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Foi na primavera de mil setecentos e oitenta e um, quando Phillipe e Morgan se conheceram. Eu poderia ser um narrador amigável e simplesmente dizer que ambos se tornaram bons amigos. A história, porém, acabaria aqui.
Acontece que os rapazes estavam dispostos a quebrar milhares de regras e viver um amor muito mais do que intenso, um amor de alma, que transparecia todas as barreiras do que alguém poderia imaginar.
Na tarde do dia vinte e sete de maio daquele mesmo ano, Morgan, um leitor assíduo e jovem recém-apresentado à sociedade, foi até a biblioteca da cidade recém-inaugurada de Paris. Seu objetivo era apenas encontrar um livro que suprisse sua curiosidade pela literatura clássica, algo que ocupava suas tardes de sexta-feira havia quase um ano. O que encontrou, porém, foi muito mais do que apenas um livro.
— Posso ajudar-vos? — A voz soou um pouco distante de onde ele estava, mas Morgan pôde notar que vinha de suas costas. Ele se virou, encontrando, naquele emaranhado de livros, uma figura masculina que pintava um quadro. A luz da tarde se filtrava pelas janelas altas, iluminando a poeira suspensa no ar e conferindo um ar de magia à cena. A curiosidade de Morgan foi despertada de imediato.
— Ah, não busco um livro em particular, apenas... algo para passar o tempo — Morgan soou despreocupado, aproximando-se do homem em passos curtos. Ele viu o outro molhar o pincel na tinta vermelha e, sem tirar os olhos da tela, voltar a falar consigo.
— Aproximai-vos, não há muitos livros por aqui, mas creio que nesta fileira possais encontrar algo que vos interesse — Pontuou, continuando seu trabalho. Morgan fez como lhe foi indicado, buscou pela fileira e passou a analisar os manuscritos e códices velhos. — O de capa de couro escuro, próximo ao mais desgastado.
Morgan pegou o livro em mãos, analisando a capa bonita e desgastada pelo tempo. Decidiu dar uma chance àquela leitura. Colocou o livro contra o peito e estava prestes a se retirar quando o homem tornou a falar:
— Sou Phillipe — Soou calmo. Morgan se virou para encará-lo e notou os olhos esverdeados pousarem nos seus pela primeira vez, junto de um sorriso lindo e iluminado se abrir em sua direção. O coração de Morgan acelerou. Notou também Phillipe apoiar o pincel sujo no cavalete e estender a mão ainda suja em sua direção, totalmente despreocupado.
Morgan ainda não sabia, mas foi naquele momento que teve seus primeiros sintomas de paixão.
Daquele dia em diante, passou a frequentar a biblioteca duas vezes por semana nos intervalos do trabalho, sempre dando um jeito de esbarrar em Phillipe para manterem uma conversa baixa e amigável nos fundos do lugar. O mais novo amigo não lia, mas o ouvia atentamente enquanto Morgan compartilhava, baixo e envergonhado, o conteúdo dos livros, debatendo por horas sobre eles.
Com o passar dos meses, a amizade que se restringia a diálogos entre as prateleiras da biblioteca evoluiu para grandes conversas sobre a vida e planos para o futuro ao redor de um lago perto de Versalhes. Os dias ensolarados refletiam nos olhos de Phillipe, e as noites eram preenchidas com risos e confidências. Logo mais, para voltas para casa cheias de entusiasmo, para visitas ao ateliê de Phillipe e viagens de um ou dois dias até a cidade vizinha para assistirem a recitais. A música ressoava em seus corações, unindo-os ainda mais.
Foi no final de um desses recitais que os lábios macios de Morgan tocaram os de Phillipe, e a partir desse momento, a paixão entre eles ficou mais sólida. Trocaram mais beijos durante os passeios, beijos às escondidas na biblioteca e se amaram por cima das tintas no ateliê de Phillipe, cada encontro carregado de desejo e medo. A sociedade era julgadora e aquela relação não seria aceita jamais.
Porém, o que era escondido passou a ser motivo de desconfiança pelos frequentadores assíduos da biblioteca e, depois, pelos vizinhos que estranharam a proximidade entre os dois rapazes. Nada nunca foi confirmado, mas o burburinho se espalhou pela cidade.
Foi em uma noite, quando os rapazes estavam juntos, se amando, conversando sobre a vida e sonhando em fugir para que pudessem viver com o mínimo de conforto, que o ateliê de Phillipe foi invadido por moradores de Paris. Eles pegaram ambos na cama, após uma noite de amor. Morgan viu quando Phillipe foi arrastado para fora da cama, sendo machucado pelas mãos que não compreendiam que ali não havia nada de errado, apenas amor. O pavor e a impotência tomaram conta de Morgan.
Eles foram separados, machucados, humilhados e julgados como criminosos pela igreja e seus fiéis. Foram cruelmente mortos por serem quem eram e por amarem. O horror de seus últimos momentos ecoava na mente daqueles que os amavam.
— E esse é o quadro que Phillipe pintava na biblioteca quando conheceu Morgan? — perguntou com os olhos fixos na pintura, sua voz tingida de tristeza.
— Sim — respondeu o namorado, segurando sua mão com força. — Ele se apaixonou por Morgan no momento em que o viu pela primeira vez. — Eu não conseguiria viver naquela época — disse ele, sua voz quebrando levemente. — Não conseguiria suportar a dor. — Nem eu — o namorado murmurou, apertando sua mão ainda mais. — Assim, eu não poderia namorar com você.
— Bobo — ele riu, apesar da tristeza, e se inclinou para um beijo suave. — Vamos nos lembrar de quão sortudos somos por poder amar livremente. O rapaz deixou o livro no mesmo lugar onde o achou após ver a foto na capa. Juntou os dedos com os do namorado ao seu lado e seguiram seu caminho. Naquela vida, eles poderiam ficar juntos.
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"Não caibo em caixinhas pequenas, mamãe,
Sou grande demais, preciso de espaço."
Gouyon cresceu em uma família religiosa e tradicional, com todos ao seu redor seguindo os passos traçados sem questionar os motivos. Ninguém quebrava as regras; eram todos robôs seguindo ordens e mais ordens.
Não havia emoção naquela vida.
Tinha oito anos quando saiu da linha pela primeira vez. Seu irmão mais velho o pegou usando as maquiagens da sua querida mamãe às escondidas. A história chegou até a mulher, e ele lembrava-se de ouvir gritos e mais gritos em seu ouvido.
Apanhou também, mas não entendeu o motivo, queria apenas ficar bonito como as moças da televisão. Queria brilhinhos nos olhos e cores vibrantes na boca. Queria sorrir.
"Tuas mãos me moldaram, sem carinho e amor,
Mas o molde não pode conter o meu ser."
Aos quinze, saiu dos moldes pela segunda vez, quando beijou um garoto atrás da escola onde estudava. Foi uma descoberta; não sentiu a mesma sensação ao beijar lábios brilhantes femininos. Ouviu os mesmos gritos no pé do ouvido, mas era diferente agora.
Não era mais uma criança; tinha suas próprias convicções, suas próprias verdades, seus próprios desejos.
"Mamãe, eu não sou uma flor que se cultiva em vaso,
Sou uma árvore que deseja enraizar."
Aos dezesseis, viu o circo pela primeira vez e apaixonou-se pelas cores vibrantes, pelas pessoas com almas calorosas, pela arte, pela dança, pela mágica, pelo mundo e pelas possibilidades que poderiam ser exploradas.
"Mamãe, teu colo não é abrigo, não é saudade,
Meu espírito clama por liberdade."
Aos dezessete, resolveu que fugiria de casa, que jogaria os moldes e regras da família no lixo, que iria encontrar seu lugar no mundo, no circo.
E foi embora às escondidas, deixando somente uma carta para a querida mamãe, e nela dizia:
"Não caibo em caixinhas pequenas, mamãe
Sou grande demais, preciso de espaço.
Me deixe ir, eu não quero ficar,
Pois tenho asas, mamãe, e preciso voar."
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