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#6: como se fosse um monstro, fabiane guimarães (2023)
Eu conheço o trabalho da Fabiane via a newsletter dela, que se chama Tristezas de Estimação. Não sei como a encontrei, mas me é muito prazeroso ler os textos dela de não-ficção por dois motivos. Primeiro é que ela é muito honesta sobre a escrita como ofício, mas também como paixão. Me dá muito gás de sair e fazer coisas quando vejo ela falando de escrever como algo impossível de não se fazer, não importa o que esteja acontecendo por aí. Agora por exemplo, leio a última edição sobre buscar ter tempo pra fazer todas as coisas que é preciso pra alma, e me sinto mais feliz sobre ter tirado um tempinho pra escrever aqui.
O segundo motivo é também o fator mais chamativo desse livro, que estava na minha lista já tem um tempo mas aí aconteceu de pegar uma promoção boa. Bom, Como Se Fosse Um Monstro é um livro que se passa entre o interior de Goiás e Brasília - que também é um pouco Goiás mas também não é. Como sou indefectivelmente pessoa de livros desde que aprendi a ler, e também sou goiana do pé rachado já tem vinte e cinco anos, me perguntava tinha um tempo quando é que ia ler algo que casasse essas duas coisas. O mais próximo que eu cheguei foi na caipirice excêntrica do Grande Sertão: Veredas, mas, ainda assim, eu me sentia mais conectada aos que vieram antes de mim do que aos que eu conheço agora.
Como se fosse um monstro não tem muito dessa ~cor local~, a ideia da história da Damiana é outra. Ainda assim, sair do interior rumo a Brasília é uma história de ir de um lugar pra outro em busca das míticas condições melhores, que é algo que define muito a minha história e a dos meus pais e a dos meus avós. Isso também torna a frieza da personagem sobre os acontecimentos muito justificada. É uma certa brutalidade mas não é animal, exatamente, é que as sensibilidades são diferentes quando se vive na roça; ainda mais quando se é mulher.
O jeito que a Fabiane descreve Brasília pelos olhos da Damiana faz a cidade parecer uma base alienígena, uma impressão que não deixa exatamente o leitor depois desse primeiro contato. Ainda mais pela natureza da história e o trabalho da Damiana, que torna tudo meio solitário demais e esquisito demais. O trabalho de barriga de aluguel que ela exerce parece extremamente citadino, sendo comparado aos ritmos e aos animais na roça. Ainda assim, a cidade grande retém esse senso de perigo e urgência e intriga ao longo da história.
Se for pensar bem, eu não gosto muito da última grande volta no final, por mais que faça um pequeno sentido narrativo. Eu gosto da ideia da curiosidade jornalística acima da vontade pessoal da Gabriela, a entrevistadora. Também me agrada o paralelo que já existe: de um lado, alguém que engravida para os outros dez vezes seguidas; do outro, alguém que acabou de fazer um aborto pois não suporta a ideia de engravidar. Uma mulher criada por uma família majoritariamente feminina e outra com dois pais. A conexão entre as duas acaba parecendo um twist de pegadinha com o leitor.
No geral eu gostei muito da história, devorei o livro ridiculamente rápido e mal posso esperar pra próxima vez que colocar as mãos na escrita da Fabiane Guimarães pra ver o que vem por aí.
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#5: ciranda de pedra, lygia fagundes telles (1954)
Lembro até hoje do dia em que a minha professora de Língua Portuguesa do nono ano leu o conto Venha Ver O Pôr do Sol pra minha turma. Minha visão atual de professora me faz perceber que, como muitas memórias das aulas da escola, o restante da turma não estava tão focado e impressionado quanto eu. Mas escolho ficar com essa memória: eu ouvindo apenas minha própria respiração e a voz da professora (cujo nome eu nem lembro mais) recitando "Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais bonito do mundo." O choque e o susto ao perceber do que se tratava o final, também. Até dois dias atrás, esse tinha sido meu único contato pessoal com a obra da Lygia Fagundes Telles.
É claro que outras coisas me marcaram; a acadêmica que conheci num congresso em 2019, que apresentou um lindo trabalho sobre um conto de Antes do Baile Verde; o luto coletivo experimentado com as literature girlies da internet quando a Lygia faleceu em 2023; uma visita a uma livraria em São Paulo em que comprei As Meninas pra minha irmã com a intenção de pegar emprestado depois. Mas acabei chegando em Ciranda de Pedra por outro caminho.
Semana passada, quando passei na biblioteca, estava com a ideia que já mencionei antes, de passar o mês inteiro lendo só mulheres. Resolvi pegar dois livros emprestados e, depois de algumas voltas pelas estantes deliciosamente bagunçadas da Biblioteca Municipal Rosulino Campos, achei a estante da Lygia Fagundes Telles. Fui até o balcão com As Meninas na mão, mas algo me fez mudar de ideia depois. Sinceramente, acho que escolhi Ciranda de Pedra me perguntando o que no livro se dava à adaptação pra novela.
É claro que tem muito de teledramatúrgico na história, o que me fez devorar o livro inteiro em um dia. Mas me encantou muito a sensibilidade contemporânea que tem num livro de 1954. Claro que não vou dizer que era uma história à frente do seu tempo, muitos aspectos já eram discutidos por outras pessoas na mesma época e O Quarto de Giovanni saiu apenas dois anos depois, por exemplo. É óbvio que as lésbicas não foram inventadas em 1968 e o adultério e a mulher catatônica são motores do romance desde que ele foi inventado.
Ainda assim, o que é interessante é reparar a maneira relativamente..... moralmente neutra? em que os temas são abordados. Igual a Otávia diz pra Virgínia, a irmã patinho feio: "Não há gente completamente boa nem completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível." Por outro lado, o livro também se propõe uma crítica de costumes da classe alta paulistana, em que a Virgínia se põe como outsider ao lado da sua família, todos inúteis e improdutivos e estúpidos na vida adulta. Virgínia, a professora tradutora profissional liberal, apesar de tudo termina o livro numa viagem pro Oriente com um apoio financeiro do pai.
Não, o que me interessa muito mais é o aspecto bildungsroman de Ciranda de Pedra, e o que cativa nas primeiras páginas é a perspectiva infantil mórbida da Virgínia. Nos primeiros parágrafos, se vê uma menina - pré adolescente? - matando a formiga e se imaginando reencarnando como cobra por isso. Ela fantasiando ser enforcada pela empregada e aí sim, no caixão, recebendo carinho da família que a abandonou com a mãe louca e o padrasto. A raiva da irmã carola e da irmã perfeita e dos amigos delas, ainda que ela passe toda a infância querendo entrar nessa tal ciranda que dá nome ao livro. É fácil de entender por que essa escrita ainda impacta e ressoa com as pessoas igual ressoou comigo; fossem quatro décadas depois, faria muito sentido o livro começar com a Virgínia subindo pro quarto e botando pra tocar Hole - Violet no último volume.
When I get what I want, then I never want it again. A tensão curiosa entre as duas partes de Ciranda de Pedra é o desmonte das ilusões infantis da Virgínia sobre as irmãs, os amigos, o amado, mas também a percepção que agora ela não se encontra fora da ciranda, mas no centro dela. A cena climática da ceia de natal, em que quatro pessoas estão disputando esse aspecto, bom, virginal da irmãzinha é completamente estonteante, e dá essa ideia de ser jogada de um canto pro outro da roda, igual numa brincadeira de criança. (Claro que todos os personagens podem ser analisados pelo significados dos seus nomes, até mesmo a Ofélia, mas não vamos entrar nisso agora).
Interessante que, justo depois de ser incluída na dinâmica amorosa da roda e escolher sair, �� que Virgínia consegue visitar a mítica chácara pra qual nunca era convidada na infância. Mesmo ao reconhecer que não é tão idílico como na sua imaginação, o coração ainda dispara, e interagindo com a natureza ela encontra o Deus que sumiu na adolescência do colégio interno. Na natureza e na certeza de não ter que participar dos círculos sociais da família, todo o cinismo desaparece e Conrado (anteriormente o "São Francisco de Assis burguês") pode ser o "príncipe do reino distante" anunciado por Daniel no começo da história.
Sigo com o mesmo encantamento de quando ouvi Venha Ver o Pôr do Sol pela primeira vez.
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#4: neca: romance em bajubá, amara moira (2024)
Percebi que passei o último mês e meio lendo exclusivamente os trabalhos de homens, ostensivamente brancos, então o livro do mês do clube peanuts caiu como uma luva. Também ajudou que ele estava numa promoção bem generosa no comecinho de maio. Eu fazia ideia da existência da Amara Moira pelo E Se Eu Fosse Pura, uma autobiografia de 2019, só não tinha lido nada dela ainda. E o projeto gráfico de Neca é muito convidativo, é um livro do tamanho da palma da minha mão com uma capa bonita cor de rosa, e a tipografia mais simples possível. A ideia é te convidar a perscrutar esse mundo do qual você talvez só tenha ouvido falar ou visto de longe.
O subtítulo é contraditório, claro: não é um romance, a edição física mal chega a 120 páginas, e não tem personagens e linhas de narrativa tão claramente desenvolvidas, é ostensivamente um monólogo. Mas também não é um monólogo Grande Sertão: Veredas, que tenta um artifício de linguagem que Moira claramente evoca aqui? A autora cria com a sua Simon-Simone-Simona uma nova figura como o roseano Riobaldo-Tatarana, e vai engatando uma prosa (nos sentidos literário e matuto) com reminiscências e reflexões que fluem umas nas outras.
No começo da leitura, fiquei pensando que o livro era mais ou menos um Laranja Mecânica travesti. Entra aqui, claro, a questão que Moira não opera em neologismos recombinados como Burgess; por mais que o Nadsat tenha emprestado muito do Polari inglês e das gírias soviéticas da época. É claro que os artifícios da narrativa são meio roseanos, a moldura de conversa informal com uma linguagem inicialmente meio inescrutável. Mas a aproximação linguística e imagética que eu me sinto mais segura de fazer, na verdade, é a do comecinho de Trainspotting, na versão original do Irvine Welsh: "The sweat wis lashing oafay Sick Boy; he wis trembling. Ah wis jist sitting thair, focusing oan the telly, tryin no tae notice the cunt."
O que a Amara Moira faz é, por muitas vezes, usar a linguagem e a narração pra exibir as partes mais lascivas e obscuras da população de quem e onde ela fala pra gerar um tipo de desconforto na sua audiência. Me parece uma forma de superar e trazer algo diferente ao artifício do "romance em bajubá", já que é claro até pras crianças viadas minhas alunas que bicha se chama de bicha. É um comentário que a narradora faz ao longo do texto, ela chama atenção pro fato que a tal "língua secreta" não é mais tão secreta assim, estudada em departamentos de linguística país afora.
Daí que tá tudo aí, desde a figura da gilete debaixo da língua àquela anedota "now clap" da Bob the Drag Queen, passando pelos fetiches que são um sábado à tarde pra um gay no twitter. A iconoclastia bem-humorada do cânone brasileiro também faz parte, e me lembrou aquela delícia dos meus anos de ensino médio de ficar obcecada com fatos históricos & histéricos da literatura brasileira como o poema O Elixir do Pajé. Lendo Neca pra além do subtítulo, eu identifico na Amara Moira uma outra pessoa tão obcecada com literatura e linguagem como eu, e é isso que importa.
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#3: Teorema, Pier Paolo Pasolini (1968)
Acho que o jeito mais engraçado de começar esse texto é dizendo que eu nunca vi nenhum filme do Pasolini. Fiquei sabendo que ele existia numa aula de teoria do teatro na faculdade, em que toda sexta feira à noite a gente saía da sala de aula com uma depressão profunda. Então, lá estávamos nós, lendo uma peça do Ionesco ou Hilst, e a nossa professora nos contou de Salò. Fico feliz pelo meu contato ter sido esse; eu teria menos predisposição a levar o filme a sério se tivesse o conhecido num iceberg de filmes bizarros ou algo assim.
Mês passado, eu visitei a biblioteca municipal da minha cidade pela primeira vez. Em um ano morando a menos de um quilômetro dela, eu não tinha feito a visita pois achava que o processo de fazer uma ficha seria muito longo, mas aí, só informei meu telefone e o funcionário disse "ah, vou colocar um mês pra você ler esse aqui".
Teorema-livro foi escrito durante o processo de produção de Teorema-filme, e lançado no mesmo ano. A história é de uma família da burguesia milanesa que é completamente abalada pela chegada de um hóspede misterioso sem nome. Durante as semanas na casa, ele seduz literalmente a família inteira, do pai à empregada. Vai embora tão misteriosamente quanto chegou, e aí tudo vai pelos ares. A empregada, Emília, se demite, volta pra vila campesina de onde saiu, se alimenta apenas de urtigas até ficar verde e vira santa.
O destino da família burguesa é menos imaculado: a filha mais nova, Odete, fica literalmente paralisada de desejo reprimido e é internada num hospício; o filho mais velho, Pedro, faz pinturas compulsivamente e com meios cada vez mais inusitados, tentando sempre fazer o retrato perfeito da cabeça do hóspede. A mãe, Lúcia, vaga perdida pela cidade disposta a transar com o primeiro que passar; o pai, Paulo, se liberta de todas as suas posses materiais, doa a sua fábrica para os funcionários e fica completamente nu no meio de uma estação de trem.
Não parece claro ainda? Pasolini diz explicitamente que ele pretende criar uma parábola dos costumes da burguesia e da sua relação com o divino. A tal experiência de divindade se manifesta justamente nos encontros sexuais com o hóspede, uma espécie de arcanjo Gabriel libertino. O autor pinta a família tradicional burguesa como neurótica e vazia, e o trabalhador - seja operário ou camponês - como puro e capaz de santidade e redenção:
"Ela não é uma terrível e viva acusação contra a burguesia, que reduziu (no melhor dos casos) a burguesia a um código de comportamento?" (p. 153) "E se a burguesia - tornando idêntica a si a humanidade inteira - não tem ninguém fora de si mesma a quem delegar o encargo da própria condenação (que ela não quis ou não soube nunca pronunciar), a sua ambiguidade não se tornou finalmente trágica?" (p. 167)
No meio da história não-linear, temos alguns interlúdios de poemas e reflexões sobre os acontecimentos e a juventude, com o olhar do narrador sobre essas transformações do final da década na Europa e no mundo - gosto muito do poema sobre a juventude revolucionária. Se eu gostei do livro? Não posso dizer que amei de paixão, mas foi uma experiência; me sinto pronta pra ver o filme agora. Um dia.
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#2: Três mulheres de três pppês, Paulo Emílio Sales Gomes (1977)
Uma questão que não é tão valorizada hoje em dia, numa época de algoritmos de recomendação que já dura mais de década, é a importância dos fatores obsessão e empolgação em nos fazer descobrir uma coisa nova. Boa parte das músicas que ouvi na adolescência (Death Cab for Cutie, David Bowie, Placebo) eu só o fiz pela animação das outras pessoas ao falar delas. Esse fim de semana. eu só comecei a ver a segunda temporada do The Rehearsal depois que meu namorado virou pra mim no café da manhã e disse, sem muita cerimônia, que hoje você vai assistir isso e vamos lá.
De modo parecido, eu só fiquei sabendo desse livro pela minha amiga Morgana. Tomei nota não só da empolgação e do jeito que ela falava da história, mas me saltou à vista o nome curioso - três pppês? - e o autor de quem eu nunca tinha ouvido falar na vida, cujo nome de quatro partes me intrigava muito.
Paulo Emílio Sales Gomes acontece de ter sido um professor e pesquisador e crítico e fundador da Cinemateca Brasileira e esse é seu único romance. O posfácio da edição da Cia. das Letras é bastante informativo sobre a vida e obra para os não iniciados, e traz alguns insights críticos bem interessantes. Descobrir essa existência é uma das coisas que faz a gente pensar Caramba Como O Mundo E A História São Vastos E Há Muito A Descobrir. Três mulheres... foi publicado meses antes do Paulo Emílio sofrer um infarto e falecer em 1977, aos 60 anos.
O romance ou conjunto de novelas, de fato, trata da história de três mulheres, a vida do "doutor" P., que se encontra em três momentos diferentes da vida; a mesma pessoa mas não exatamente. Helena, (H)Ermengarda e Ela aparecem na narrativa sob o ponto de vista em primeira pessoa de P., destacando suas qualidades e acima de tudo seus defeitos. As três partes da história contam com certas reviravoltas ou movimentos revelatórios, que levam à loucura ou ao abandono, mostrando mais a relação heterossexual como redutora da personalidade feminina do que qualquer coisa sobre elas mesmas.
A história, apesar ou por causa de seu protagonista, é engraçadíssima, principalmente a segunda parte, "Ermengarda com H". P., que na verdade é Polydoro, já começa a história nos contando da sua simpatia com o fascismo e de todo o playbook de quem é bem-nascido e se pretende ilustrado no Brasil do início do século 20. Toda aquela coisa: a tensão homoafetiva com um professor, a viagem para a França em nome do pedigree da coisa toda, um simples bacharelado que ainda assim lhe garante o título de doutor sem doutorado pelo dom do dinheiro. Nada na narrativa te faz sentir simpatia pelo P(olydoro), ele é um burguês oportunista, e é isso que torna tão interessantes e deliciosas as voltas semânticas que as três mulheres causam ao longo da vida dele.
Ao ler a história (que corre rapidamente em apenas 136 páginas), eu ri de um jeito que não ria com um livro há muito tempo. A prosa tem uma ironia muito específica que me lembrou de quando eu estava na escola e tive que ler Memórias Póstumas de Brás Cubas e ficava insistindo pra todos ao meu redor que aquilo ali era na verdade hilário. Assim como o Machado, o Paulo Emílio faz uma crítica de costumes afiadíssima do especulador imobiliário patético que é o P(olydoro), que cai no plano infalível do Professor Alberto e a esposa Helena, vive um cabo de guerra digno da novela Guerra dos Sexos com a (H)Ermengarda e se deixa iludir pela virgindade d'Ela, a antiga secretária. Coisa fina mesmo.
Importante: a leitura desse livro nesse mês só aconteceu graças à Biblion, o serviço de biblioteca digital do estado de São Paulo. É só fazer uma conta com o seu e-mail e o acervo é muito vasto & interessante. Defenda bibliotecas etc etc.
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#1: maurice, e.m. forster (1914/1971)
ao ler Maurice, se tem a sensação de estar presenciando um pequeno milagre ou espiando pela janela. Acho que a coisa mais famosa sobre esse autor (se você não é da faculdade de letras e nunca ouviu falar de Aspectos do Romance) é que ele era gay e escreveu este romance gay que só foi publicado depois da sua morte em 1970. Ou você conhece o filme, que foi dirigido pelo James Ivory (vencedor do Oscar de melhor roteiro com Call Be By Your Name trinta anos depois) e que tem, sem sombra de dúvidas, Hugh Grant em sua melhor performance capilar.
A história segue uma estrutura bem tradicional pra um romance de formação de um homem bem tradicional de classe bem média na inglaterra. Maurice passa a vida toda sentindo um leve desconforto e incômodo com o jeito que a vida está organizada pra ele: assim como seu falecido pai, estudar num colégio interno, daí ir pra Cambridge por uns anos, daí tomar conta dos negócios da família. Se pensar naquela música do XTC, essa noção ainda deve viver na contemporaneidade. Tudo desanda em Cambridge, assim que Maurice conhece clive. clive é charmoso e de uma classe um pouco mais elevada e pergunta, com uma ousadia juvenil, se Maurice já tinha lido o Banquete, de Platão e a coisa toda culmina numa declaração de amor.
Forster enfatiza no romance a importância de que o amor seja consumado, algo que Clive não quer de jeito nenhum. O autor faz questão de pontuar que o período em que os dois estão juntos é marcado por misoginia e desprezo pelas mulheres em suas vidas, como a mãe e as irmãs de Maurice. O romance platônico de Maurice e Clive se dá puramente no campo das ideias, o que torna muito fácil que, dois anos depois, Clive perceba que começou a se sentir naturalmente atraído por mulheres e marque o primeiro casamento que vê pela frente.
Maurice, especialmente a partir desse ponto, se torna um grande tratado sobre solidão e questionamentos e classe social. Nosso herói passa impassivelmente por consultas médicas e sessões de hipnose em que confidencia ser um "inominável do tipo Oscar Wilde". Tendo lido De Profundis no mês passado, impressionante ver a repercussão desse caso na memória coletiva inglesa. Mas, apesar de tudo, Maurice é um romance extremamente esperançoso.
Dedicado "a um ano mais feliz", Maurice não se conforma com a realidade da Inglaterra edwardiana como a realidade do mundo e se demonstra contemporâneo, nostálgico e cosmopolita. Menciona o atraso dos médicos, que não ajudam Maurice por não terem o conhecimento que era produzido na Alemanha (como as pesquisas de sexologia de Magnus Hirschfield); fala da possibilidade de existência sem a ameaça de prisão em países como França e Itália; conta, na voz do hipnotista, que às vezes a vida é isso mesmo e não tem o que fazer. O maior sopro de esperança vem na pessoa de Alec Scudder.
Scudder fecha o triângulo de amor e de classe no romance, um simples ajudante de caça; com ele, Maurice tem a oportunidade de um amor consumado capaz de gravar suas convicções sobre si sobre pedra. Scudder - Alec - é o motor para o final feliz do livro; de acordo com Forster num posfácio de 1960, não faria sentido escrevê-lo se não fosse com um final feliz. A felicidade radical de Maurice e seu desejo de quebrar as convenções de sexualidade e também de classe para viver como seu coração deseja é uma coisa realmente inspiradora.
E a história é legal, fácil de se envolver, com um compromisso inalienável com a linearidade das coisas. Ler a história de Maurice te faz ver talvez não um velho amigo, mas um cara meio sistemático aprendendo a se abrir para a vida e as coisas ao redor. Recomendo horrores, nem que seja pra ver o filme depois.
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