Lugares transnacionais no centro de Lisboa
Ocupação, apropriação e hospitalidade na praça pública
Entre a Baixa nobre e a Mouraria pobre, há uma ocupação e apropriação diferenciada destes lugares. O fluxo dos seus movimentos na cadência das interacções de gentes de quase todos os cantos do mundo revela modos de ‘ser’ e ‘estar’ na cidade. Na praça do Rossio, no Largo de São Domingos e na praça Martim Moniz, da forma física e do conteúdo humano do espaço público, e da hospitalidade urbana, antevemos práticas de sociabilidade e características da sociedade.
Palavras-chave: Cidade, migrações, diversidade, apropriação, alteridade, hospitalidade, espaço público urbano
1. PONTO DE PARTIDA
Caminhar é o mais poderoso modo de mobilidade, agregando todos os nossos sentidos, emoções e destinos. “Qualquer caminho leva a toda a parte/ Qualquer ponto é o centro do infinito”, escreveu Fernando Pessoa. Ao caminharmos pelas cidades experienciamos movimentos, comportamentos e padrões, nossos e dos outros. Nas maiores cruzamo-nos com milhares de pessoas cujos percursos ditam azáfama ou calmaria. Em todas, na vivência concreta e sensorial de ruas, largos e praças, frequentamo-las pelos mais variados propósitos. Como define Michel Agier (2011), a cidade reune lugares, situações e movimentos que expressam um “agir urbano” no modo como se percorre, ocupa e vive o espaço público. Da proximidade alcançável pelo nosso gesto há presença e movimento no espaço e no tempo que desenhamos no mundo. É dessa existência no lugar — no lugar urbano, uma construção humana definível como identitário, relacional e histórico (Augé, 1992), ou uma superfície assegurada por ritmos que comandam o condicionamento colectivo (Leroi-Gourhan, 1965) — que a ocupação momentânea ou recorrente traduz diferentes apropriações do território citadino. É da “natureza” das cidades ocupar o espaço em todos os contornos da vida social, seja económico, político ou lúdico. Da forma física e do conteúdo humano do espaço público antevemos práticas de sociabilidade e cultura, e de vários retratos de sociedade.
Nas últimas seis décadas, Lisboa lentamente se (re)fez multicultural como tantas capitais europeias. De cidade imperial a cidade turística, muitos processos de transformação ocorreram. Não existe uma só Lisboa, aqui vivem, trabalham e visitam gentes de muitas origens, a diversidade que a configura revela uma cidade aberta ao mundo, contudo fechada a si mesma nas desigualdades produzidas e tacitamente escondidas.
Este texto é uma reunião de observações etnográficas durante os meses de Outono de 2022, a que se somam um conjunto de interrogações, sobre uma específica geografia de lugares transnacionais no centro histórico de Lisboa que mescla lisboetas, imigrantes e turistas. Lugares que se tocam e se afastam, exibindo vivências e percursos híbridos ditados pela espacialidade, e em proximidade e fronteira. No fim da Rua da Palma abre-se a Praça Martim Moniz, num perplexo e interessante jogo de pessoas e espaço onde, nesta “baixa Mouraria”, há uma porção de cidade em contínua actualização. Após meros trezentos metros, e atravessando a Rua Barros Queirós, no icónico Largo de São Domingos detém-se outro pousio e encontro, por sua vez distinto da sua imediata vizinha Praça D. Pedro IV, vulgo Rossio. A partir das suas dimensões, relevâncias e simbolismos, este tríptico evidencia diferentes ideias de cidade, diversas formas de viver a cidade, e múltiplos modos de estar na cidade. Na verdade, esta zona apresenta-se multi-territorial e heterogénea num paradoxo de dissociação e relação mútua, e cada uma como micro-territorialidade proposta para análise. Desdobrando-se em três, evidenciam modos relacionais, comuns e divergentes, da ocupação e apropriação do espaço público que “é mais que um elemento de décor urbano – ele constitui/é a estrutura da própria cidade” (Menezes, 2009:302), e onde detalhes físicos e ambientais induzem (ou não) hospitalidade.
2. DEAMBULANDO PELAS PRÁTICAS DA CIDADE
2.1 — Praça Martim Moniz
Estamos num lugar central de Lisboa, herdeiro de mitos de origem, histórias e metamorfoses urbanas e sociais como nenhum outro na capital portuguesa. A Praça Martim Moniz é desde há muito o principal espaço público da Mouraria. Porém, quem desconheça a sua história pensará que é tão antiga quanto o bairro. A realidade de hoje decorre de sucessivas transformações, em particular desde meados do século XX quando um enorme projecto de reabilitação urbana, para sempre incompleta, modificaria física e socialmente o local. Por razões de salubridade é demo- lida em 1949 a zona do Socorro, na qual deveria nascer uma imponente Praça D. João I, mas após falhadas políticas urbanas de avanços e recuos na forma e uso da praça (estaleiro, interface de transportes públicos, estacionamento automóvel) herdou-se uma Praça Martim Moniz que diferenciadas edificações em redor entre 1980 e início do séc. XXI produziriam para o comum dos lisboetas, sejam nativos ou de outras origens, uma estranha simbiose de lugar e não-lugar como polaridades fugidias em que o primeiro não se esfuma por completo e o segundo nunca se consume totalmente (Augé, 2012), ambos identidade e relação que se renovam nesta praça.
Na actual praça do Martim Moniz paira uma imaginária semelhança a um pátio prisional. À volta, um urbanismo desequilibrado como paredes desconexas. As quadrículas que cobrem todo o pavimento da praça estendem-se gastas e de aparência encardida. Nalguns pontos a vegetação arbustiva é “muro” verde pejado de melgas no crepúsculo, e as árvores principalmente na parte sul são insuficientes para esconder ou amenizar o lugar. Há muitos indícios em como este sítio se aparenta esquecido, perdido na incapacidade de regeneração e valorização. Certo que a área central da praça configura o seu princípio espacial, mas um costumeiro vazio denota evitamento ou desinteresse. E no entanto, a praça é habitada, renovando-se na frequência da multiculturalidade que a caracteriza há algumas décadas. Neste bairro, designação tão imaginada e amada, existem entre os seus 6000 habitantes mais de 50 nacionalidades diferentes, segundo a associação Renovar a Mouraria. A população imigrante, seguramente não toda aqui residente e que frequenta a Praça Martim Moniz, continua a fornecer esta migrantscape (Gésero, 2014) numa paisagem de diversidade cultural onde vários cenários sociais se desdobram. Eis alguns registos das minhas observações.
Ao fim da tarde a praça ganha outro movimento. Ou melhor, mais presença. Homens de idades várias, maioritariamente jovens, ocupam o topo norte e o lado oeste desta plataforma. Durante o dia, os ajuntamentos não excedem as duas ou três pessoas; ao entardecer, os grupos reunem quatro a seis. Oriundos do subcontinente indiano (Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal) somam-se por vezes trinta a cem pessoas, falando nos seus idiomas em conversa sentada ou de pé a telefonar. Ninguém fuma, nem bebe. Há dias em que, pelas 19h, perto do acesso da estação de Metro do Martim Moniz nesta face norte da praça, se formam filas para comprar uma refeição típica das suas terras, preparada ali mesmo por homens mais velhos em panelas sobre fogão de campista. Num “cantinho”, também sentados nos esguios, baixos e frios muretes que circundam os espaços da dispersa vegetação, três homens africanos, de idade mais avançada que os demais, falam em crioulo. Após várias idas, apenas nesta ocasião surgem duas mulheres, de cabelo coberto e filhos de colo, para se sentarem no oeste da praça.
Um pouco adiante, encostados ao muro que delimita a praça frente ao Hotel Mundial, e na sombra das poucas árvores existentes, rotineiramente juntam-se cerca de vinte jovens da África Ocidental. Neste meio círculo, de pé conversam animadamente, e os que estão sentados prosam calmamente no conforto possível do mesmo tipo de muretes baixos e frios que emolduram a praça; a vintena de cubos de pedra negra que pontuam a área não manifesta procura pois a lotação para um indivíduo não estimula pouso adequado para diálogos. Alguns fumam ou comem, ninguém telefona. Noutra ocasião, sob uma tarde solarenga de Novembro, neste fundo da praça, dez a doze destes rapazes jogam futebol com uma baliza feita com camisolas amontoadas e a outra por duas latas encostadas ao muro. Os jogos terminam quando uma das equipas marca cinco golos, prolongando-se as gargalhadas na pausa breve até o próximo grupo tomar o lugar da derrotada. Moussa é um destes jovens com menos de trinta anos. Originário do Senegal, de onde saiu há seis anos para trabalhar na Bélgica, tenta agora a sua sorte em Lisboa, nas obras. A sua figura é esguia e de gestos cadenciados, e na nossa conversa em inglês a sua fala afável de sorriso aberto não esconde alguns dentes que lhe faltam. Diz-me que partilha um quarto com outras pessoas perto do Marquês de Pombal. Com os seus companheiros “lisboetas” que por cá conheceu, alguns também senegaleses e outros da Gâmbia e Nigéria, as horas passadas no Martim Moniz são por vezes preenchidas com futebol.
Jogar futebol num espaço público de cidade, uma raridade actual. Uma das usuais práticas de cidade era mesmo isto, futebol de rua. A memória, e o imaginário, ao transformar uma rua ou um beco ou um largo ou uma praça ou um ermo baldio num campo improvisado remete-nos para o lúdico “jogar à bola” por crianças e adolescentes, em importantes momentos de repetida socialização e aprendizagem, não se ausentando a relação ou pertença ao lugar e à comunidade. A construção, organização, ordenamento, controlo e abandono variado da cidade invalidaram ou condicionaram a prática do brincar na rua. A “rua” como espaço de liberdade no uso “espontâneo” do lugar perdeu-se quase irremediavelmente. As transformações urbanas, sociais, demográficas e de segurança alteraram esta vivência de cidade, complementar a sua falta criando espaços adequados (campos públicos e academias) coloca-os eventualmente distantes ou de vários modos com acesso reservado. Mas, criando-se a oportunidade, observa-se nestes rapazes a alegria e a liberdade que o momento proporciona, concebendo neste pedaço um “lugar antropológico” na partilha de acto e referências evocando experiências vividas nas suas terras de origem.
Outra questão ocorre. O futebol joga-se em qualquer sítio, mas onde jogam cricket os indianos, paquistaneses e bengaleses deste lugar multicultural? Esta modalidade obriga a mais espaço, a bola pequena e rija é batida ainda mais longe que a de futebol. Outrora, há cerca de dez anos, crianças e adolescentes jogavam no centro da praça esta prática desportiva e cultural das suas comunidades, como reportava o jornal i . Hoje, o cricket tornou-se críquete e profissional, com clubes e jogos organizados pelos vários imigrantes que vivem em Portugal; a prática amadora encontra-se em descampados numa área esquecida ou de periferia, como acontece em Leiria (ruínas do antigo Hospital Militar) ou em Odemira (atrás da estação rodoviária).
Partilhando este meio círculo com os rapazes africanos, mas sem qualquer interacção, jovens timorenses (aqui cerca de 15, entre homens e mulheres, de um total estimado entre 150 a 300 pessoas em Lisboa) recém-chegados após o infortúnio de exploração e engano na agricultura do Alentejo nas semanas anteriores, agrupa-se junto ao monumento dedicado ao guerreiro Martim Moniz e à cerca moura. O seu purgatório inclui uma refeição por dia, frias dormidas no chão inclemente, deambular mais que os outros ocupantes da praça, e vulneráveis a novas perfídias. Quando tudo se perde, iremos para onde? É esta praça esquálida único porto seguro possível para pessoas lançadas ao deus-dará? Quatro agentes da Polícia Municipal patrulham por perto. Onde está a ameaça? Permanece todo o estrangeiro como potencial inimigo? Semanas depois já não há presença policial.
Noutra incursão sento-me também no topo norte da praça. A ocupação e os comportamentos repetem-se. Desta vez, ignorando eu a razão, dois agentes da Polícia Municipal estão por perto; na verdade, a praça tem nesse dia vários destes elementos em serviço.
Subsiste a percepção que o Martim Moniz é inseguro e palco de uma certa criminalidade. O infeliz desenho ou abandono nas cidades fomenta transgressão. O tráfico de estupefacientes, por exemplo, busca sempre a espacialidade confusa e difusa. Há uma latente desconfiança social associada à arrastada insolvência urbana e que alimenta uma segregação não pronunciada mas sentida no local. Contudo, o que transparece, durante o dia, é um espaço pacífico e de partilha para várias comunidades estrangeiras residentes em Lisboa.
A luz diminui azulando o lugar, a iluminação pública é ainda escassa. Subitamente ouço “A gente fala na esquadra”. A locução assertiva revela que algo se passa nas minhas costas. Não abusando da sua autoridade, um polícia PSP aborda um indivíduo que, como ele, deverá aproximar-se dos trinta anos de idade. O rapaz responde algo que não consigo entender, estou a cerca de dois metros mas o som é abafado pelo vento que agita os arbustos no fim da tarde. “Vá. Vais a bem ou vais a mal. Como queres?” Mantendo abordagem firme e calma, a frase de ordem contém uma alternativa que o rapaz não desafia, e levanta-se. O que motivou a interlocução, não sei; mas a intervenção não produziu mais que uma provável reacção inicial negando qualquer ilegalidade. Ambos caminham, lado a lado, para a esquadra adiante no início da Rua da Palma, em curiosa (dis)semelhança da cena final do filme Casablanca.
Numa tarde de verão de São Martinho, seis agentes PSP em passo acelerado descem desde a esquadra até à praça. Uma certa gravidade nos rostos e no andamento denuncia que esta saída tem missão e rumo certos. Um dos polícias mantém o punho sobre o coldre, o gesto tenso aparenta mais prontidão que hábito de pousar a mão. Dispersam-se dissimuladamente no amplo espaço público. Perco-lhes a vista quando chegam ao fim da praça. Dois minutos depois, estão num “corridinho” para o Centro Comercial da Mouraria e à própria Rua da Mouraria, o que não evita os olhares e as paranças das gentes que atravessam a praça e dos muitos turistas perto da Ermida de Nossa Senhora da Saúde que esperam o eléctrico 28, como sempre cobiçado e cheio. A perseguição, de alguém que não consegui identificar, revela-se inglória quando alguns polícias reduzem a velocidade ou param por instantes e revertem o caminho.
Praticamente apenas pessoas imigrantes (esmagadoramente homens jovens) estão, ou atravessam a praça dirigindo-se ou vindos da Avenida Almirante Reis, Mouraria ou a Baixa, raro é o indivíduo de outra possível origem por aqui, e desses, a maioria é turista alheio ou confuso numa praça sem jeito nem graça. Se no Martim Moniz a “invenção de uma geografia da resistência” se fez como nova “experiência fenomenológica do lugar” entre a última década do século passado e a primeira década do actual, como referia Marluci Menezes (2009), em 2022 já não é “comum encontrar grupos de chineses, (…) de indivíduos dos países do Leste europeu”. Com o desmantelamento dos quiosques, o não avanço da intervenção camarária de requalificação em 2019, e o período de pandemia Covid-19 desde 2020, alteraram-se novamente os usos e presenças. Neste território estrangeirado, possivelmente serei o único sujeito branco interessado em aqui estar. De outras pessoas que atravessam a praça presume-se que sejam moradores da zona, pelo saco de supermercado que transportam, ou passeando o cão.
2.2 — Largo de São Domingos
O céu nocturno inaugura novo bulício nas artérias próximas. Neste momento a maioria das gentes que caminham são alvas e rápidas, eventualmente na pressa do jantar que se aproxima. As esplanadas na nesga sul da Rua da Palma continuam na glória calma, com homens negros e brancos bebendo cerveja. Dominam os turistas e outros migrantes, em ambos os sentidos. Na Rua Barros Queirós, essa passagem antiga, estreita e movimentada, que se inicia numa esquina pelas traseiras do edificado da Igreja de São Domingos e, na outra, num restaurante usualmente frequentado por pessoas do subcontinente indiano e algumas de origem africana. A rua prolonga-se com várias lojas de souvenirs, à minha direita; do lado esquerdo, um alfarrabista, uma retrosaria, algumas lojas encerradas, e no fim, um café e depois uma tasca onde se acumulam de forma multi-étnica homens de idade adulta sorvendo, entre conversas sempre animadas, cerveja em copo ou pela garrafa. Toda esta rua é um maniacal para outros e novos enfoques.
As minhas observações neste largo icónico corroboram e auxiliam-se do descrito por Francis Rigal em Pratiquer la place publique (2016). Com diferentes “horas de ponta” ao longo do dia, no Largo de São Domingos atravessam e agrupam-se vários transeuntes. De modo “fixo”, algumas dezenas pessoas da África Ocidental lusófona; em continuado movimento, vagas sucessivas de turistas; e, competindo nos trajectos, outros migrantes e alguns lisboetas. A topografia deste lugar, pequena e entre edifícios, contempla dois planos físicos. O primeiro, sobe do Palácio da Independência à Calçada Garcia, onde tuk-tuks (hoje eléctricos e silenciosos, mas alguns ainda ruidosos pelos próprios turistas ou da música incluída), e espaçadamente um táxi, invadem as conversas e a sorrateira venda informal sob as sombras de três azinheiras e um pinheiro manso. Homens jovens tentam vender alguma roupa, sapatos e óculos de sol. As senhoras, sentadas em bancos de campismo ou de cozinha, trazem de suas casas produtos alimentares tradicionais como óleo de palma, pimentas, beringelas, amendoins, expostos sobre panos no chão de calçada portuguesa. O segundo plano e grupo de pessoas estende-se ao longo do muro que sustém essa ligeira subida da rua. Aqui, no Largo em si mesmo, abundam muitos homens com cerca de quarenta anos de idade para cima, e algumas, poucas, mulheres de idades semelhantes. Aumentando até cerca de três dezenas à medida que a tarde cresce e a noite chega, conversam sentados, um ou outro de pé por falta de assento. Diante dos seus olhares e encontros, diariamente dezenas de turistas sorvem uma ginja no edifício pombalino em frente, e umas centenas mais param ao ritmo do seu guia que lhes fala da história trágica do massacre de cristãos-novos e judeus em 1506 iniciada ali mesmo na Igreja de São Domingos, templo esse pleno de episódios seguintes de castigo e redenção transformando o seu interior numa invulgar obra de arte e espanto.
A ocupação e a apropriação do Largo de São Domingos revela outra bolsa cultural em Lisboa. O acolhimento do sítio ocorre pela certa generosidade de mobiliário urbano. Em pedra lioz branca três paralelepípedos e outros dois perpendicularmente dez metros adiante podem reunir, com relativo esforço, até três pessoas sentadas, com outras tantas de pé à volta para completar o convívio situado. Curiosamente, e quase como se tivessem sido surripiados para aqui, cinco blocos de forma semelhante mas em cru betão e mais compridos (cerca 2m cada) situam-se bem junto à parede pintada de branco fornecendo encosto e mais oportunidade de pouso e parlatório. A maioria dos sedestres utiliza “almofadas” feitas de desdobradas caixas cartonadas para menorizar o frio dos assentos. Assim, os mais-velhos estão sentados nos assentos (alguns, mais adiante, em bancos de madeira virados para o Rossio), e os mais jovens de pé nos limites do largo ou sentados nos baixos meio-globos de lioz que marcam a fronteira física entre zona pedonal e zona automóvel. Mais que no Martim Moniz, no Largo estimula-se o encontro certo e o encontro ocasional. Marcando a sua presença, cada um dos indivíduos afirma a sua existência abrindo proximidade aos amigos, familiares e conhecidos que aqui se cruzam, trocando cumprimentos e muitas falas (Rigal, 2016).
2.3 — Rossio
Há um retrato distinto no Rossio, o ambiente cenográfico difere substancialmente. A moldura de jacarandás pinta de violeta duas vezes por ano a praça em calçada portuguesa cujo desenho ondulado (“mar largo”) podemos encontrar no famoso calçadão de Copacabana (Rio de Janeiro). A elegância completa-se na arquitectura pós-terramoto desta praça histórica assente sobre o antigo circo romano, resplandecendo a imagem de poder e harmonia das cidades-capital projectadas a partir do séc. XVIII.
Os bancos de lioz branco, esparsamente espalhados ao redor da Praça D. Pedro IV, estão tomados por famílias e amigos de várias paragens. A ocupação do espaço é maioritariamente turística, euro-americana e asiática, ouve-se falar inglês, espanhol, holandês, chinês, japonês. A passagem breve rivaliza com o tempo de descanso antes de retomarem a caminhada. Desde as primeiras horas da manhã às últimas do serão, milhares de pessoas atravessam, ocupam e usufruem do Rossio. A fotografia domina como gesto, enquadramentos sobre a praça e a paisagem urbana no seu todo, e fotos de si mesmos para perpetuar a visita. O Rossio é praça circulatória dos trânsitos turísticos de Lisboa, vindos ou para a Praça da Figueira, Restauradores, Chiado, Bairro Alto, Baixa Pombalina e Praça do Comércio/Terreiro do Paço.
Por aqui, os imigrantes trabalhadores são uma minoria ínfima. Quatro mulheres falam em crioulo sentadas num banco perto do Teatro Nacional D. Maria II, dois rapazes do subcontinente indiano encostam-se à Fonte Sul, no lado oposto da praça. Ali estão serenos, conversando, alheios ao frenesim dos turistas.
3. DA CIDADE APROPRIADA, HOSPITALEIRA E HOSTIL
3.1 — As acções nos espaços tomados
A potencialidade para a construção de relação e apropriação do espaço público difere dentro das cidades, surgindo da morfologia, trânsitos, acessibilidades, simbologias e memória dos próprios lugares. Não são, assim, locais inertes, serão multilocalities, formando construções politizadas, culturalmente relativas, historicamente específicas, locais e múltiplas (Rodman, 1992). Do gesto e da percepção que encetamos no espaço, esse “lugar praticado” como define Michel de Certeau, percorremos e apropriamos a sua geografia fabricando espaços existenciais onde cooperam, na volumetria situada, interpretação, linguagem e convivência que formam relações sociais com e através da paisagem urbana. Seguindo as palavras de Marluci Menezes, cumprirá entender no espaço público urbano que as práticas sociais configuram continuamente os significados do espaço, onde se colocam “em relação o masculino e o feminino, a casa e a rua, o privado e o público, o local e o global, o jovem e o velho, nós e os outros, sagrado e profano, tempo e espaço, quotidiano e extraordinário, lazer e trabalho” (Menezes, 2009:303). Os vários conceitos de paisagem urbana — townscape (Cullen), ethnoscape (Appadurai), migrantscape (Gésero), soundscape (Schafer), smellscape (Porteous, Fortuna) — traduzirão vivências e interpretações inescapáveis aos aspectos múltiplos e pluralistas da presença, ocupação, sonoridade e sensorialidade presentes nas cidades, sejam ou não multiculturais.
Nestes três lugares em análise observam-se distintas ou semelhantes acções nos espaços tomados. É notório pelas descrições no segmento anterior que a praça pública significa três características relevantes da cidade habitada:
Passagem — A praça não é apenas um zonamento, uma superfície fixa ou parada no meio da cidade. O que a distingue, além do simbolismo da história e da toponímia, é ser espaço de deambulação e travessia, uma passagem, na errância de destino e partida simultânea.
Encontro — Não são aparentes áreas neutras, ou terra de ninguém e de todos, mas espaços de relações sociais, como identifica Michel Foucault; são oportunidade para encontro, combinado ou aleatório, numa leitura (ou escrita) de lugar e gente.
Pousio — Nos trajectos realizados surge uma permanência específica em determinados pedaços (Magnani, 2002), um pousio onde pausa ou descanso são acções e interacções sociais quotidianas que concebem outra “qualidade” da apropriação humana do lugar.
3.2 — Receber e estar
Será Lisboa totalmente hospitaleira? De modos diversos, frequenta “a praça” quem encontra “refúgio” na cidade. Esse “conforto” público dos lugares personifica um aconchego gratuito e possível de quem está “deslocado” na cidade. Nesse olhar, o factor de acolhimento e hospitalidade dos lugares pode demonstrar como o cidadão “comum”, e o cidadão “outro”, se inscrevem na cidade. A hospitalidade no espaço urbano é sinónima das formas de acolhimento da sociedade. Contíguos e interligados, a heterogeneidade social e étnica de Rossio, Largo de São Domingos e Martim Moniz demonstra várias sociabilidades. A procura destes lugares, assentes no seu simbolismo histórico e estético, joga em simultâneo na continuidade urbana de espaço público e na configuração de lugares antropológicos.
Rapidamente se observam, não opostos mas diferenças entre si. Da alteração das dinâmicas sócio-culturais nas recentes décadas em Lisboa, observar estes três palcos da cidade conduz a várias questões sobre a sua prática na cidade. Quem usa? Quem quer ou pode frequentar os lugares? O espaço público condiciona a sua utilização? Que nos descreve a presença, segmentação e distância dos grupos sociais? A forma da cidade induz a um desenho de sociedade? O espaço e mobiliário urbano são hospitaleiros ou hostis? Terão estas áreas invisíveis, involuntárias e inconscientes marcadores de diferenciação nas quais forma, função e presença condicionam circulação, inventam percepções, instituem pertença e exclusão, fomentam segregação? Certo que as pessoas dão sentido ao seu mundo conectando e separando coisas ao desenhar ou ordenar distinções e relações; esses processos deixam a sua marca no espaço não simplesmente como factos físicos mas enquanto reprodução de actividade social (Tonkiss, 2005:30-31). A cidade é, desse modo, composta por múltiplos territórios onde nos sentimos identificados ou estranhos, gerando uma natureza muito além de nós, não isenta de ameaças, de perigos, de desconhecido (Brito, 2003).
3.3 — O lugar do outro
Os territórios que este texto explora não evidenciam todos os retratos das assimetrias sociais e urbanas da capital, embora “fronteiras simbólicas do urbano” — na fraseologia do antropólogo catalão Manuel Delgado (El animal público, 1999) — possam representar-se nestes espaços. Delgado é claro quando afirma que o carácter urbano é flutuante, aleatório e fortuito; a metamorfose das cidades assim o comprova, em que todo o espaço estruturado, logo espaço social, apenas pela sociedade se converte de espaço não definido num território. Invariavelmente surgem diferenças específicas cuja demarcação física, social e imaginada será, para uns abertura, para outros fronteira.
Na valorização de uma sociedade multicultural nestes três lugares fluem diversos “outros” simbolizando a característica de cidade aberta tantas vezes invocada. Somos sempre o outro do outro, como disse José Saramago, porém a certos “outros” persiste a fronteira. Nos últimos trinta anos, balançando entre espaço fisicamente marginal e socialmente marginalizado, emerge “o lugar do Martim Moniz” como identificação, fronteira e confluência na travessia e presença humana que persiste em actualização multicultural, numa migrantscape ora ignorada, ora tolerada. Na Praça Martim Moniz se fez um “lugar do Outro” onde percepções de fronteira e margem subentendem-se imanentes, talvez mais que no Largo de São Domingos. As periferias não se circunscrevem à sua geografia exterior e distante, os enclaves urbanos são periferias internas cujas condições físicas e sociais poderão albergar essas mesmas noções e vulnerabilidades.
Poderão estes territórios serem reflexos da cultura, ou culturas, formas de “controlar” a cidade, de “quem pertence” em lugares específicos, ou desempenha determinados papeis? Na tipologia de ocupação e apropriação que demonstram, funcionarão subliminarmente as presenças e as diferenças transnacionais como indicadores de exclusividade para uns e para outros? Sentir-se-ão dissuadidos a frequentar um ou outro lugar? Sentirão que “não é o seu lugar”, ou que estarão“fora de lugar”? Serão o Largo de São Domingos e a Praça Martim Moniz, particularmente para as comunidades imigrantes, únicos locais possíveis ou tacitamente “permitidos” para a sua presença no espaço público de Lisboa?
3.4 — Forma e função
A olho nu, uma praça se impõe e outra se opõe; a praça do Rossio é nobre, a do Martim Moniz é pobre. O Rossio abraça estética, fluxo e conforto; o Martim Moniz é esconsa e fugidia. Porém, o primeiro é mais passagem e o segundo é mais pousio quando os comparamos. No Rossio fluem migrantes turistas, desafogados nos seus gestos e olhares; no Martim Moniz pousam os migrantes trabalhadores dos sistemas económico e turístico da cidade. Literalmente entre ambos, o Largo de São Domingos é um interstício urbano e social. Se não tivesse assentos estaria este largo ocupado da mesma forma? A ausência de assentos no Martim Moniz, não sendo a única explicação para o parco uso da praça, retira o conforto que se desejaria. O design da praça do Rossio concebe uma apresentação e um acolhimento que a Praça Martim Moniz não possui; no primeiro criou-se hospitalidade, no segundo subsiste uma espécie de arquitectura hostil.
Ao olharmos com atenção e nos debruçarmos sobre as características da cidade hoje, rapidamente chegamos às mesmas conclusões e propostas do arquitecto dinamarquês Jan Gehl em A Vida Entre Edifícios (2017), editado originalmente em 1971: “A vida entre edifícios não é meramente o tráfego pedonal ou as actividades recreativas ou sociais (…) compreende todo o espectro de actividades que se combinam para tornar os espaços comunais nas cidades e nas áreas residenciais atraentes e significativos.” (Gehl, 2017:14). E, numa das publicações do Gehl Institute (The Public Life Diversity Toolkit, 2016) afirma-se o seguinte: “We believe that good urban design, from street networks to benches, plays a role in creating tolerant and inclusive communities where the opportunity for human flourishing is shared by everyone”. É elementar que qualquer projecto arquitectónico e urbanístico não pode cingir-se a uma interpretação fechada ou descontínua do lugar. A importância da escala humana, seja na cidade ou qualquer assentamento, significa um olhar atento à ocupação humana do lugar e, integrando a natureza, apenas assim se conseguem criar espaços hospitaleiros.
4. PONTOS DE CHEGADA
Mais perguntas que respostas ficaram destas observações. Um “olhar de perto” com maior e melhor incidência etnográfica proporcionará informações relevantes para entender algumas das dinâmicas pessoais e colectivas. Neste “olhar distanciado” as interrogações permitem reflectir sobre o ideal de cidade e seus contornos, aparentemente invisíveis, que o contexto contemporâneo da diversidade social produz, e carregam consigo problemáticas de reflexão antropológica e urbana cuja abordagem científica poderá auxiliar na promoção de uma cidade mais inclusiva, coesa e justa. É um olhar situado que incide apenas sobre dinâmicas ocorridas após amanhecer até ao crepúsculo, o que acontece nas horas seguintes é seguramente diferente, sendo outro patamar de análise que este texto não toca.
Do contexto específico do uso das três praças em análise, encontramos padrões culturais e sociais relevantes, estabelecendo sempre relações entre si pois nenhuma age isoladamente e cada uma revela extensões de elevado interesse para diversas indagações e retratos. Reunidos no seu património cultural e linguístico, no Martim Moniz e no Largo de São Domingos a “necessidade de vínculo” associa-se à “necessidade de lugar”, renovando-se em cada encontro ou mera presença. Aqui se levantam oportunidades para uma sociabilidade no exterior, no espaço público, e para a afirmação cultural que os une. No Rossio é diferente, a sua turistificação internacional aproxima-a de um incansável interface de pessoas.
A experiência social do espaço público inicia-se sempre no indivíduo que busca vínculos de afiliação e participação num colectivo. Enfatizando visibilidade e presença revelam-se detalhes de ser e estar na cidade, há um manifesto social e de identidade que se corporaliza literalmente. Os imigrantes, de passagem ou já com intenções em ficar, são assim novos lisboetas e nestas praças também querem ser homens “na cidade/ Que manhã cedo acorda e canta/ (...) pela estrada deslumbrada/ Da lua cheia de Lisboa” (Ary dos Santos, 1977), usufruindo-a no melhor das suas possibilidades. A condição do Outro é indissociável, na cada vez maior transnacionalidade dos lugares, da organização urbana e das heranças assimétricas das sociedades coloniais. Contudo, não deveria auferir segmentações fracturantes no espaço público mas sim eventos de coexistência porque o contacto, visual ou interpessoal é um modo, uma tentativa, de reduzir o preconceito entre os grupos. A proxémia subtilmente configurada demonstra o uso e a percepção do espaço social e pessoal. A apropriação de território e a marcação de identidade não pretendem ser fronteira hostil e intransponível contrariamente às percepções criadas; mesmo que pareça cativo, é o seu lugar na cidade. Não difere muito do que podemos encontrar entre os reformados no jardim do Príncipe Real em Lisboa, ou num largo de qualquer cidade ou aldeia onde as pessoas marcam os seus dias e amizades em cada cumprimento, conversa, jogo, ou silêncio cúmplice. Bastará a simples co-presença dos indivíduos no espaço público, não importa a nacionalidade ou naturalidade, para suscitar, de forma totalmente simbólica, um sentimento de pertença colectiva (Rigal, 2016).
Qualquer lugar é sempre objecto e sujeito de demanda e ocupação, escolhido pela função que oferece mas também pelas sensações que produzem; a apropriação que ocorre estabelece-se nas inúmeras interacções sociais que o desenho de cidade manifesta. A modelação do conforto não se determina apenas no aspecto físico, é indissociável das respostas emocionais do lugar; a hospitalidade do espaço público urbano advém não apenas da sua materialidade objectiva mas igualmente de percepções subjectivas do lugar.
Assim se manifestam, plurais e singulares, Martim Moniz, Largo de São Domingos e Rossio, lugares transnacionais no centro de Lisboa.
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BIBLIOGRAFIA
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De Timor para o “mercado de escravos” do Martim Moniz
Diário de Notícias, 15 Outubro 2022
https://www.dn.pt/sociedade/de-timor-para-o-mercado-de-escravos-do-martim-moniz-15256196.html
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Renovar a Mouraria
https://renovaramouraria.pt/pt/mouraria/
Consultado 31.01.2023
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Este ensaio expande, nalguns segmentos, o trabalho final desenvolvido para a unidade curricular
Cidades, Migrações e Diversidade
do Mestrado de Estudos Urbanos (Iscte-IUL / Nova FCSH UNL), no ano lectivo 2022/2023 — 19v
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