Joelho de Porco
Formado em São Paulo, em 1972, o conjunto foi um dos precursores do chamado Rock Satírico, junto com seus conterrâneos do Premeditando o Breque e do Língua de Trapo (duas bandas que também merecem um texto, diga-se). O Premê fazia um som baseado no samba e no chorinho. O Língua transitava por todo tipo de vertente musical, da bossa nova ao punk. O Joelho era mais roqueiro, com influências…
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Aline termina o atendimento de mais uma cliente, Carla na cozinha nova da casa da irmã prepara mais uma leva de bombons e ovos de páscoa, já que a data pascal será dali 3 dias.
- Obrigado.
- Quando precisar é só vir.
A cliente sai satisfeita quando Judite entra com as crianças que trazem sacolas.
- Trouxe tudo?
- Sim, Carla, o Nilo me lembrou o que havia esquecido.
Aline ajuda a colocar as sacolas na mesa, quando as meninas olham para os doces ali com brilho nos olhos.
- Vocês querem?
- Sim.
- Bobos, eu deixei meia panela para vocês ali na bancada.
- Obrigado tia.
As crianças vão até a panela e a diversão é total, logo o celular de Carla toca.
- Oi.
- Carla.
- Quem fala?
- Eu a Jocyane.
- Linda, o que foi garota?
- Preciso de abrigo, urgente.
- Sei, vá para o bar.
- Já estou aqui, bem perto.
- Pegue as chaves no salão de beleza ao lado do bar, a moça vai te entregar, diga a ela que eu deixei.
- Tá, obrigado.
- Depois eu vou ai para a gente conversar. Carla desliga e olha para a mãe e a irmã ali.
- O que foi filha?
- A Jocyane, pelo jeito o ovo virou.
- Eu disse, aquela garota, tão sonhadora, feita em ilusões.
- Vou terminar aqui e ir para o bar.
- Vai deixa-la lá?
- Sim.
- Eu cuido dos doces.
Aline assume a cozinha e coloca o avental, Carla beija a irmã no rosto e sai junto de Judite.
Daniel chega na casa, abre a porta e não sente a presença de Jocyane.
- Amor, querida.
Ele vai pelos cômodos até parar no quarto, se abaixa e nada debaixo dos móveis, abre o armário e nenhuma roupa de Jocyane.
- Vagabunda, pilantra.
Ele sai da casa aos berros.
Carla e Judite descem do táxi e logo entram no bar, já no salão, vê Jocyane sentada no mezanino em um sofá de couro rosa.
As duas sobem até a mulher.
- Você esta bem?
- Ele me agrediu.
- Eu disse que isso ia acontecer, minha querida. Judite diz para Jocyane que fica cabisbaixa ali.
Daniel vai até o ponto de mototáxi e entrega uma quantia para um dos motoqueiros alugando ali a moto deste, ele mesmo sobe na direção e sai para um bairro afastado.
Em uma casa de madeira velha, já quase caindo ele pára a moto em cima de algumas mudas de roseiras e entra ali, de supetão chuta a porta ja praticamente podre pelo tempo e cupins.
- Cadê ela?
- O que faz aqui, seu ladrão barato?
- Velha tranqueira, cadê sua sobrinha?
- Oras, finalmente ela criou coragem e fujiu do porco imundo, te deu um belo pé na bunda, cachorro dos infernos.
- Olha aqui sua cretina. Daniel levanta a mão contra a mulher que aponta o rifle de uma espingarda para ele.
- Nem ouse, canalha, lixo de homem, se é que em alguma vez foste homem.
200421.....
TEXTO DEDICADO A MAIORES DE DEZESSEIS ANOS.
CONTATOS: YOUTUBE - canal/ paulo fogaçaz
twitter - @pauloricardoaf2
7
Ali sob a mira de uma mulher que ele não consegue disfarçar seu ódio, Daniel sai de perto dela.
Ele sobe na moto aciona o motor da mesma acelerando e jogando terras com mudas para o alto, ela não consegue segurar o nervoso e atira ao céu.
Daniel ao longe segue sem saber onde Jocyane esta.
Aline entrega a última encomenda que Carla deixara para uma família que pedira bombons avulsos e 8 ovos.
Nilo guarda o dinheiro que recebera da mulher no cofre de elefante, Judite e Carla chegam ali.
- E ai family?
- Tia.
As meninas vão logo abraçando Carla, Judite aproveita e passa por elas indo para a cozinha onde Aline guarda os utensílios usados nos doces.
- Que bom que vieram, já foi entregue tudo.
- Tudo?
Carla fica admirada com aquilo, Nilo vem a Carla e entrega o cofre.
- Esta tudo aqui dentro, tio.
- De novo a me chamar de .............
- Tio. Olhando para o garoto, ela entende a posição do sobrinho e pega o cofre, abre este com auxílio de uma chave própria e conta os ganhos, separa o de novos materiais, Nilo sai com as irmãs para o mercado.
- Acho que vou com eles. Judite se prepara para ir com os netos, Aline diz que vai em seu lugar.
No sofá da sala, Carla conta o dinheiro, Judite ali leva as pernas para a mesinha de forma a descansar os pés.
- Mãe, ainda estou de olho naquilo.
- Sei, penso igual, sabe filha, acho que temos de dar o total apoio aquela garota, eu a conheço de pequena, acima de tudo, ela é iludida demais e nisso sofre com suas escolhas.
- Mãe, a senhora nunca aprovou isso, não gostava de Daniel.
- Ao contrário, filha, eu sempre gostei daquele menino que fazia questão de urinar em minhas plantas e sujar o meu muro com lamas. Risos.
Daniel continua a caça por Jocyane.
Aline sai do mercado, seus filhos ali bem perto dela, até que um carro pára ali.
- Olá crianças.
- Tio Gustavo. Aline olha para o rapaz ali e abre um singelo sorriso, a porta do auto é aberta, as crianças entram e Aline meio que sem jeito entra no veiculo.
- Para onde crianças?
- Para a casa nova tio.
- Agora mesmo.
Num bar de fim de rua, Daniel leva para a goela mais uma dose de wisky barato, nisso uma moto vem até o local, o carona desce e assume a moto que fora alugada.
- Ainda vou precisar dela.
- Nem pensar, você esta bêbado.
- O que diz?
- Obrigado, tchau.
O homem sai com a moto.
210421......
Aline ali na varanda da casa, Nilo serve limonada e bolo branco para eles.
- Hum, delicioso.
- Minha.....quer dizer, meu tio que fez.
- Você tem um tio?
- A Carla. Diz Aline um tanto desconcertada.
- A sim, entendo, esta delicioso Nilo.
- Obrigado.
O menino sai deixando os dois ali.
- Ele nunca aceitou o tio ser...........
- Trans?
- Sim, isso ai mesmo.
- E você Aline, o aceita como ele é?
- De inicio não, agora já o vejo como tipo, uma irmã para mim.
- Sabia, você é muito transparente, brilhante.
- Eu?
- Em tudo que diz e faz, é admirável isso.
- Eu?
- Sim.
- Oras, seu Gustavo, somente sou uma mulher que a vida deu certos tapas e banhos gelados em momentos diversos.
- Nossa, uma filosófa também?
- Céus, que vergonha estou agora.
- Vergonha de quê?
- Eu aqui toda suja, simples, o senhor um homem de negócios, fino, por favor sr Gustavo não é certo a gente assim.
- Assim como?
O homem lhe sorri fazendo Aline sentir o ar gélido e ao mesmo tempo caliente da paixão lhe percorrer todo o corpo.
- Meu Deus, eu acho que......... Aos poucos o casal se aproxima e o beijo surge ali, Aline se solta nos braços de Gustavo que a envolve num abraço e num beijo até que.
- Mãe, tio.
Nilo ali a olhar os dois, logo as meninas chegam, ambos ficam sem graça, ela se recompõe e Gustavo entende que a situação e o momento é de sair, se despede e vai.
Dentro do carro, Gustavo segue para sua casa, seu pensamento é só o beijo e ele sente aquele aperto no peito, olha pelo retrovisor e sorri para si.
Jocyane dorme num colchão de ar, ouve miados e acorda, desce do mezanino e abre o freezer vertical, tira um prato de congelado que Carla lhe deixara, esquenta este no micro e ali na mesa saboreia da lasanha de legumes.
Enquanto se alimenta ela relembra os momentos de paúra diante a selvageria de Daniel.
Longe dali, Daniel verifica os pontos de vendas de drogas e outros de seus negócios tipo desmanches nos quais tem significativa participação.
Saindo dali ele segue para a casa de Laodicéia.
- O que foi dessa vez?
- Ela me deixou, tia.
- Filho. Daniel cai de joelhos ali no quintal da mulher, Lao pede ao menino que traga a poção de ervas, o menino sai correndo e logo retorna com o vidro em mãos, Lao profere uma reza e joga respingos do liquido em Daniel que logo adormece, ela com ajuda de outras duas mulheres levam o rapaz para dentro da casa.
Gustavo chega em casa ja colocando a chave do carro na mesinha de apoio ao lado do sofá, segue para a cozinha onde lhe é servido um suco de laranja e torradas, sai dali ouvindo sons de risos oriundos do escritório da casa, ao passar no corredor é chamado por Magali.
- Filho.
- Oi mãe, esta em casa?
- Querido que bom que veio, estávamos a sua espera.
- Por quê?
- Quero que conheça Camila, lembra-se dela, filha de um empresário bem conhecido de seu pai e sua mãe fora........
- Não mãe, de qualquer modo, prazer, Gustavo.
- Olá Gustavo, sua mãe me disse maravilhas de você. Magali acelera o processo pedindo para que eles sigam para a sala e assim fiquem mais a vontade e conversem.
210421.....
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O Tição de Natal: - Seu poder e magia.
Conto Serrano(1).
(in, Voz de Cambra nº 1051 de Janeiro de 2019)
1. A Manhã, do Dia de Consoada.
Naquela manhã, do Dia de Consoada, de finais da década de cinquenta do século XX, a tia Madalena acordou cedo em Viadal, lá para as faldas da Serra da Freita.
Então, já as "vacas paiveiras" esperavam por um braçado de pasto verde, enquanto a dona as ordenhava; a fim de dar o almoço(2) à família. Como, na véspera, tinha cozido broa deliciaram-se todos com o leite acabado de mungir, colocado numas malgas grandes a que acrescentaram pedaços do pão fresco.
Já o seu homem, conhecido pelo tio Fernandes, madrugador que era, tinha ido à ribeira, ao Chão do Moinho, na Corga do Barroco, merujar uns lameiros e certificar-se que o engenho(3), da presa, funcionava em pleno.
2. O Nevão, na Freita.
Apesar da brisa fresca que a camponesa sentiu na cara, ao sair de casa, nem se lembrou de espreitar lá para cima, para a serrania; de tão atarefada que estava com a preparação da ceia de natal.
Deixado o curral dos animais, é então que olha para a Freita e, espantada, vê o solo todo coberto de neve. Apesar de não ser novidade, o nevão surpreendeu-a. Na aldeia, se nevou, foi pouco e durante a noite; daí o não ter dado por nada.
Talvez por alguma neve já então derreter, o caudal de água, da Frecha da Mizarela(4), tinha aumentado imenso; sendo perfeitamente visível, a olho nu, cá de baixo. Audível era também o seu zumbido, bem como o do rio Caima, que, devido à invernia recente, galgava as margens.
3. O Cheirinho a Rojões.
Como o tempo arrefecera, o tio Fernandes já tinha providenciado, com a ajuda dos vizinhos, a matança do porco. Esquartejado o bácoro, grande parte tinha ido para a salgadeira e a carne melhor, a do lombo, destinada a rojões.
Eram para aí umas onze horas quando a rua, então chamada de caminho, ficou impregnada de um cheirinho intenso, a carne frita. Eram os pedaços da febra, com alguma gordura, que derretiam ao lume, num grande tacho de cobre. Alguns até já boiavam no meio da banha liquefeita.
Diga-se, em abono da verdade, que noutros lares, ali à volta, a cena se repetia, ou não estivéssemos no Natal. Era tão ativo o aroma que até a tia Emília, a sua vizinha, assomou ao cancelo(5) e saudou:
- "Benza cá Deus, tudo"!.(6)
- "Venha com Deus", tia Emília, falou a dona da casa.
Depois, pensando também no marido, o tio Armindo, inquiriu:
- "Ò Madalena, há lugar, à masseira(7), para mais dois?";
- "Há, sim, tia Emília!. Conto com vocês para a janta!", respondeu;
E assim foi. Comeu-se “rojoada” da boa, regada a americano(8), da lavra do anfitrião. A carne que sobrou foi guardada num púcaro de barro, coberta com o pingue, para os dias vindouros; nomeadamente para a visita inesperada de algum parente, das redondezas. Era então só aquecer alguns dos nacos ou desfiá-los e cozinhar um arroz delicioso; que até um aspirante a escriba, conhecido lá na terra, gostaria, ainda hoje, de voltar a saborear.
4. O Carvalho Cerquinho.
Existe nas matas da Freita, para além do carvalho comum, uma variedade chamada de cerquinho. Seria abundante noutros tempos, mas agora é rara. São-lhe atribuídos poderes extraordinários, diríamos mágicos, nomeadamente os de amainar as trovoadas. Para tanto, as suas pernadas - os tições - devem ser cortadas, nas vésperas de Natal e sempre depois do pôr do sol.
Era, ao tempo, tarefa dos rapazes(9); já que estes, mediante encomendas ou por chegarem primeiro às casas dos habitantes que não podiam ir decepar o madeiro, davam uma guloseima aos garotos. Não admira, por isso, que não faltassem candidatos à recolha e fornecimento dos ditos paus. Um deles, era o Manel, aí com uns oito anos, filho dos lavradores Madalena e Fernandes, já nossos conhecidos.
5. O Manel trepa ao Cerquinho.
Todo entusiasmado, naquele fim de tarde, o Manel, preparou o podão e fez-se ao bosque, em busca da tão desejada árvore. Não lhe foi nada custoso encontrá-la. Para tanto, tinha tido a ajuda do pai, bom conhecedor da floresta e dos caminhos e carreiros que levavam ao cerquinho, previamente selecionado.
Foi, também, sem grande esforço, apesar da altura, que trepou o carvalho e decepou algumas das suas trancas.
Difícil foi, sabia-o por experiência anterior, bater a concorrência.
Com efeito, constava que havia, por lá, alguns maraus que não esperavam pelo ocaso do sol. Ainda este ia alto e eles já vinham, às escondidas, com as arrancas do carvalho.
Seguro é que o Manel não era desses. Tradição era tradição e, para ele, isso era sagrado, sabemos-lo de boa fonte. Também, pouco valia, aos outros, irem bater a determinadas portas, a perguntar:
- "Tia.... já tem tição de Natal"?
- "Já sim, meu menino. Deus te dê saúde!", respondiam.
Dali, não levavam nada. Uma era a da tia Emília, a dos rojões, que já tinha sempre guardada uma “regueifita”, comprada na feira dos 23, na Gandra, para o "seu" Manolito. Meu Deus, que paladar, disse-nos ele!
6. O Bacalhau da Ceia de Natal.
Quando o miúdo regressou à povoação já era escuro. Porém, o odor intenso a bacalhau cozido, juntamente com as batatas e couves tronchas, não deixava errar as portas dos vizinhos e familiares; sobretudo daqueles em que sabia que havia presente garantido.
Alguns, também, davam uns trocos, então ditos de tostões; que escudos era raro vê-los, apesar do lenho ter grande valimento, como veremos.
7. O Tição de Natal e o seu Poder e Magia.
Vá-se lá saber as origens de tão misteriosa e extraordinária crença.
Verdadeiro é que, enquanto se ceava o bacalhau, seguido de aletria, mexida com um pau de figueira seco, e se beberricava um pouco de vinho fino(10), a tranca do carvalho cerquinho era posta a queimar, na lareira, nomeadamente a sua parte mais fina. Finda a refeição era apagada, molhando-se-lhe a ponta.
Nas noites seguintes, e à mesma hora, preferencialmente, aquando da reza do terço, a prática repetia-se até ao Dia de Reis.
Terminado o prazo, apagava-se de vez e guardava-se a bom recato. Sempre que se avizinhava trovoada, acendia-se e, quando a ponta estava em brasa, era colocada atrás da porta de entrada da habitação.
8. A Grande Trovoada.
Está bom de ver, foi mera coincidência. Mas o certo é que, lá para as 8 horas dessa noite de Natal, começou a ouvir-se trovejar: - primeiro sobre o mar, lá para os lados da Torreira; depois na Freita e outros montes à volta do vale de Cambra.
Nisto, a ordem veio célere do chefe da família:
- "Manel, vai depressa, à loja(11), buscar o Tição de Natal, que vamos ter tempestade."
- "Mas, meu pai, está ali ao lume", retorquiu o gaiato.
- "Não rapaz, o do ano passado. Este só agora foi posto a queimar".
Num instante, antes que chovesse, já o anterior tição estava a ser chamuscado. Feito isto, foram os dois paus, com as pontas em brasa e a deitar fumo, colocados atrás da porta, já devidamente fechada; que trovoada, chuva e ventania na Freita são para respeitar.
É então que, por cima do Santuário da Senhora da Ouvida e da aldeia, se ouve o ribombar de um grande trovão, que parecia adivinhar o fim do mundo.
Nisto, a tia Madalena, a mãe do Manel, já com o terço na mão, diz em voz alta, ao que foi acompanhada por todos os presentes: - "S. Jerónimo e Santa Bárbara é Virgem"; seguindo-se a seguinte prece, alguns de joelhos, a estes dois santos(12):
- "S. Gregório se levantou, numa bengalinha pegou e Nossa Senhora lhe perguntou: - Para onde vais Gregório?
- Vou arrumar a trovoada, arrumá-la bem arrumada, para onde não haja pão, vinho, nem eira, nem beira, nem folhinha de figueira, nem pedrinha de sal ou coisa que faça mal".
Terminada esta oração, foi ainda rezado mais um Pai Nosso e uma Avé Maria a Nossa Senhora da Ouvida, a padroeira da aldeia; que, por ter o seu santuário, lá ao cimo, era sempre invocada e bem, nestas ocasiões.
9. A Bonança Total.
Findas as prédicas religiosas, o chefe da casa, arredou os tições, abriu a porta e, encostado ao cancelo, mirou o céu. Ao faze-lo, ficou estupefacto! Já se viam as estrelas, não chovia e o vento tinha amainado, na totalidade. Não se conteve e exclamou: - "Venham ver isto! Até parece milagre! Está tudo calmo!".
Num repente, todos vieram para o caminho, donde se vislumbrava o horizonte, da Freita ao Atlântico. Aí, o Manel, admirado, disse:
- "Realmente parece um milagre, meu pai!".
Todos concordaram, sobretudo a sua mãe que, por ser crente, propôs que se rezasse mais um Pai Nosso, em louvor de todos os Santos. E, assim, orando, regressaram à roda da lareira.
10. A Missa do Galo.
Por ser então tanta a calmaria, houve, na aldeia, quem se aventurasse, apesar de ser longe, a ir a pé, à igreja matriz, assistir à Missa do Galo. Um deles era o tio Zé do Grilo(13) que não falhava "à missinha", a não ser por doença. Não admira a sua devoção e boa forma física; pois se já tinha sobrevivido, em 1918, às trincheiras da Flandres, fácil era-lhe ir, nessa noite, a Cepelos.
O celebrante foi o Padre Correia, acolitado por dois seminaristas da freguesia e que tinham vindo passar as férias de Natal, com os seus familiares. Foi emocionante o sermão, já que, no dia seguinte, aquando da eucaristia em Viadal, o ex-Combatente não se cansou de fazer-lhe elogios.
11.Epílogo:
Com toda esta emoção, posta na narrativa, quase nos íamos esquecendo dos "Tições de Natal" e do nosso Manel.
Ora, os tições, confirmado o seu contributo para o fenómeno acabado de vivenciar, foram apagados e guardados, com todo o respeito, em sítio apropriado.
Continuaram a ser muito úteis, sobretudo no mês de Maio; tempo de grandes trovoadas, por aquelas bandas.
Quanto ao Manel, foi-se deitar; logo que liberto das preces religiosas, pela mãe, que o dia tinha sido longo.
Passou, no entanto, a noite a sonhar com o presépio(14) na Nossa Senhora da Ouvida, cujo azevinho(15), muito direito e cheio de contas encarnadas, tinha ido cortar com o pai uns dias antes. Até via o arbusto, meio torto, a Sagrada Família desalinhada e o burro longe da manjedoura. Isto não era propriamente mentira, dado o pouco jeito do seu progenitor, para aqueles afazeres.
Preocupado, estava mesmo, com o latim que tinha de debitar, logo às 8 horas, do dia seguinte, enquanto ia ajudar o padre Correia na celebração da missa de Natal, em Viadal; mas essa já é outra "estória".
Queluz, Novembro de 2018.
Manuel
Anotações:
(1) - Este conto é baseado em personagens, locais e factos verdadeiros.
Como decorreram umas seis décadas, após os acontecimentos relatados, referimos, aos leitores, que alguma da terminologia pode não ser imediatamente percetível, nomeadamente no que respeita aos horários das refeições. Pedimos assim, em caso de dúvida, que sejam tidas em atenção as outras "notas" de rodapé.
(2) - Equivale ao pequeno almoço, nos dias de hoje.
A refeição do meio dia era o jantar. A ceia ao cair da noite. Mata-Bicho, cerca das 10 horas da manhã e merenda a meio da tarde.
(3) - Pedra com cerca de um metro de altura, com dois buracos paralelos, na vertical, usada nas presas para as esvaziar, quando cheias. Funcionava por si. Ainda lá está o dito engenho, sem uso, há muitos anos, sabemos-lo.
(4) - Queda de água, com cerca de 80 m de altura, próximo da nascente do rio Caima, junto a Albergaria das Cabras.
(5) - Meia porta, com aldraba; que deixava penetrar a luz e impedia a entrada de animais, sobretudo galinhas, então abundantes pelos caminhos.
(6) - Outras formas de saudação: - "Deus vos salve ou Vos dê saúde", ao que se respondia com o habitual: - "Venha ou vá com Deus".
(7) - O mesmo que mesa. A masseira, colocada na cozinha, por ter pernas e tampa em madeira, era usada como mesa, aquando das refeições.
(8) - O mesmo que vinho morangueiro. Era então abundante nas aldeias da Freita. Crescia em latadas.
(9) - A prática ainda se mantém, na atualidade, embora com menor entusiasmo.
(10) - O mesmo que vinho do Porto.
A rojoada era normalmente acompanhada de papas de milho, cuja confeção se encontra descrita na Monografia de Viadal. (in, jornal Paroquial de Cepelos Ecos do Povo).
(11) - Adega e local de guarda de pertences agrícolas.
(12) - Existem e são veneradas, na ermida de Viadal, as imagens de S. Jerónimo e de Santa Bárbara. Foram ofertas de Estêvão Tavares Coutinho de Viadal. (in, Monografia de Viadal e Letrados da Serra, textos a disponibilizar, pelo autor, logo que viável).
(13) - Nasceu em Viadal em 1895. O pai, Francisco de Almeida era de Paço de Mato e a mãe, Maria Tavares, de Viadal.
Para a sua participação na I Guerra Mundial, ver a VC da Segunda Quinzena de Setembro de 2015. O artigo é do seu neto Manuel Álvaro de Almeida Santos.
(14) - Veja-se, pela foto, a beleza do atual presépio; agora sob a orientação do Alberto, o outro filho do tio Fernandes e tia Madalena.
(15) - Aqui chamado de gibarbeiro.
NOTA GERAL:
Mais contos, deste autor, podem ser encontrados no quinzenário A Voz de Cambra, no site ADCRA.Viadal ou no blog RIBACAIMA.COM, nomeadamente:
. O Enigma da Pedra do Cestes.
. A Brincadeira das Bruxas (VC de 25 Set. de 2010).
. O Tesouro da Fonte de Gatão;
. No Moinho de Tabaçó e/ou As Tias Rosa e Joaquina e a Pomba Mensageira;
. O Tardo em Tabaçó;
. A Estrada dos Caramuleiros;
. A Pastorinha Encantada;
. As Bruxas da Mina da Defaifa, entre outros.
Fotos:
Tia Emília e tio Armindo. Ano de 1970.
Presépio de Viadal, anos de 2015. Fotos da autoria da prof. Lealdina Brandão Almeida.
Tia Emília e tio Armindo, ano de 1970. Presépio na Senhora da Ouvida, ano de 2015.
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#246 #MeuTioeoJoelhodePorco ★★★½ Lembro de ter ouvido falar da banda Joelho Porco em algum programa na rádio 89fm de São Paulo, a Rádio Rock, e em algum programa do saudoso Kid Vinil da extinta e também saudosa rádio Brasil 2000, isso lá pelos fins dos anos 90 e início da minha adolescência. Era uma banda com uma sonoridade pesada mas de batida agradável, com músicas engraçadas e de refrões grudentos. Não me interessei, naquela época meus gostos musicais eram outros, mas isso é apenas divagação. O que importa é que pude assistir a esse documentário, que relembra a banda e homenageia a trupe precursora dos Mamonas Assassinas. E o filme é uma delícia. Contada pelo cineasta Rafael Terpins, filho e sobrinho de dois integrantes da banda, “Meu Tio e o Joelho de Porco” é um refresco para o gênero, e traz à tona histórias divertidas dos integrantes e da cena musical da época. Recomendo até para os que não conhecem ou não gostam da banda. #brasil🇧🇷 #filmes2018 (em Cinemark Shopping Eldorado) https://www.instagram.com/p/BnMk1htFolV/?utm_source=ig_tumblr_share&igshid=1xrminwzi0ykx
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'Deus não está morto', 'O Candidato Honesto 2' e 'Ferrugem' estreiam nos cinemas do RN
‘Deus não está morto’, ‘O Candidato Honesto 2’ e ‘Ferrugem’ estreiam nos cinemas do RN
Também entram em cartaz a animação ‘Jovens Titãs em Ação! Nos Cinemas’ e o documentário ‘Meu Tio e o Joelho de Porco’.
Três produções nacionais estreiam nesta quinta-feira (30) nos cinemas do Rio Grande do Norte. A comédia “O Candidato Honesto 2”, com Leandro Hassum; o drama adolescente “Ferrugem”, e o documentário “Meu Tio e o Joelho de Porco”. Também entram em cartaz o filme cristão…
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In-Edit Brasil 2018: os filmes que quero ver
Piscamos e já está na hora de novo de assistir ao In-edit Brasil, festival de documentário sobre o universo da Música, cuja 10ª edição acontece dos dias 7 a 17 de Junho na cidade de São Paulo – e depois em Belém e Salvador. Um grande esforço de Aliche, Léo, Mau e Cia.
Por transparência, vale dizer que a Flávia [minha esposa] faz parte da equipe divulgação do evento, inclusive por gostar tanto dele e acabar se envolvendo. Se eu fosse professor organizaria excursões pro In-Edit pros alunos assistirem aos filmes. Vários são uma aula de História Contemporânea, contextualizando o nascimento de um artista musical, uma banda ou uma tendência musical na situação em que estão inseridos. fora isso é divertido pra caramba.
resolvi escolher aqui alguns dos filmes que quero ver em 2018. “quero” porque é diferente de “posso”. além de meus compromissos profissionais que têm se empilhado ultimamente [ainda bem – e socorro], o In-Edit sempre oferece muita coisa boa. se você acha que não tem material suficiente sendo produzido, é só olhar a programação completa e pirar. escolhi mais da metade… espero conseguir pelo menos metade desses.
ADONIRAN – MEU NOME É JOÃO RUBINATO
AS MINA NA BATALHA
CHAVELA
DONA ONETE – FLOR DE LUA
ETHIOPIQUES – REVOLT OF THE SOUL
EU SOU O RIO
GEORGE MICHAEL – FREEDOM – DIRECTOR’S CUT
GRACE JONES: BLOODLIGHT AND BAMI
HEADBANGER VOICE: A HISTÓRIA DA ROCK BRIGADE
JERRY, EU TE AMO
MEU TIO E O JOELHO DE PORCO
OLANCHO
PESADO – QUE SOM É ESSE QUE VEM DE PERNAMBUCO
QUEERCORE – HOW TO PUNK A REVOLUTION
SHUT UP AND PLAY THE PIANO
SOM, SOL & SURF – SAQUAREMA
STOP MAKING SENSE
TETÊ
THE ALLINS
THE MAN BEHIND THE MICROPHONE
TRAVESSIA
VOCÊ NÃO SABE QUEM EU SOU
XTC- THIS IS POP
YZALÚ – RAP, FEMINISMO E NEGRITUDE
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A cor amarela - capítulo um
A paranoia vista de longe parece uma coisa engraçada. Veja bem, meu falecido tio Joaquim passou trinta anos de sua vida como despachante do Tribunal de Contas acreditando na possibilidade de ser assassinado. No duro. Ele não dava as costas a ninguém – poderia ser um mendigo, um menino de colo ou um padre. Não aceitava comida de estranhos – e até conhecidos. E muito menos deixava sua garrafinha de café um minuto longe de si. Quando sobrava café de um dia para o outro, despejava toda a bebida no ralo, depois lavava com água morna e sabão. Só então preenchia a garrafa.
Certo dia, tio Joaquim se engasgou com um jorro vermelho. Tossiu grossas postas de sangue fresco e todo o oxigênio do pulmão sumiu de uma hora para outra. Não tinha derramado o café dormido. Passou suas últimas semanas jurando aos médicos o envenenamento causado por um colega de trabalho. Denunciou para a Corregedoria, a polícia, foi até aos jornais.
Ele não considerava o fato de que fumava três carteiras de cigarro por dia. Morreu com o pulmão preto, mas se agarrando fielmente à paranoia. Ela foi sua manta protetora até o dia da morte.
Eu fui a seu enterro, e relembrava essa história em meio a gargalhadas. Hoje, tio Joaquim parece rir de mim no inferno.
Tudo aconteceu muito rápido. Eu topei com as fuças do Homem umas cinco vezes. Cinco dias seguidos em que o Homem apareceu por trás dos trailers, xeretando as reuniões com a equipe no meio do descampado. Mais do que observar, sua técnica foi chamar a minha atenção a qualquer custo. Acendia o cigarro e ficava em sua posição de segurança me assistindo. Eu era um entretenimento barato para aquele curioso. Não, não era nenhum jornalista ou, quem sabe, fã de trupes mambembes. O modo como meu pelo se arrepiava era o maior sinal de aquele Homem queria me puxar pelo anzol. O gancho estava sangrando na minha bochecha há dias, e na tarde de hoje eu decidi encarar o meu pescador.
Antes, eu tive de dispensar o Barão. Porco imundo. Ele gosta de fazer as reuniões sempre com o sol a pino para testar a nossa resistência. Nos juntava em um grande círculo naquilo que será em poucos dias a noite de estreia do Grand Circo Giallo. Ele mudou de nome assim que assinei o contrato de locação. Eu tinha quase certeza que era uma forma de provocação. De passar por cima de tudo o que minha família construiu. Ele não ia sossegar enquanto não arrancasse meus últimos bens, até minhas calças e a carne dos meus ossos. Porco!
“Preste atenção em mim, Corleone!”, disse Barão estalando os dedos na minha direção.
“O que eu queria mesmo era não voltar a vê-lo”, respondi. Eu não consegui tirar meu campo de visão aonde o Homem estava se encolhendo para não ser visto pelos outros. Seu show era só a mim. Só eu teria a honra neurótica de assistir.
Encostada na armação de ferro carcomido, Agnes fumava um cigarro de cheiro particularmente desagradável. Seu rosto tinha restos de glitter que arrancava aos beliscões. Comentou:
“Por favor, não comecem...”.
“Fale para o Bruno Mezenga aí!”, interpôs Barão. Suas papadas banhadas de suor brilhavam na luz do sol.
De repente, o Homem se virou e saiu de cena. Meu pescador começou a puxar o anzol, não poderia deixá-lo esperando a tarde inteira.
“Eu tenho de resolver um problema. Tomem qualquer decisão sem mim”, me limitei.
“Isso, Casanova! Vai embora e abandone a sua equipe de novo!”.
Aquele porco sabia onde atingir o meu nervo mais exposto. Nesse instante, olhei para Agnes. O impacto daquela provocação me fez perceber o quanto ela parecia se esconder dentro do próprio corpo. Tinha mais brilho naquele glitter do que na mulher que um dia dormiu comigo.
Mas fui atrás do que era mais importante no momento.
O Homem atravessou a avenida principal ignorando os carros. Parecia querer morrer ali na minha frente. Prestei muita atenção em cada esquina que ele dobrava. Tem coisas que você só percebe estando há um semáforo de distância, como o seu capote cor-de-poeira e o chapéu puído, os mocassins e os cabelos grisalhos saindo aos tufos na aba.
“Pare!”, gritei quando começamos a acelerar as passadas. Começamos a correr assim que entrei em um canteiro de obras na esquina seguinte, um grande espaço aberto que abrigaria um conjunto de apartamentos.
“O que quer comigo! Fale!”.
O Homem não disse nada. Gritei mais um protesto, e nenhuma reação. Assim que fui tomar satisfações com os punhos já fechados, o Homem retirou um canivete do bolso. Eu estava com as mãos limpas, em um local desprotegido. Meu tio Joaquim interior começou a gritar.
Comecei a afastar as pernas e manejar uma forma de desarmar o cara. Estava até disposto a manter uma conversa dura, mas civilizada, tudo o que queria era manter aquela lâmina longe de nós dois. Fui pedindo calma, como quem anuncia para um pivete cheio de solvente na cabeça. De calma em calma, meus pés chegaram a uma distância segura para dar o bote.
Eu não tive reação quando o Homem estocou o canivete direto no seu coração.
A ponta do canivete varou sua carne igual em uma folha de isopor. O som da lâmina rompendo o tórax também era semelhante. Crec! Creeec! Ele caiu no chão com uma expressão de pavor no rosto, os joelhos arqueados e a mão segurando o cabo. Ignorei por completo meu próprio pânico e me juntei ao Homem. O canivete se fincou com tanta força naquele emaranhado de ossos e músculos que não consegui retirar sem uma certa dose de força. Um jorro de líquido viscoso e quente saiu da trajetória da lâmina. É impossível fazer uma operação sem se sujar.
Não lembro ao certo quando começou o barulho. Um ruído baixinho de turbina lá do alto. Mais um ruído. Uma sequência deles. Diabo de barulhinho irritante. Um ruído de ventilador. O lugar parecia vazio, sem guardas ou operários, sequer uma máquina ligada. Com o canivete nas mãos e um cadáver junto aos pés, me dei conta de que o barulho já estava no ambiente. Como abelhas. Logo os ruídos se tornaram muitos. Um enxame de ventiladores. Desde que cheguei, o barulho fazia parte do ambiente, tanto quanto as vigas e caibros, ou aquele Homem com um buraco nojento no peito.
O barulhinho foi crescendo e ganhando forma perto de mim, e chegou tão perto que pude ver o enxame. Um enxame de hélices. Mas não era um ventilador.
Era um drone.
Com uma bruta de uma lente de câmera.
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Poema sujo
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era...
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
Como se perdeu o que eles falavam ali
mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela
tão reais que
se apagaram para sempre
Ou não?
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema
nas aparições do sonho
- E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto
nas conversas da esquina
no coito em pé na calçada escura do Quartel
no adultério
no roubo
a decifração do enigma
- Que faço entre coisas?
- De que me defendo?
Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
(como pode o perfume
nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam
pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade
sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg
catalinas torpedeamentos a quinta-coulna os fascistas os nazistas os
comunistas o repórter Esso a discussão na quitanda a querosene o
sabão de andiroba o mercado negro o racionamento oblackout as
montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João
Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de
tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava
rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco
que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava
tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais
Mas a poesia não existia ainda.
Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de
gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode - por um descuido - esvair-se por meu
pulso
aberto
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato
atravessados de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho
de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato
brilhantina anel barato
língua no cu na boceta cavalo-de-crista chato
nos pentelhos
com meu corpo-falo
insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes
de Cézanne
matéria-sonho de Volpi
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
Mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
Ferreira Gullar
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