e errante A própria cabeça voltou a bater.
Arremessava-se vivo em espinhos e lanças Todas elas a carne a lhe perfurar. Si próprio olhava, buscando a lembrança Como pôde, tudo aquilo, simplesmente estragar?
Maldisse os corvos, o demônio e a morte A ira sentia em sua pele queimar Que lhe há de ter feito para roubarem-lhe a sorte? Queria o homem a si mesmo apagar.
Sumir deste mundo, sem deixar rastro; Toda a dor que causou a evaporar. “Idiota, burro louco, está preso ao mastro!” Seu destino é eterno; eternamente a navegar.
Que fez o coitado, mero simples sonhador? Aos demônios sentados àquela ocasião. Riram-lhe à face, causaram-lhe dor. Fora feito, por azar, da desgraça a diversão.
21.07.16
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Fragmentos
“Os flocos de neve que silenciosamente caiam já começavam a formar montes nas barras metálicas que sustentavam a parada. À luz da manhã de um começo de inverno, cinco pessoas esperavam pelo ônibus banhadas pelos uivos constantes do vento frio. Tédio, sono, desinteresse, angústia e, na extrema direita, um velho senhor e sua bengala. Com um sobretudo marrom e dedos despidos ao frio, não tremia nem pulava; olhava determinado o fim da rua à espera do veículo que tardava a chegar. A pura personificação da seriedade era um completo antônimo, porém, de quem estava à sua esquerda; olhos verdes que contrastavam com rubras bochechas, uma universitária - estaria cursando arquitetura, dada a camisa com gatos? - não conseguia conter o espírito dentro de si. Alternava, em intervalos não maiores que dois segundos, entre o fim da rua e as mensagens no celular. Seja como fosse, nenhum dos outros três tinha interesse em saber. Aos seus olhos, eram apenas cinco pessoas atrasadas pela neve da manhã”
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