#bigode e mosca
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Resenha: P.T (Playable Teaser)
Oie, eu sou a Mosca, e esse é meu primeiro post aqui.
Esse blog nasceu da vontade minha e de meu digníssimo namorado-noivo-moradoresdamesmacasa em mostrar ao mundo nossa criatividade e opiniões, como se já não tivesse o suficiente disso por aí.
E sobre o que seria o meu primeiro post? Poderia ser algo mais elaborado, que tivesse mais a ver com os meus interesses. Ou então, algo mais pensado para o algoritmo entregar ao público, como séries, jogos e filmes que estão em alta.
Ao invés disso, vou falar sobre um teaser de um jogo de terror (cancelado), lançado há 10 anos (que nem da mais pra baixar) e de uma franquia que eu só joguei 1 jogo (esse ano). Se você está lendo até aqui, não desiste de mim...
P.T, ou Playable Teaser, da mente de Hideo Kojima e Guillermo Del Toro, é na verdade um teaser jogável do que seria um novo jogo de Silent Hill, chamado Silent Hills. Eu nunca fui a maior fã de terror por ser extremamente medrosa, que dirá jogos de terror, já que não tinha nenhum console a não ser o Wii, onde tudo é fantástico e alegre. Mas mesmo assim eu já tinha ouvido falar de P.T pois na época eu já era uma rata de internet que adorava ver opiniões das pessoas sobre jogos que eu nunca joguei.
Quando comprei meu primeiro console, um playstation 4 usado e surrado que custou o dobro do que merecia, eu tentei baixar P.T. Já fazia anos que tinha lido sobre e tinha esquecido totalmente que não tinha como baixar mais. Só os consoles que não deram mole de deletar na época ainda tinham a possibilidade de jogar. Tentei baixar por curiosidade, sabia, em meu inconsciente, que ele tinha a fama de ser um dos jogos de terror mais assustadores (sabe-se lá por quê eu queria essa experiência, 2021 foi um ano esquisito pra mim). Mas não foi dessa vez que eu pude experienciar o famoso teaser.
Conto esse fato pois acho divertido como nunca deletei a notificação de "não foi possível realizar o download" do jogo. Está lá toda vez que ligo o velho ps4. Mais tarde, quando encontraria Bigode e me apaixonaria por ele em 2022, ele veria a notificação e acharia engraçado eu tentar baixar. Seria pelo console dele que eu teria oportunidade de jogar. Eu gosto como algumas coisas são espelhos das outras, pequenos foreshadows esquisitos e despercebidos da vida.
Voltemos ao jogo.
P.T tem 1 hora e meia de duração aproximadamente, mas dura uma noite inteira. Era 2022, uma madrugada qualquer e o Bigode levou o console dele pra minha casa só para me obrigar a jogar. Ele já sabia da minha fama de medrosa, e disse que eu precisava jogar P.T para ter certeza do que terror de verdade. Não precisava muito para me deixar de cabelo em pé, mas P.T vai além. Até hoje, após ter sido obrigada a experienciar muitos outros jogos de terror contra minha vontade, nenhum chegou perto em passar a sensação que fora aquelas 1 hora e meia de olhos semi-cerrados na madrugada.
A ambientação foi o que mais me pegou. O jogo iniciar em uma sala, que nós só voltaríamos a ver muito depois, nos prendendo em loop ansiogênico e sisífico que vai gradativamente se tornando mais sombrio, ensanguentado, caótico e surrealista, é um ponto que pra mim foi chave. Não teve pressa em mastigar e digerir o que estava propondo oferecer. Ao contrário, fez isso com prazerosa e dolorosa lentidão. Os puzzles para mim, na época, seriam impossíveis. Fui guiada por Bigode para conseguir fazer. Mas a tensão de ter que descobrir algo enquanto está preso nessa quase-eterna repetição é ainda mais desesperadora.
A casa onde passamos 100% do jogo tem um papel de personagem, sendo (por algum tempo) a única coadjuvante junto ao protagonista (você), mostrando seus dentes afiados em pequenos nuances, como choros de bebês esquisitos na pia, telefones que tocam sempre no mesmo horário, rádios que contam notícias em segundo plano. Parece que estamos dentro de algo vivo, uma personificação sem corpo de algo monstruoso que aconteceu ali.
A história se monta de forma não muito linear, sendo necessária não só a resolução dos puzzles, mas também pegar as informações quase subliminares dos acontecimentos do ambiente. A numeração famosa dita na rádio me perseguiu durante algumas madrugadas. Descobri posteriormente que esse mistério foi descoberto, mas na época aquilo não fez sentido pra mim, o que aumentou ainda mais a tensão e o medo.
Eu tenho forte afeto por mídias, criações e coisas em geral que não jogam explicitamente as coisas em nossa cara. Gosto da ideia de que algumas coisas não precisam fazer sentido. Mais tarde, eu teria a imensa alegria de começar a acompanhar os trabalhos de David Lynch, que faz do surrealismo e do mistério seu parque de diversões. Mas com PT foi uma das primeiras vezes que pude ter acesso a esse tipo de narrativa. Ainda mais tarde, descobriria meu diagnóstico de autista, e isso tornaria mais claro como o abstrato do mistério tem em mim uma morada ainda mais familiar.
Essa linha de respostas não ditas, sentidas e descobertas de forma gradual é extremamente satisfatória. Um dos pontos altos do jogo para mim, e que me fez gostar tanto mesmo sendo de uma temática que pra mim é muito difícil de acompanhar - lembro vocês que eu sou a pessoa mais cagona que já existiu nesse país Rio de Janeiro. Mas tenho melhorado.
Outro ponto que auxiliou para mim foi a ambientação sonora. É massacrante e extremamente cru como os sons se misturam com a narrativa, e adentram nossos ouvidos tateando e dançando ao ritmo hora compassado, hora esquizofrênico do jogo. Bigode, amante do terror e horror, fala que o principal ponto para ele sentir medo de algo é a ambientação sonora. Eu entendo o que ele quis dizer ainda mais, depois de ter jogado e visto alguns outros filmes de terror que puderam ser extremamente pavorosos, gore, esquisitos e folclóricos, mas que se explorassem mais a parte sonora, teriam tido maior impacto em mim.
Zeramos o jogo aquela noite - eu acho. Lembro que no final eu já estava com medo demais, e receosa de acordar meu pai pois já tinha soltado alguns berros em jump-scares (inclusive, NÃO olhe para trás quando for solicitado...). E P.T me marcou desde então, ao ponto que hoje sou grande fã de Silent Hill. Joguei o 3, acompanhei Bigode jogando o 2 e meu cunhado jogando o 1. Vejo valor, como psicóloga, em como o terror tem um potencial de mexer e brincar com nosso inconsciente. O medo é algo interessante, palpável e por vezes, divertido.
Com essa resenha, me despeço e reitero que hoje sou parte do fã clube kojima-lanca-esse-jogo-por-favor!!
- Mosca
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“Ode ao Gato” de Pablo Neruda
ODA AL GATO
Los animales fueron imperfectos, largos de cola, tristes de cabeza. Poco a poco se fueron componiendo, haciéndose paisaje, adquiriendo lunares, gracia, vuelo. El gato, sólo el gato apareció completo y orgulloso: nació completamente terminado, camina solo y sabe lo que quiere.
El hombre quiere ser pescado y pájaro, la serpiente quisiera tener alas, el perro es un león desorientado, el ingeniero quiere ser poeta, la mosca estudia para golondrina, el poeta trata de imitar la mosca, pero el gato quiere ser sólo gato y todo gato es gato desde bigote a cola, desde presentimiento a rata viva, desde la noche hasta sus ojos de oro.
No hay unidad como él, no tienen la luna ni la flor tal contextura: es una sola cosa como el sol o el topacio, y la elástica línea en su contorno firme y sutil es como la línea de la proa de una nave. Sus ojos amarillos dejaron una sola ranura para echar las monedas de la noche.
Oh pequeño emperador sin orbe, conquistador sin patria, mínimo tigre de salón, nupcial sultán del cielo de las tejas eróticas, el viento del amor en la intemperie reclamas cuando pasas y posas cuatro pies delicados en el suelo, oliendo, desconfiando de todo lo terrestre, porque todo es inmundo para el inmaculado pie del gato.
Oh fiera independiente de la casa, arrogante vestigio de la noche, perezoso, gimnástico y ajeno, profundísimo gato, policía secreta de las habitaciones, insignia de un desaparecido terciopelo, seguramente no hay enigma en tu manera, tal vez no eres misterio, todo el mundo te sabe y perteneces al habitante menos misterioso, tal vez todos lo creen, todos se creen dueños, propietarios, tíos de gatos, compañeros, colegas, discípulos o amigos de su gato.
Yo no. Yo no suscribo. Yo no conozco al gato. Todo lo sé, la vida y su archipiélago, el mar y la ciudad incalculable, la botánica, el gineceo con sus extravíos, el por y el menos de la matemática, los embudos volcánicos del mundo, la cáscara irreal del cocodrilo, la bondad ignorada del bombero, el atavismo azul del sacerdote, pero no puedo descifrar un gato. Mi razón resbaló en su indiferencia, sus ojos tienen números de oro.
ODE AO GATO
Os animais foram imperfeitos, compridos de rabo, tristes de cabeça. Pouco a pouco se foram compondo, fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça vôo. O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso: nasceu completamente terminado, anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro, a serpente quisera ter asas, o cachorro é um leão desorientado, o engenheiro quer ser poeta, a mosca estuda para andorinha, o poeta trata de imitar a mosca, mas o gato quer ser só gato e todo gato é gato do bigode ao rabo, do pressentimento à ratazana viva, da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade como ele, não tem a lua nem a flor tal contextura: é uma coisa só como o sol ou o topázio, e a elástica linha em seu contorno firme e sutil é como a linha da proa de uma nave. Os seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura para jogar as moedas da noite .
Oh pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria, mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas, o vento do amor na intempérie reclamas quando passas e pousas quatro pés delicados no solo, cheirando, desconfiando de todo o terrestre, porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente da casa, arrogante vestígio da noite, preguiçoso, ginástico e alheio, profundíssimo gato, polícia secreta dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo, certamente não há enigma na tua maneira, talvez não sejas mistério, todo o mundo sabe de ti e pertences ao habitante menos misterioso talvez todos acreditem, todos se acreditem donos, proprietários, tios de gato, companheiros, colegas, discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não. Eu não subscrevo. Eu não conheço o gato. Tudo sei, a vida e o seu arquipélago, o mar e a cidade incalculável, a botânica o gineceu com os seus extravios, o pôr e o menos da matemática, os funis vulcânicos do mundo, a casca irreal do crocodilo, a bondade ignorada do bombeiro, o atavismo azul do sacerdote, mas não posso decifrar um gato. Minha razão resvalou na sua indiferença, os seus olhos têm números de ouro.
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Código Q radio px e radioamador
CÓDIGO Q – SIMPLIFICADO QAP – Na escuta.QRA–NomeQRF – RefeiçãoQRG – Freqüência, Canal. QRH – Está havendo variação de freqüênciaQRI – Tonalidade de transmissão QRL – Estou ocupado, não interfira QRM – Interferência provocada por outra estação. QRN – Interferência provocada por estática. QRO – Abrir squelch ou limitador QRQ – Manipular rapidamente QRS – Manipular lentamente QRT – Parar de transmitir. QRU – Tem alguma mensagem. QRV – Estou à disposição. QRX – Aguarde um instante que chamarei QRY – Quando será a minha vez de transmitir QRZ – Quem está chamando? QSA – Intensidade de sinais (1/1- muito fraca; 2/2- fraca; 3/3- regular; 4/4- boa; 5/5- ótima). QSB – Sinal oscilando. QSJ – Relativo a dinheiro QSL – Entendido, OK. QSO – Pedido de autorização p/ contato com outro rádio QSP – Ponte, Retransmissão de mensagem para outra estação. QSJ – Dinheiro. QSY – Transmitir em outra freqüência, Mudar de canal. QTA – Mensagem cancelada. QTC – Mensagem urgente. QTH – Local, Endereço QTI – Destino exato para onde se vai QTO – Banheiro. QTU – Turno e equipe de trabalho QTR – Horas. TKS – Obrigado PTT – Botão de toque de falar. CÓDIGO FONÉTICO – INTERNACIONAL A – Alfa B – Bravo C – Charlie D – Delta E – Echo F – Fox G – Golf H – Hotel I – Índia J – Juliet K – Kilo L – Lima M – Mike N – November O – Oscar P – Papa Q – Quebec R – Romeo S – Sierra T – Tango U – Uniforme V – Victor W – Whisky X – X – Ray Y – Yankee Z – Zulu NUMERAIS
0 – Negativo 1 – Primeiro 2 – Segundo 3 – Terceiro 4 – Quarto 5 – Quinto 6 – Sexto 7 – Sétimo 8 – Oitavo 9 – Nono
* Quando o numeral tiver vários números, usa falar da seguinte maneira, por exemplo: 13 – fica assim: 1-primeiro3- terceiro, uma placa de veículo, por exemplo: ACL 8227 – fica assim A – Alfa, Charlie, L-Lima 8-oitavo, 2-2segundo, 2-segundo, 7-sétimo. GÍRIAS MAIS USADAS NOS RÁDIO PX Acoplamento – Reunião Água de eloqüência – Cachaça Ana Maria – AM (amplitude modulada) Ancorado – Parado Anel – Primo Anzol – Polícia Rodoviária Aparato – Rádio Asa dura – Avião Atrás do toco – Só na escuta Bailarina – Caneta Baixa freqüência – Telefonema Balaio – Bagunça Balançar os queixos – Modular Banda lateral – Rádio com LSB/USB Bandeira 2 – Táxi Banheira – Mar Barra móvel – Automóvel Barra náutica – Barco Basquete – Trabalho Batom – Mulher Bicorar – Pedir para falar Bigode – Homem Bigode a metro – Pessoalmente Bigodeira – Interferência Bobo – Relógio Botina – Amplificador de potência Botina branca – Médico Botina preta – Policial Botina vermelha – Bombeiro Break – Pedir oportunidade para falar Caixa preta – Rádio transmissor Câmbio espada – Transmissão muito longa Canaleta – Canal Capacete – Sogro Carga pesada – Caminhão Carga pesada bonequinha – Ônibus Carvão – Esposo Casa de beijo – Bordel ou motel Cascão superior – Camisa / Blusa Cascão inferior – Calça / calção / saia Centelha – Neto Chá de urubu – Café Chucrutar – Aumentar a quantidade de canais de um radio Chute nas canelas – Saudação cordial Chuva artificial – Banho Comer barbante – Esperar Copiar – Escutar Corujar – Ficar escutando uma conversa sem modular Cristal – Esposa Cristalina – Filha Cristalóide – Filho Cristalografia – Família Curto circuito – Briga Desligar os filamentos – Desligar o rádio DX – Contato distante Esparadrapo – Irmão Feijão queimado – Amante Feiticeiro – Técnico de radio Fio Maravilha – FM Fundo de poço – Estação com um sinal fraco Gordurames – Comida Grega – Viagem JC – Jesus Lambari – Estação fraca Levanta a Saia Baiana – LSB Loura suada – Cerveja Macaco preto – Telefone Macanudo – Colega, Camarada Maria mole – Antena móvel mais tradicional da faixa Modular – Falar, Ação (ex: modular uma loira suada = beber uma cerveja) Mosca branca – Zona de silêncio Munheca ou Munheca de pau – Principiante Munhecada – Errar, Mancada
Nave – Portaria Okapa – Tudo certo Orelha – Vizinho Papai Noel – Anatel Pára-raio – Sogra Pé de borracha – Carro Pé de ferro – Trem Pé de pato – Navio Pé de sola – A pé Perneta – Amigo, Colega Pernetinhas – Filhos, Crianças Pirambeira – Sair, Desaparecer Pitimbado – Doente, Quebrado Portadora – Transmissão sem áudio Primeiríssima – Mãe Primeiríssimo – Pai PX maior – Deus QTH de descanso – Residência Recarregar as baterias – Almoçar, Jantar, Comer… Reco-reco nas costelas – Abraço Roger – Entendido (usado nos 11 metros como cambio) Santiago – Sinal Tapete branco – Papel Tapete preto – Asfalto Terezinha de Vasconcelos – TV (televisão) TKS – Obrigado Trapisunga – Aparelhagem Tudo nos contentos – Tudo bem Tudo nos descontentos – Tudo mal Turmalina – Namorada Tubarão – Estação forte Unidade Móvel – Veículo Urubu Sai de Baixo – USB Vertical – Conversa pessoal 2 metros – Dormir 2 metros horizontais – Cama 51 – Aperto de mão 55 – Felicidades 73 – Abraço 88 – Beijo DIVISÃO E IDENTIFICAÇÃO DAS REGIÕES DO BRASIL PX/PY 1 – 1ª Região – Rio de Janeiro e Espírito Santo PX/PY 2 – 2ª Região – São Paulo PX/PY 3 – 3ª Região – Rio grande do Sul PX/PY 4 – 4ª Região – Minas Gerais PX/PY 5 – 5ª Região – Paraná e Santa Catarina PX/PY 6 – 6ª Região – Bahia e Sergipe PX/PY 7 – 7ª Região – Alagoas, Ceará, Pernambuco, Paraíba, e Rio Grande do Norte PX/PY 8 – 8ª Região – Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Pará, Piauí, Roraima e Rondônia PX/PY 9 – 9ª Região – Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, F. Noronha e IlhasNo indicativo do Rádio a região a qual ele pertence é indicada pelo numero após as letras
PX ou PY.Ex.: PX 2 G 1234 – 2ª Região – São Paulo
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Ode ao gato - Pablo Neruda
(Navegaciones y Regresos, 1959)
Os animais foram
inacabados,
longos de cauda, tristes
de cabeça.
pouco a pouco foram-se
formando,
tornando-se paisagem,
adquirindo sinais, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser somente gato
e todo o gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde pressentimento a ratazana viva,
desde a noite escura até aos seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa única
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu,
das telhas eróticas,
o vento do amor
na tempestade
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de tudo o que é terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
das habitações
insígnia
de um
veludo já desaparecido,
certamente não há
enigma nesse teu modo,
não és talvez mistério,
todo o mundo te conhece e tu pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se creiam donos,
proprietários, tios,
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não concordo.
Eu não conheço o gato.
Eu tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
as depressões vulcânicas do mundo,
a pele irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
têm seus olhos números de ouro.
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O “Relógio Derretido” de Salvador Dalí e Surrealismo - Parte 2
TÉCNICA
TEMÁTICA
Essa obra de arte representa um tempo que passa de forma diferente. Por conta dos ponteiros derretidos, essa obra de Dalí traz uma noção distorcida dos segundos. A distorção dos relógios derretidos podem ser interpretados como impotência sexual, assunto esse que o artista também trabalha em outras obras. Dalí criou um elo entre a sexualidade e o tempo, ele criou isso por meio da consistência do objeto.

As formigas no relógio: só estão presentes em um único relógio, relógio esse que não está derretido. Essas formigas estão relacionadas à putrefação nas suas obras. O objeto retratado na arte era desprezado por Dalí e pela vanguarda surrealista. Eles acreditavam que a arte representativa estava cada vez mais decadente. Acreditavam também que a pintura havia tomado o lugar da arte surrealista, logo, a solução que eles encontraram foi deformá-lo, buscando novos modos de representar ele. Essa transfiguração do relógio feita por Dalí, nos faz perceber a importância desse pequeno objeto em nossas vidas, já que, ele é o responsável por marcar, dar o passo do nosso dia e dos nosso compromissos.

Mosca sobre o relógio: o inseto simboliza a passagem dos ciclos, apenas nos confirma que o artista trata sobre tempo nessa obra. E ainda nos faz lembrar que o "tempo voa", de maneira variável para cada indivíduo.

A árvore seca: retratada nesta obra de arte é uma oliveira, árvore essa que é muito comum na terra onde nasceu Salvador Dalí, a Catalunha. Ela aparece no quadro como uma estrutura de sustentação de um dos relógios. O fato da árvore estar completamente ressecada nos faz pensar sobre os ciclos da natureza, e pelo tempo da vida.

Caricatura do autor: nesse quadro Dalí explorou a noção subjetiva do tempo. O autor pintou a própria figura dormindo debaixo de um dos relógios derretidos. Ele não pintou esse quadro com o tempo real, mas sim com o tempo inconsciente. Sabe-se que as teorias da psicanálise de Freud influenciaram Dalí na pintura desse quadro, segundo o qual "o sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”. Neste quadro a temporalidade está em outro plano e a busca de Dalí pelo inconsistente está refletida no quadro pela sua caricatura que está dormindo. Nesta caricatura também percebemos que o seu corpo foi pintado de uma maneira disforme, como por exemplo os seus olhos que estão com grande cílios. Também podemos perceber que perto do nariz existe um elemento orgânico, o que pode ser interpretado como língua, o que nos traz a sensação de que o corpo está se configurando como é próprio do universo dos sonhos.
INFLUÊNCIA
No Brasil, não houve um intenso movimento surrealista, porém alguns artistas, como Ismael Nery (1900-1934), Cícero Dias (1907-2003) e Tarsila do Amaral (1886-1973), foram influenciados pelo movimento artístico.
DEBATES
Existiu um debate forte sobre o Surrealismo, no fim da 2º Guerra Mundial o movimento artístico foi considerado pela população um “acidente” sem valor, mas em 1950, o movimento foi reconhecido sendo um dos importantes e marcou não apenas a pintura, mas também a escultura, o teatro, a literatura e o cinema.
CURIOSIDADE
Salvador Dalí como todos já sabem, também é famoso pelo bigode, sua marca registrada, Dalí foi muito lembrado porque os personagens da série espanhola de sucesso da Netflix, La Casa de Papel usaram máscaras com o rosto do pintor.

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Tacca Chantrieri - Flor Morcego

Nome Científico: Tacca chantrieri Nomes Populares: Flor-morcego, Planta-morcego, Orquídea-morcego, Flor-negra, Bigodes-de-gato Família: Dioscoreaceae Categoria: Flores, Flores Perenes Clima: Equatorial, Subtropical, Tropical Origem: Ásia, China, Malásia, Oceania, Tailândia Altura: 0.6 a 0.9 metros Luminosidade: Luz Difusa, Meia Sombra, Sombra Ciclo de Vida: Perene
Sobre a Tacca Chantrieri
Tacca Chantrieri possui flores que se assemelham a um morcego, tanto no formato quanto nas cores escuras, daí o seu nome! Flor de visual extremamente exótico, negro quase total com "antenas" que podem atingir 20 cm, também pretos que emprestam uma composição diferente de outras espécies ornamentais. Tacca Chantrieri conhecida como Flor Morcego A Flor Morcego que também é conhecida como Bat-Flower ou Flor Negra, é a Tacca Chantrieri, da família das Taccaceae, originária da Malásia, cuja característica principal é a sua semelhança a um morcego, com as suas pétalas principais de cor entre o roxo escuro e o preto a fazerem parecer as asas de um morcego em pleno voo.

Planta-morcego cresce em solo asiático A cor negra é raríssima entre as flores. A exótica Tacca chantrieri cresce em solo asiático e ficou conhecida como “flor morcego”. Durante algum tempo, pensou-se que o seu aspecto sombrio atraía moscas polinizadoras, à procura de matéria orgânica em decomposição. Mas não é o caso: a espécie vive muito bem sozinha (autofecundação). Estas flores exóticas não tem qualquer perfume e as suas “antenas” que saem de dentro da flor podem atingir os 20 centímetros de comprimento. A propagação é feita por sementes e a terra precisa de ser rica em nutrientes e sais minerais. Pode ser cultivada em vasos ou directamente no solo, florescendo várias vezes durante o ano. A flor morcego não tolera sol muito forte, sendo que à meia-luz é que se desenvolve melhor e mais depressa.

No paisagismo a Orquídea-morcego é ideal para áreas sombreadas em locais de clima quente e húmido. No entanto é bem mais valorizada quando cultivada em vasos e jardineiras, adornando varandas, salas de estar, escritórios, etc. É possível cultivá-la em locais de clima temperado, desde que possa ser levada para ambientes protegidos como dentro de casa ou estufas húmidas. As plantas sadias crescem produzindo novas mudas, já se as condições de cultivo não forem atendidas ela declina lentamente. Assim, o seu cultivo é considerado difícil, não sendo indicada para jardineiros iniciantes. Aqueles que pretendem tentar reproduzir esta planta a partir de sementes, terão que se armar com muita paciência, pois a germinação pode ocorrer em um período de tempo entre 1 e 9 meses, dependendo das condições climáticas. O cuidado e atenção especiais que se deve ter desde o início do preparo das sementes até os primeiros meses de vida das mudas, fazem da semeadura de Tacca chantrieri um verdadeiro e desigual desafio com a natureza que às vezes com um pouco de sorte, você consegue ganhar. https://youtu.be/V3SQIrwid2g Replante a cada 2 ou 3 anos para renovar o vigor da planta. Multiplica-se por sementes e por separação das mudas formadas em torno da planta mãe. Plantas formadas a partir de sementes levam de 2 a 3 anos até iniciar o florescimento. É amplamente utilizada como uma planta de interior em espaços bem ventilados e quentes. O maior cuidado que precisa é a rega e manter a humidade. Terra Deve ser rico em matéria orgânica, com boa capacidade de filtração de água. Assim pois: Cultivo em vasos: adicione uma primeira camada de argila e, em seguida, misture cobertura morta com substrato de 20% para plantas ácidas. Cultivo de jardim: o solo deve ser fértil, leve, bem drenado e um tanto ácido (pH entre 5 e 6.5). Se a sua não for assim, e por se tratar de uma planta relativamente pequena, faça uma cova de plantio de cerca de 50 x 50cm, cubra suas laterais com tela de sombreamento e preencha com a mistura dos substratos citados acima. Read the full article
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A chuva
Um dia sem novidades. Enfiei a mordaça. Caminhei até ao Tejo a passo estugado com ar de grandes propósitos. O Terreiro do Paço andava às moscas. Avancei pela Ribeira das Naus. Chutei com a biqueira a arte urbana entre o muro e o rio. Esculturas efémeras. Seixos uns por cima dos outros em equilíbrios improváveis. Meti alguns nos bolsos do casaco cinzento. Reparei num cagalhão constelado de milho. Concluí que as moscas estavam mais interessadas no Terreiro o’ Paço. Avancei para a água. Escorracei uma gaivota que me queria roubar o bigode. A água cheirava mal. Saí. Voltei. Pus musiquinha. Mahler de Morte em Veneza. Beijoquei o retrato de meu ídolo e mestre Rudy Giuliani. Pintei o cabelo de verde uma trabalheira. Liguei a televisão. Tentei ver um filme artsy-fartsy sobre um velhadas de semblante carregado a caminhar na margem de um rio setentrional. Era careca. Esta cor não me fica bem. Amanhã vou roubar um frasco de petróleo Olex.
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- 100 mil professores foram a Lisboa protestar, ou como diria a professora que disse que 2012 foi há 20 anos… 10% da população portuguesa foi a Lisboa protestar.
- Semana muito forte ao nível de mortes no mar, mortos em marinas, portos de abrigo e praia do peneco, mas em Portimão até já chegam à costa cremados e dentro da urna. E eu nem estou a gozar.
- Dosear 50 mililitros de produto por cada litro de água, e aplicar suavemente na superfície… Ah desculpem… estava a ler o rotulo do detergente.
Sejam muito bem-vindos a mais um semanário especial de informação do mar… ou disto. Aqui, onde as noticias são como albufeira no inverno, muito potencial mas ficam-se pelas moscas.
Isto é que foi mais uma semana cheia de acontecimentos, que uma pessoa escreve isto ao domingo, e quando chega à quinta-feira já aconteceram mais trapalhadas do que naqueles programas de apanhados do Nuno Graciano. Por onde começar? Se calhar pelo governo? Não… do governo já ninguém pode ouvir falar… Então pela invasão dos três poderes do brasil… oh, mas isso já toda a gente percebeu… Já sei! Começa-se pela biografia do príncipe Harry, então vá, trate lá de ir buscar uma boa cerveja, um pires de tremoços que a coisa é engraçada. Então o Príncipe… príncipe não, o Duque de Sussex Harry lançou uma biografia em que conta os segredos da monarquia, que é uma coisa que não sei porquê, em Portugal bate bué… Talvez porque o mais próximo que temos de rei é um marreta de bigode com voz de espanador de limpar o pó, então a malta à falta de rei, vira-se para Inglaterra. Enfim, diz o rapazinho na biografia que foi uma criança oprimida, pelo irmão mais velho e pelo pai tirano, que sofreu muito no meio da sua vida de luxo… até estou emocionado, isto está a duas linhas de se tornar no guião de uma comédia portuguesa dos anos 20 com o António Silva. “Deste, já não há mais…” É que parece que o Rei Carlos fazia o pino em cuecas, o que do meu ponto de vista é claramente uma situação de maus tratos infantis e violência doméstica. E agora o Harry veio meter a boca no trombone e pedir ao candeeiro se lhe dava um bocado de lume, para atear as calças do pai. Não sem antes lhe perguntar: “Ó Evaristo? Tens cá disto?” Foi um violentado este Harry, diz que as tias que lhe pagaram os estudos não o deixavam andar na Tuna e que até foram lá ao colégio uma vez e o obrigaram a tirar o chapéu a mando do pai, claro que Harry depois de dizer que “Chapéus há muitos… seu palerma” ao Carlos ela o obrigou a ir ao mercado chamar a Rosa, porque a filha tinha chegado do brasil… E depois apareceu o Marcelo lá no meio a gritar “É milagre, é milagre…” Não é nada Marcelo, é palheto, e o costa a chorar que só queria que lhe saísse um branquinho… Claro que depois desta história toda o ouvinte pensa que não percebeu nada, a verdade é que nem eu caro ouvinte, nem eu… “Ó relestina, vamos embora… que isto foi tudo uma grande aldrabice.”
O nosso repórter foi ali fora ver do coiso, que parece que aconteceu uma cena não sei onde e houve lá qualquer coisa.
Pronto, mas inevitavelmente temos de falar do governo, porque depois de uma semana muito forte ao nível de ministros, e de outra fortíssima no que toca a secretários de estado, agora chegou a versão hardcore, Autarquias! Ah pois é meus amigos, de norte a sul, a regionalização faz-se também ao nível da alegada corrupção. E até a nossa querida Tia Fura-Filas Isilda está de volta ao circo da alegada trafulhice! A malta do Norte parece que ainda não aprenderam a lição com os Pintos, os Felgueiras, e os Loureiros desta vida, e continuam muito fortes ao nível destas noticias de favorecimentos, luvas, gorros e outras peças de vestiário. Parece que o autarca de espinho foi detido no âmbito da operação vortex, e também o ex-autarca. Alegadamente receberam Luvas para favorecer uns negócios da construção ou o que é, eu pessoalmente acho que se recebessem dinheiro era mais motivo para irem presos, mas pronto, pelo sim pelo não, eu não quero receber mais meias no natal, não vá receber meias tornar-se crime. Entretanto e mais a sul, parece a Super Drª Autarca a Tia Isilda voltou à ribalta, a nossa coqueluche do mar ou disto, volta a ser falada por aqui depois de uns meses de ausência, porque, e aqui nem é alegadamente, é mesmo verdade, atribuiu 175 mil euros em Ajustes diretos ao Carlos Pacheco que era candidato da sua lista nas ultimas eleições. Portanto, mais um caso de ligação e supostos favorecimentos… Mas será assim tão difícil encontrar algum político que não tenha um amigo, irmão, primo afastado ou o raio, com uma empresa que por acaso é a única com aquele tipo de serviço? Faz lembrar o outro que queria instalar cabines telefónicas na vila, porque o primo tinha uma fábrica de telefones e a mulher era a única que vendia os créditos para as chamadas. Irra… é isso e padres, agora além dos escândalos de pedofilia também há escândalos de alcoolémia. E temos aqui o campeão dos escândalos, O padre Luís Miguel Costa, que está acusado de envolver-se sexualmente com um rapaz de 14 anos, durante um convívio numa adega em Viseu, foi apanhado a conduzir com uma taxa-crime de 2,46 de álcool no sangue. Este senhor padre além de abusar de crianças também abusou do sangue de cristo… e leva 600 euros de multa, ora muito bem! Vá lá que não foi abrir uma tocha a ver a bola, senão eram logo 5 anos de prisão.
Na nossa já famosa rubrica que anda pelos caminhos das redes sociais, onde há muito herói do sofá que escreve tão bem, como um calhau do escarpão, e eu faço questão de ler como está escrito. Esta semana o nosso herói do sofá teve para ser a professora que segurou o cartaz a dizer Desilução, mas afinal é Bruno Gonçalves que quer impor ou repor a ordem, não percebi bem…
“Nem foi consigo, não veijo a necessidade de chamar nomes as pessoas, se for ao contrariu ou algum filho o parente secalhar não gosta.”
Noutra nota, parece que foram invadidas as sedes dos poderes em Brasília. Uma cópia da invasão ao capitólio, que como se sabe, correu tão bem. E já se sabe que quando as coisas correm bem, é fazer igual… A diferença é que já sabe que o pessoal no brasil é muito mais organizado e ia correr melhor ainda, e claro que correu. Principalmente aquela parte em que um gajo decide abrir uma boca de incêndio no andar de cima e um gajo cá em baixo a dizer “Olha só gente, está chovendo cá dentro, é claro que este governo é corrupto!” Foi isso e o outro a defecar em cima de uma mesa, a ser filmado enquanto alguém narra que Deus está do nosso lado. Pois eu se fosse deus, omnipresente, podendo estar em todo o lado, o que eu mais escolhia era estar a ver um brasileiro a cagar numa gaveta, mas sem dúvida que era um plano muito agradável para passar um domingo à tarde. Entre isso e a Luciana Abreu a dizer piadas sobre Armação de Pêra no Domingão em Loulé, é que nem pensava duas vezes… Esta gente fez tudo tão organizado que só faltava terem feito um questionário aos invasores antes de ir, perguntavam ao nosso governo como se faz… Umas 34 perguntas chegavam, Já invadiu alguma vez? Quantas janelas já partiu na vida? Já levou com alguma bala de borracha? E ao nível de fazer cócó em mobiliário de escritório como estamos? Era tudo muito mais simples, e depois para implementar isto tudo tínhamos de mandar para lá a Ministra da Presidência e a da Coesão Territorial fazer uns workshops, assim como assim ninguém sabe muito bem o que elas fazem por cá… Assim iam lá ensinar a fazer questionários no Word. Não as deixem é levar nenhum primo dos maridos ou alguma irmã ou assim…
Foi mais um semanário especial de informação do mar ou disto… esperamos que tenha uma semana melhor que a do nosso estagiário que foi apanhado a conduzir com colestrol no sangue e álcool no pára-brisas.
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As ruas de Gebelim ficaram desertas. Apenas o Senhor-Que-Chega-Sempre-Atrasado caminhava em direção à porta do Teatro Principal. Nos beirais do edifício, cães, gatos, gaivotas e pombas discutiam os melhores lugares junto das frinchas e janelas.
Centenas de olhos curiosos espreitavam o Mágico sentado nos bastidores, enquanto no palco o apresentador anunciava:
- Senhoras e senhores! Chegou à nossa querida cidade o espectáculo mais aguardado, o mais inesperado, o mais extraordinário, que por onde passa deixa toda a gente de boca aberta! Senhoras e senhores: “O Mágico e o Coelho que sai da Cartola!”
- Fez-se ouvir um coro de palmas na sala apinhada de gente.
O Mágico levanta-se, pega cuidadosamente na cartola, despe-a do lençol branco e apruma o casaco. O Coelho escovava o pêlo, preparando-se também ele para o grande momento.
Até aqui tudo corria normalmente e nada fazia prever o que viria a acontecer.
Desde que se conheceram – um dia – o Mágico e o Coelho nunca mais se perderam; onde se via um via-se o outro. Juntos, já haviam girado três vezes pelo mundo, deixando histórias para contar e um encantamento no ar.
Na magia há uma cartola, que toda a gente vê, está vazia. Depois de a cobrir, o mágico diz “perlimpimpim!” E para espanto de quem assistia, era o Coelho que de lá saía. Fossem cem ou fossem mil, todos ficavam de boca aberta!
Mas desta vez, em Gebelim, não aconteceu logo assim.
No palco, já as luzes se acendiam e as cortinas já se abriam, quando se ouviu:
- Hoje não me apetece. Estou farto de aparecer e desaparecer. Vai tu! É sempre a mesma coisa – refila o Coelho, ao mesmo tempo que cruza as patas.
- Não podes fazer isso – aflige-se o mágico - milhares de pessoas esperam ficar de boca aberta, não as podemos desiludir… Sem ti nada acontece! Por favor!
Mas o Coelho já baixara as orelhas. E quando assim é, não há nada nem ninguém que faça um coelho mudar de ideias. E este era bem teimoso!
Entretanto, as cortinas abriam e fechavam, confusas que estavam. Os espectadores retorciam-se, bufavam, debruçavam-se sobre as costas da cadeira tentando chegar com as pontas dos dedos ao chão. Na primeira fila, uma cabeça de chapéu engraçado sussurrava ao ouvido do lado:
- Alguma coisa se está a passar! Estamos aqui há tanto tempo e o que está no palco não pára de tirar macacos do nariz. Eu paguei para ver um coelho sair da cartola!
Pois é! O apresentador, apercebendo-se da agitação, entretinha o público como podia e sabia. Na altura, coitado, outra coisa não lhe passou pela cabeça!
O Mágico, envergonhado, tentava a todo o custo enfiar-se na cartola.
Anunciava-se um escândalo em Gebelim!
Até que o Coelho vendo o amigo assim, de cabeça para baixo, dá um passo à frente, arrebita os bigodes, e diz:
- Quando estou dentro da Cartola e fecho os olhos, sonho sempre o mesmo sonho em que os coelhos brincam como as folhas onde sol se vai encostar e que o vento faz saltitar. Tu também lá estás: és o coelho sempre em pé! Se me levares lá…
- Claro que te levo – promete o Mágico, interrompendo o amigo com um forte abraço – nem que seja longe deste mundo onde dizem não haver chão para assentar os pés e tudo flutuar como flutuam as nuvens.
Foi assim que a dupla entrou em palco e o espetáculo aconteceu! O sucesso foi estrondoso. Os aplausos duraram quase uma hora e as bocas abertas foram tantas e tanto tempo demoraram a fechar-se que durante uma semana as moscas desapareceram de Gebelim.
O presidente da câmara, um senhor bem aprumado, subia ao palco para cumprimentar “esta dupla tão original”, e já o Coelho apressava o companheiro:
- Vamos, vamos, não podemos perder tempo!
E assim foram os dois; um a saltitar, o outro de cabeça no ar. A cartola chegaria depois, encaminhada pelo vento que soprava junto ao chão.
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O cinturão invisível de Pessoa
O som do violino vinha de longe. Como se estivesses noutro lugar a tocá-lo e não onde realmente te encontravas. Acontecia-te muitas vezes esse migrar dos pulmões para fora da respiração, ou esse migrar da expressão mais íntima para fora do rosto. Existias tanto do outro lado da praça, como no fio melódico das moscas que assaltavam o vidro da janela, junto à mesa onde os teus pais te tinham levado para almoçar. O restaurante Irmãos Unidos tinha dois pisos e, na parede da frente, o quadro de Almada Negreiros dominava os olhos fechados com que o tempo insistia em parar. A curva semelhante à de uma parábola definia o rosto de Fernando Pessoa e sugeria ser uma máscara colada à testa, por baixo do chapéu de abas. A luz alaranjada cobria todo o corpo por trás, ao mesmo tempo que transpunha o tampo da mesa em forma de traço descontínuo. O cenário geométrico desafiava tudo o resto a dançar: a caneta, a chávena de café, a revista Orfeu 2, o cigarro, o lenço, o papillon e o pequeno bigode. A recta directriz com que cingia o olhar através dos óculos, duas lentes elípticas embaciadas pelo torpor, quem sabe se pela flecha vazia de um dardo. Ficaste impressionado com a vulnerabilidade do mistério, era como se ele gravitasse à volta daquelas cores e parecia até fácil agarrá-lo com a ponta dos dedos. Coisa egípcia, pensaste, pois vagueavas ainda com o talismã dos faraós na tua memória, matéria recente das aulas de história no liceu. Três anos mais tarde, em Janeiro de 1970, o quadro, executado em Bicesse no mês e no ano em que tu nasceste, viria a ser vendido no leilão do recheio do café-restaurante por mil trezentos e cinquenta contos. Algum tempo depois, Sarah Affonso revelou que a obra fora pintada no quintal, num sítio onde a luz coada pela ramagem era quase perfeita. Após mais de um século de história, os Irmãos Unidos, presentes na literatura de Camilo ou de Fialho de Almeida, passaram tristemente o testemunho à Camisaria Moderna que teve assim a possibilidade de alargar as suas instalações no Rossio. Continuaste a lutar com o bife e com o ovo estrelado, enquanto afastavas as moscas do prato e sempre a escutar os sons agudos que provinham afinal do olhar do poeta que nunca mais te largou o cinturão invisível. Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma. Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”. Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites). (texto extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)
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Avenida Niévski
“Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo; para essa cidade ela representa tudo. Com o quê não brilha essa rua – beldade de nossa capital? Sei que nenhum dos pálidos funcionários públicos que a habitam, trocaria a avenida Niévski por qualquer vantagem que fosse. Não só quem tem vinte e cinco anos de idade, lindos bigodes e sobrecasaca admiravelmente benfeita, mas até quem tem pelos brancos que repontam no queixo e a cabeça lisa como uma travessa de prata se entusiasma com a avenida Niévski. E as senhoras! Ah, para as senhoras, a avenida Niévski é ainda mais agradável. Mas para quem ela não é agradável? Basta entrar na avenida Niévski para sentir o aroma de um passeio. Mesmo que tenhamos algum assunto urgente e incontornável, ao entrar na avenida certamente esqueceremos tudo. Aqui é o único lugar onde as pessoas aparecem não por necessidade, um lugar para onde são atraídas não por uma obrigação, nem pelo interesse comercial, que arrebata Petersburgo inteira. A pessoa que se encontra na avenida Niévski parece menos egoísta do que nas ruas Morskaia, Gorókhovaia, Litiéinaia, Mechánskaia e em outras ruas onde a ganância, a cobiça e a necessidade se manifestam nos pedestres e nas pessoas que passam em carruagens e em caleches abertas. A Avenida Niévski é a via de comunicação obrigatória de Petersburgo. Aqui, o morador de Petersburgo ou de Víborg, que há alguns anos não revê um amigo de Piéski ou do portão de Moscou, pode estar seguro de que o encontrará sem falta. Nenhum guia de ruas e nenhuma agência de informações fornece notícias tão confiáveis como a avenida Niévski. A todo-poderosa Avenida Niévski! A única alegria do pobre num passeio em Petersburgo! Como são limpas e varridas suas calçadas e, Deus, quantos pés deixaram nelas seus rastros. A bota suja e malfeita do soldado reformado sob cujo peso até o granito parece rachar, e o sapatinho em miniatura, leve como fumaça, da jovem senhorita que vira a cabecinha para as vitrines reluzentes das lojas assim como o girassol se vira para o sol, e o sabre tilintante do sargento-mor cheio de esperança, que o arrasta raspando com força no chão – todos descarregam sobre ela o poder da força ou o poder da fraqueza. Que veloz fantasmagoria se cumpre aqui no decurso de um só dia! Quantas mudanças ela sofre em apenas vinte e quatro horas! Comecemos pelo início da manhã, quando Petersburgo inteira sente o cheiro dos pães quentes, saídos do forno, e está cheia de velhas de vestidos e casacos esfarrapados que cumprem sua ronda pelas igrejas e atrás dos passantes piedosos. Nessa hora, a avenida Niévski está vazia: os gordos proprietários das lojas e seus balconistas ainda dormem em seus camisolões holandeses ou ensaboam sua honrada bochecha e bebem o café; os mendigos reúnem-se nas portas das confeitarias, onde um sonolento Ganímedes, que ontem voava como uma mosca para servir o chocolate, arrasta-se com uma vassoura na mão, sem gravata, e arremessa para eles pasteizinhos ressecados e restos de comida. Pessoas necessitadas arrastam-se pelas ruas: às vezes, passam mujiques russos, afobados para chegar ao trabalho, de botas tão sujas de cal que nem mesmo o canal Ekatierínski, famoso por sua limpeza, seria capaz de lavá-las. Nessa hora, habitualmente, não convém que as senhoras saiam, porque o povo russo gosta de empregar expressões tão brutas como certamente elas não ouvem nem no teatro. Às vezes um funcionário sonolento arrasta-se com uma pasta debaixo do braço, caso a avenida Niévski esteja no caminho de sua repartição. Pode-se afirmar com segurança que nesse horário, ou seja, antes do meio-dia, a avenida Niévski não é a meta de ninguém, serve apenas de meio: aos poucos, enche-se de pessoas que têm seus afazeres, suas preocupações, seus aborrecimentos, mas que não pensam nela em absoluto. Um mujique russo fala de uns tostões, ou de sete moedinhas de cobre, um velho e uma velha agitam as mãos ou falam sozinhos, às vezes com gestos muito impressionantes, mas ninguém lhes dá ouvidos nem zomba dele, exceto alguns meninos de casaquinhos coloridos, que correm como raios pela avenida Niévski, com frascos vazios ou sapatos engraxados nas mãos. Nessa hora, não importa como você esteja vestido, ainda que, em vez de chapéu, traga um quepe na cabeça, ainda que a gola se apresente distante demais da gravata – ninguém repara nisso.
Ao meio-dia, preceptores de todas as nacionalidades fazem incursões na avenida Niévski, com seus pupilos de golas de cambraia. Johnsons ingleses e Kockes franceses caminham de braços dados com os pupilos confiados a seus cuidados paternais e, com uma seriedade decorosa, explicam-lhes que as tabuletas penduradas acima das lojas servem para que, por meio delas, se possa saber o que há dentro de cada loja. As governantas, misses pálidas e eslavas rosadas, caminham imponentes atrás de sujas menininhas irrequietas e ligeirinhas, ordenam que levantem um pouco mais os ombros e mantenham-se eretas; em suma, nessa hora, a avenida Niévski é a avenida pedagógica Niévski. Porém, à medida que se aproximam as duas horas, reduz-se o número de preceptores, pedagogos e crianças: são substituídos por pais carinhosos, que andam de braço dado com suas companheiras coloridas, variegadas e de nervos fracos. Pouco a pouco, vêm lhes fazer companhia todos os que terminaram seus importantíssimos afazeres domésticos, tais como: conversar com o médico sobre o tempo e sobre uma espinhazinha que nasceu no nariz, informar-se da saúde dos cavalos e dos próprios filhos, que de resto demonstram grandes talentos, ler um cartaz e uma importante matéria no jornal sobre quem está de partida e quem está chegando, e por fim tomar uma xícara de café e de chá; a esses somam-se as pessoas a quem uma sorte invejável contemplou com o abençoado título de funcionário para missões especiais. A esses vêm juntar-se também os que trabalham no Ministério do Exterior e se distinguem pela nobreza de suas ocupações e hábitos. Deus, como são belos os cargos e as funções públicas! Como elevam e comprazem a alma! Contudo, ai! não sou um servidor e me é vedado o prazer de ver o fino tratamento que os superiores dedicariam a mim. Tudo o que você encontra na avenida Niévski é repleto de decência: homens de sobrecasacas compridas, com as mãos enfiadas nos bolsos, mães de chapeuzinhos e redingotes de cetim cor-de-rosa, branco e azul-claro. Aqui, você encontra suíças singulares, que, com uma arte extraordinária e admirável, passam por baixo da gravata, suíças aveludadas, acetinadas, negras como a zibelina ou o carvão, mas, ai, elas pertencem a só um departamento do Ministério do Exterior. Aos funcionários de outros departamentos, a Providência recusou as suíças ruivas. Aqui, você encontra bigodes prodigiosos que nenhuma pena, nenhum pincel conseguiu retratar; bigodes aos quais se consagra a melhor metade de uma vida – objeto de zelos demorados, durante o dia e durante a noite, bigodes em que se derramaram os aromas e os perfumes mais maravilhosos e que foram untados com toda a sorte de cremes caríssimos e raríssimos, bigodes que à noite são enrolados num fino pergaminho, bigodes a que seus possuidores insuflam a mais tocante afeição e que os transeuntes invejam. Milhares de tipos de chapéus, de vestidos, de lenços – coloridos, leves, aos quais suas proprietárias se mantêm apegadas por vezes ao longo de dois dias inteiros – deslumbram qualquer pessoa na avenida Niévski. Parece que todo um mar de borboletas de repente se ergue dos caules e ondula como uma nuvem brilhante acima dos besouros negros do sexo masculino. Aqui, você encontra cinturas como jamais sonhou: cinturas fininhas, estreitinhas, em nada mais espessas do que o gargalo de uma garrafa; ao encontrar uma delas com o cotovelo de maneira descuidada e descortês; nosso coração é dominado pela timidez e pelo medo de que, por algum descuido, uma simples respiração possa despedaçar a mais encantadora obra da natureza e da arte. E que mangas de roupas de senhoras encontramos na avenida Niévski! Ah, que encanto! São um pouco parecidas com duas esferas de balão a gás, como se a senhora fosse erguer-se no ar de repente, caso o marido não a segurasse; pois é tão fácil e agradável erguer no ar uma senhora como levar à boca uma taça cheia de champanhe. Em parte alguma, ao se encontrarem, as pessoas cumprimentam-se com tanta nobreza e desembaraço como na avenida Niévski. Aqui, você encontra um sorriso único […]“
Avenida Niévski - Nikolai Gógol

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O homem quer ser peixe e pássaro, A serpente queria ter asas, O cachorro é um leão desorientado às vezes, O engenheiro quer ser poeta, A mosca estuda para ser andorinha, O poeta tenta imitar a mosca, Mas o gato, o gato só quer ser gato. E todo gato é gato, Do bigode até o rabo, Do pressentimento ao rato vivo, Da noite até seus olhos de ouro. PN. (em Brasília DF - Capital Do Brasil.) https://www.instagram.com/p/B6mkbV9FEF9/?igshid=jnzkawvs6ebc
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Outubro (Halloween)
Melinda distribuiu as cartas sobre a mesa, com as faces para baixo. Apoiou o queixo sobre as mãos cruzadas e as olhou demoradamente.
Com cuidado, desvirou a carta do meio e fitou o desenho que ela agora exibia. Seu semblante congelou por alguns momentos. Ela sabia bem o que aquela carta significava.
Que Lunna receberia uma visita inesperada.
***
A Rua das Gameleiras estava em silêncio absoluto naquele dia. Nada se ouvia além dos pios de uma coruja ao longe, e do arrastar das solas das pequenas botinhas de Lunna contra as pedras do calçamento.
Apesar do nome no plural, na entrada da rua só havia uma árvore muito, muito grande, uma gameleira centenária, de tronco grosso, com seus galhos e ramos descendo aos montes até o chão.
É sabido que quanto mais galhos pendurados em uma árvore dessas, mais velha ela é. Essa era tão grande e cheia de cipós, que nem um gigante conseguiria abraçá-la, quanto mais Lunna com seus bracinhos magrelos.
A garotinha andava calmamente pela calçada, com sua saia de tule roxa e preta esvoaçando no vento primaveril, suas meias listradas que iam até o joelho, e as botas de cadarço favoritas.
O cabelo estava preso em duas tranças cujas pontas ostentavam lindos laços de fita, e na cabeça trazia um chapéu pontudo, com estampa de pequenas estrelinhas douradas e prateadas.
Carregava um baldinho em formato de caveira, a alça passada pelo braço, cheio de doces de muitos tipos. A colheita desse ano tinha sido bem melhor que a do ano passado.
A Rua das Gameleiras era muito comprida. As casas ali não tinham gramados, apenas calçadas de pedra; e também não tinham caras felizes, ao contrário. Suas portas e janelas criavam feições de mau humor e tensão.
A maioria das fachadas estava desbotada e com lascas de tinta penduradas. Os portões enferrujados gemiam, acordados pelo vento, e vez ou outra um estalo ressoava pela rua, de um galho se partindo em algum lugar ao longe, ou algum móvel se encolhendo de frio por causa da brisa gelada que soprava de mansinho vinda do além. Entre um passo e outro, a menina podia sentir um beijo fresco em sua nuca.
Passou bem do lado da árvore, e estava prestes a sair da rua quando ouviu:
- Luuuuunnaaaaa...
Ela parou. Virou-se para trás devagar. Não havia ninguém atrás de si, até onde os olhos podiam ver. Nem um pássaro, ou mosca, ou grilo. Ninguém.
Ela franziu as sobrancelhas. Girou o corpo novamente, e ergueu o pé para dar o próximo passo, quando, de repente:
- Luuuu...
Ela virou para trás de uma vez. Tudo exatamente como antes, em seu devido lugar.
Voltou o rosto para frente, fingindo que ia seguir caminho, e aguçou bem os ouvidos, para captar de qual direção vinha o sussurro.
- Luuuuuuuu – ouviu ela baixinho – nnaaaaaaa....
Dessa vez soube que era a gameleira quem a chamava.
Andou até ela, com passinhos lentos, e se postou bem diante das raízes.
- A senhora me chamou? – perguntou, mas só o silêncio respondeu.
- Olha, eu tenho que voltar pra casa! Minha tia está me esperando para o jantar. É melhor a senhora desembuchar logo – tentou novamente.
Nesse instante, uma lufada de ar veio do oeste, carregando consigo um monte de folhas que rodopiaram ruidosamente e sujaram as entradas de todas as casas. Alguns galhinhos grudaram na roupa dela, e muitas folhas secas pousaram a seus pés, mas ela não ouviu mais nada além disso.
Esperou ainda mais alguns minutos, e como nada aconteceu, deu as costas para a árvore e estava pronta para retomar seu caminho, quando ouviu um barulhinho bem baixinho, vindo de dentro da árvore.
Lunna voltou, se aproximou da árvore, e mais um pouco, alguns passos mais perto, e já estava quase escondida dentro dos galhos, quando viu dois pontinhos luminosos encarando-lhe. Dois olhos de lua cheia destacando-se no escuro.
Ela ficou lá, parada, olhando, esperando que aquele ser reagisse, e sendo encarada de volta pelos globos brilhantes.
Então, das sombras, um gatinho saiu, dando pequenos passinhos tímidos. Seu pelo era preto reluzente, e seus olhos, verde-esmeralda. Ele andou a passos lentos na direção da menina, e miou desconfiado.
- Um gatinho! Oi gatinho bonitinho!
Ela estendeu a mão para ele cheirar. O gatinho aproximou o focinho, os bigodes balançando, deu algumas fungadas, e veio um pouco mais para perto.
Lunna fez carinho entre suas orelhas, e viu o focinho molhado se empinar, e os olhinhos se apertarem de felicidade. Dois segundos depois o gatinho se esfregava na mão dela de um lado para o outro, com o rabo dançando elegantemente no ar.
Ela o pegou no colo, abraçou-o, e depois colocou aquela bolinha de pelos dentro do seu balde de caveira, por cima dos doces. Naquele momento, olhou para o céu e a primeira estrela que viu foi Sirius, que tinha acabado de aparecer. Estava anoitecendo, e, por isso, ela seguiu para casa, seus passos ecoando pelas ruas desertas.
***
Lunna morava com sua tia em um lindo chalé de madeira, que parecia um pouco uma casinha de biscoito de gengibre, e ficava no topo de uma colina íngreme, que ela sempre subia correndo a toda velocidade.
- Titia! Titia! – ela gritou, disparando porta adentro.
De pé no capacho, empurrou para fora, com um dos pés, a bota que calçava no outro, e repetiu o processo do outro lado, ficando assim apenas de meias. Pendurou seu chapéu, úmido pela geada, no cabideiro ao lado da porta, e se dirigiu até a cozinha, onde a tia mexia o conteúdo de um grande caldeirão.
- Oi, meu amor! Como foi a colheita?
- Bem boa! – respondeu a garotinha, ficando na ponta dos pés para dar um beijo na bochecha da tia – E aí? O que você está preparando pra gente?
- Como de costume, o pudim de abóbora já está assando no forno. Aqui estou fazendo geleia de frutas vermelhas, para passarmos em absolutamente tudo!
Assim que Melinda acabou de falar, ouviu-se um “miaaaaau” estridente.
- Mas o que... – a tia começou.
- Titia... Quero que você conheça alguém – interrompeu Lunna.
Ela foi até o balde de caveira e tirou de lá de dentro um filhotinho gorducho, que trouxe nos braços até a tia.
- Esse é o Sirius – ela apresentou.
Melinda não estava sequer surpresa, pois já tinha visto nas cartas a chegada do bichinho.
- Muito prazer, Sr. Sirius Bichano. Agora, que tal você tomar um banho enquanto eu termino o jantar? Tem folhinhas grudadas no seu cabelo!
- Tá bom, já volto!
Ela subiu as escadas correndo, com Sirius ainda em seus braços. Colocou-o confortavelmente em sua cama, e ele de imediato pegou no sono. Entrou, então, no chuveiro, besuntou os cabelos de creme, e desembaraçou-os num processo cuidadoso de separar mecha por mecha e pentear.
Ao sair do banho, tirou o excesso de água dos cabelos com a toalha, e modelou os cachos com os dedos, um por um, até finalizar tudo. Vestiu um pijama confortável, calçou pantufas, e, antes de descer novamente, deu uma olhada em Sirius, que não tinha se movido um milímetro do lugar.
Tia Melinda era uma cozinheira muito criativa, que fazia todas as refeições se tornarem especiais. E que nunca permitiria que Lunna comesse doces à noite em qualquer outro dia do ano, mas hoje era Halloween. O único dentre todos os outros na vida, em que estava liberada para jantar pudim com balas de sobremesa.
O pudim de abóbora que ela tanto amava era feito assim: primeiro, abria-se uma tampa no topo da abóbora; depois, retirava-se o miolo (aquela parte molenga com as sementes), criando uma espécie de cumbuca, que era enchida com leite condensado, creme de leite, gemas de ovos, e alguns ingredientes mais. A abóbora era então envolvida em papel alumínio, e passava umas boas horas assando em baixa temperatura.
O cheiro doce enchia a casa inteira! Tia Melinda calçou luvas térmicas e tirou a abóbora do forno, removendo uma parte do papel alumínio e espetando a abóbora com um garfo.
- Está perfeita! – concluiu ela.
As duas sentaram-se à mesa, cada uma com uma colher, e comeram o pudim direto da abóbora, como mandava a tradição.
Todo Halloween, desde que Lunna se lembrava, a tia fazia esse pudim, e as duas comiam juntas e contavam histórias que eram para ser assustadoras, mas elas sempre acabavam caindo na risada em alguma parte. Depois do “jantar”, comiam os doces da colheita como sobremesa, sentadas lado-a-lado no sofá, com o balde de caveira no colo, e maratonavam seus filmes de horror favoritos. Todos os anos era assim. Com a diferença de que esse ano, além do balde de caveira, também repousava no colo de Lunna uma pequena bolinha de pelos preta.
***
A perna do macacão de Lunna ficou presa enquanto ela tentava pular a velha cerca de arame enferrujada.
- Precisa de ajuda? – gritou Jasper, que já estava lá na frente, para ela.
- Não, eu consigo – ela respondeu, desvencilhando-se da cerca e correndo para alcançar o amigo.
A tradição de Halloween dos dois era: na manhã seguinte à colheita, brincavam no velho parque de diversões abandonado, onde ninguém ia há décadas. Hoje, Lunna levava Sirius no bolso da frente da jardineira, como um bichinho de pelúcia, e ele dormia tranquilo.
Depois de pularem a cerca, não demorou chegarem até a praça de alimentação do parque, onde haviam várias barraquinhas empoeiradas, com as lonas listradas esfarrapadas, voando ao vento como bandeirolas.
Alguns porta-guardanapos e cardápios jaziam esquecidos em cima dos balcões, e haviam pedaços de papel jogados por todo lado. Embalagens de comida que as pessoas amassaram e jogaram no chão, recibos e comandas, guardanapos, entre outros, que pertenciam às barraquinhas, mas voaram sem rumo sujando tudo.
Haviam algumas cadeiras quebradas aqui e ali, algumas de pernas para cima, algumas faltando as pernas, algumas em estado ainda razoável. Da mesma forma, as mesas que faziam parte do conjunto.
Jasper encontrou uma em estado “vai ter que servir”. Colocou a mesa de pé, limpou a poeira mais ou menos, como pode, e distribuiu em cima três sanduíches de presunto e queijo, duas goiabas, e uma manga grande. A contribuição de Lunna foi um último pedaço de pudim de abóbora, um vidrinho de geleia, algumas castanhas e uma pilha de torradas.
- Eba! Pudim da tia Melinda! Sabia que você não ia me decepcionar!
- Qual é, você sabe que fazemos todo ano.
- Para minha sorte.
Os dois comeram de pé mesmo, pois daria trabalho demais procurar cadeiras sentáveis. Provaram um pedacinho de tudo, e no fim, por incrível que pareça, comeram tudo, até a última migalha grudenta. O único pedaço que não comeram, foi a oferenda das bruxas. Essa, dispuseram cuidadosamente em um canto. Ninguém brinca com a oferenda. Ainda mais no Halloween.
Com a barriga cheia, e Sirius lambendo as patas e lavando com elas o rosto, de forma metódica, se dirigiram para os brinquedos. Havia um carrossel, com cavalinhos ornamentados. Uma roda gigante, a favorita de Lunna. Algumas barracas de tiro ao alvo, favorito de Jasper, uma casa do espanto, uma de espelhos, algumas máquinas de garra, de pegar ursinhos (sujos e muito provavelmente cheirando a mofo), alguns escorregadores e camas elásticas gigantes, meio esburacados aqui e ali.
Jasper acertou dezoito balas seguidas no tiro ao alvo. Os doces que ganhou como prêmio não estavam confiáveis para serem comidos, então, tudo o que ele ganhou, afinal, foi a satisfação de ter uma mira tão boa. E os gritos de comemoração de Lunna. Quando ficou entediado, foram para a roda gigante.
Lunna sentou-se numa das cabines, com Sirius nos braços, e Jasper ficou lá embaixo, para operar a máquina. Não tinha mais energia lá, mas dava para fazer tudo de forma manual, e ele era bastante forte para um menino da sua idade. Ele fez Lunna dar algumas voltas, e depois prendeu-a no topo, para ver a paisagem.
Dali, dava para ver sua casa, e até a gameleira da Rua das Gameleiras. Dava para ver centenas de casinhas e muitas das praças da cidade. Ela contemplou a vista por um bom tempo, cada pedacinho de céu azul, cada nuvem gordinha, cada pontinho verde, e quando enjoou, olhou para Jasper, para pedir para ele descer ela de lá. Só que não tinha mais ninguém na cabine.
- Jasper! – ela gritou.
E não obteve resposta.
- Jasper! Cadê você?
Ela olhou em todo o parque, procurou no perímetro em volta, e não havia nem sombra dele.
- Isso não é engraçado. Me tira daqui!
O coração dela começou a ficar aflito, mas tentou não se apavorar. Onde ele poderia ter ido? Por que ele sairia dali sem ela?
- Ele não sairia – respondeu a si mesma em voz alta – o Jasper nunca me deixaria presa aqui.
Seus olhos vasculharam em volta, em busca de alguma pista, como um ratinho encurralado em uma armadilha. Até que percebeu o que estava diferente. A oferenda das bruxas tinha desaparecido. Jasper nunca, nunquinha comeria a oferenda.
- Tenho que sair daqui. Sirius você tem que ficar bem quieto, tá? Não mexe um músculo.
Sirius nem abriu os olhos. Continuou enrolado como a bolinha de pelos que era. Ela o colocou de volta no bolso, se levantou e começou a escalar a trava de segurança que a prendia ali. Passou por cima da grade de proteção, e se pendurou nas barras que seguravam a cabine. Foi andando com as mãos, uma após a outra, até a cabine de baixo. O suor escorria por sua testa, e seus braços estavam trêmulos. Desceu mais um pouco, com muito cuidado, os pés balançando no ar, até a próxima cabine, e a próxima. Depois parou um pouco para descansar. A essa altura, já estava desesperada. A adrenalina corria em suas veias.
Respirou ritmadamente, sentindo o ar entrar e depois sair, e seguiu sua descida, uma mão se soltando e a outra mais que depressa tomando seu lugar. Desceu, e desceu, até que seus pés estavam a uns dois metros do chão. “Vai ter que dar”, pensou ela, lembrando-se de Jasper, e saltou de lá de cima.
Caiu no chão rolando, como um novelo de lã desengonçado, e bateu o braço e a canela. Quase chorou, mas não tinha tempo para isso. Levantou-se, e saiu capengando o mais rápido que podia. Pulou a cerca, e correu. Só quando estava lá na frente é que lembrou de conferir se estava tudo bem com Sirius.
Baixou a cabeça, e: seu bolso estava vazio. Na mesma toada voltou para o parque, mas antes mesmo de chegar na cerca, viu uma bolinha preta saltitando em sua direção. Tomou-o nos braços e voltou a correr. Só parou quando chegou em casa.
- O que foi, Lunna?
Tia Melinda ouviu o barulho dos tropeções da sobrinha e veio depressa da cozinha ver o que tinha acontecido.
- Elas levaram o Jasper.
O estado de Lunna era deplorável. Estava toda suja de terra, o cabelo embaraçado, braços e pernas arranhados.
- Menina do céu! Olha só pra você! Está um trapo!
- Fiquei presa no topo da roda gigante. Longa história. O que importa é que elas levaram o Jasper – disse, ofegante.
Melinda suspirou e pôs a mão sobre os olhos.
- Vá tomar um banho, está bem? Depois desce que eu limpo seus machucados e a gente conversa direito. Tente se acalmar – disse ela.
A menina obedeceu, e momentos depois voltou vestindo o pijama, e de cabelo molhado, como no dia anterior. Contou para a tia toda a história, com calma, e no fim começou a chorar.
- Parece que confundi o significado das cartas, afinal. Não era o Sirius quem ia te visitar. Mas não se preocupe, Lu. O Jasper deve estar bem. As bruxas gostam de pregar peças, é só. Duvido machucarem seu amigo.
- Será? É que... Todas as cantigas, e lendas...
- Os humanos gostam de fazer um drama! Vem, vou te colocar pra dormir. Amanhã a gente tira cartas de novo e vê o que elas dizem sobre o Jasper.
Lunna fez que sim com a cabeça, e deitou-se no colo da tia, com Sirius aninhado em seus pés. Tia Mel acariciou os cabelos da sobrinha e cantou para ela uma linda canção de ninar sobre a ciranda das bruxas à meia-noite.
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À Justine, o mais perfeito dos seres. PABLO NERUDA ODE AO GATO Os animais foram imperfeitos, compridos de rabo, tristes de cabeça. Pouco a pouco se foram compondo, fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça, vôo. O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso: nasceu completamente terminado, anda sozinho e sabe o que quer. O homem quer ser peixe e pássaro, a serpente quisera ter asas, o cachorro é um leão desorientado, o engenheiro quer ser poeta, a mosca estuda para andorinha, o poeta trata de imitar a mosca, mas o gato quer ser só gato e todo gato é gato do bigode ao rabo, do pressentimento ao rato vivo, da noite até seus olhos de ouro. Não há unidade como ele, não tem a lua nem a flor tal contextura: é uma só coisa como o sol ou o topázio, e a elástica linha em seu contorno firme e sutil é como a linha da proa de um navio. Seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura para jogar as moedas da noite. Oh pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria, mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas, o vento do amor na intempérie reclamas quando passas e pousas quatro pés delicados no solo, cheirando, desconfiando de todo o terrestre, porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato. Oh fera independente da casa, arrogante vestígio da noite, preguiçoso, ginástico e alheio, profundíssimo gato, polícia secreta dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo, seguramente não há enigma na tua maneira, talvez não sejas mistério, todo o mundo sabe de ti e pertences ao habitante menos misterioso, talvez todos o acreditem, todos se acreditem donos, proprietários, tios de gatos, companheiros, colegas, discípulos ou amigos do seu gato. Eu não. Eu não subscrevo. Eu não conheço ao gato. Tudo sei, a vida e seu arquipélago, o mar e a cidade incalculável, a botânica, o gineceu com seus extravios, o pôr e o menos da matemática, os funis vulcânicos do mundo, a casaca irreal do crocodilo, a bondade ignorada do bombeiro, o atavismo azul do sacerdote, mas não posso decifrar um gato. Minha razão resvalou na sua indiferença, o seu olho tem números de puro. (em São Paulo, Brazil) https://www.instagram.com/p/B1qsBZ4lNg8/?igshid=94jhue0emzxr
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Dário, o Brasil
Um conto de Dalton Trevisan
Pode ler que é bom (é verdade esse bilete)
Uma Vela para Dario
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se na parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver.
Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede – não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espanta-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados – com vários objetos – de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. A última boca repetiu:
— Ele morreu, ele morreu.
A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça.
Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario a espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.
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Esculturas Musicais 3: Fernando José Karl

AS PLANTAS DO CASARÃO DE NIETZSCHE
Certa manhã de 1900, quando acabou o ar nas narinas de Nietzsche,
todas as plantas do casarão escutavam as ragas de uma sombra.
A brisa árida soprava o longo bigode do filósofo alemão
que respirava por um leve cristal de abysse.
Nietzsche, antes de morrer, tentava ler uma ode hitita,
e só não conseguiu porque grãos de chuva
turvaram seus tímpanos à sombra do gramofone,
onde, tortuoso, girava o Cello sonata opus 38, de Brahms.
Os olhos flutuantes de Nietzsche, calados de insânia,
imitavam bagas de vento imersas em música.
Na manhã em que respirou pela última vez,
o vazio se enfiou pelas frestas da veneziana,
o vazio leu nos olhos de Nietzsche
o exílio sem água e sem palavra de um filósofo morto.
JAZZ HIDRÁULICO EM CORINTO
(Ka'a sí'ijil t'an: voltar a nascer a voz)
De novo me entrelaço aos ossos que são relâmpagos
naquela noite escura que eu chamo de meu corpo.
De novo volta a nascer a palavra
guiada pelo astrolábio da agulha de marear.
O labirinto flui incessante jazz hidráulico em Corinto,
e dentro de nós o frescor da água no barro da garganta.
Nos aquários que respiram na parte mais funda dos oceanos,
sorvo um jarro d'água
em nome do coração das mulheres vulcânicas.
Parado na luz,
o vento lê o meu futuro nas folhas de chá.
Porque te amo,
naquele recanto abandonado dos fiordes
eu deito na cama entre fevereiro e inverno.
Porque sem ti não consigo respirar,
observo na cozinha o besouro no prato branco
que sonha seu inútil sonho de ser,
algum dia,
um golfinho.
ESCUTO O VENTO DO MAR
Toda palavra é uma parede que recebe o vento do mar.
Se cair no abismo,
caia dançando.
A nova filosofia só poderá ser dançada.
O vento do mar passa os dias em núpcias
com a parede de uma palavra.
Eu me rebelo contra o cárcere da gramática:
quem respeita a gramática não vai para o céu.
Quando eu respeito a gramática,
ferve em mim o inferno mais escaldante.
Atiro as vírgulas no vulcão,
dou um tiro na testa das palavras sem vida.
A gramática que vá pra casa do taralho,
o que eu desejo é que cada palavra
seja uma parede que receba o vento do mar:
vento feito um sopro novo,
liberto para sempre das regras gramaticais:
o que eu quero é uma palavra selvagem
que me erga para além do cadáver.
UM COPO D'ÁGUA NO ESCURO
(Lagar: tanque onde se reduzem a líquido certos frutos)
Como escapar desse pequeno túmulo sem chaves,
onde não sinto forças nem para chorar?
Antes de adormecer para sempre nesse lagar,
o céu bordava um acorde excessivo nos meus ossos.
Porque a garganta entalou de tanta treva, eu morri,
mas o vento se apiedou de minha condição e leu na runa Mannaz:
“Recolha-se em seu espaço sagrado
e busque dentro de si as respostas que procura”.
Como escapar desse pequeno reino coalhado de larvas,
onde, mesmo que o arpão me fira fundo a clavícula,
eu nada sinto, porque sentir é beber um copo d'água no escuro.
Sob a árvore de uma frase aprendo a não ser para ser inteiro,
escuto, nos teares de água, que heras recobrem o semblante
por onde escoaram miragens atlânticas.
A ARTE DE LAVAR LOUÇA
OU COMO DEIXAR QUE A LOUÇA LAVE A SI MESMA
A não-ação (Wu Wei),
preconizada pelas práticas orientais,
é unir-se, integrar-se à ação (Wei):
ação superior,
que nos leva para além do corpo e da Mente:
ação sublime, onde não há tempo nem espaço.
Wu é não, sem.
Wei é ação.
Wei (ação) Wu (não, sem) Wei (ação) é fazer sem a intenção de fazer.
A impossibilidade de agarrar a Mente com a Mente,
de agarrar a luz com a luz,
nos conduz ao Wei Wu Wei que, em japonês, quer dizer:
ação na não-ação, agir sem agir, fazer sem fazer.
Wei Wu Wei: fazer sem fazer:
é lavar a louça na pia com naturalidade,
pendurar a roupa no varal sem cálculos matemáticos,
escrever, sem excesso de pensamento,
sobre o luar que paira o mar revolto de Ariso.
Agir sem agir é regar as plantas na varanda
sem "mo chih ch’u": sem titubear.
Com o coração mergulhado
no remanso da restinga de Serenquibi,
agir sem agir é fazer as coisas como elas mesmas fariam,
se pudessem.
Assim, esvaziado de si mesmo, o espírito pressente algo muito sutil:
apenas quando fica quieto e escuta o silêncio
é que tudo já está feito antes de estar feito.
AS PALAVRAS, COMO OS CAVALOS, TAMBÉM CANSAM
Durmo num areal acossado por chuvas abertas.
Se não me amas, fumo uma planta inteira de mel para esquecer.
Se não me amas, bebo um barco de luz e sumo no vendaval.
Dizem que, cada vez que um de nós respira,
o cântaro se molha durante o angelus noturno.
Eu escrevo as labaredas mais tristes esta noite,
e as palavras, como os cavalos, também cansam.
Através da grade de sua prisão viva,
a alma escuta o barulho dos bambus lavados pelo mar.
Para que não me esqueças, eu bebo água pura nos capitéis bizantinos.
Quem não ama, é uma sombra com caspa na sobrancelha.
Quem não ama, abandona uma criança num quarto com escorpiões.
Quem não ama, não consegue largar o osso do medo.
Quem não ama,
não sabe do veludo do salmão,
não sabe do cheiro da folha de laranjeira,
não sabe escutar a reza visível dos peixes-voadores ao cair da tarde.
Para que não me abandones,
eu preparo tea for two,
depois entro num bar e derramo um pouco de música
no desespero dos loucos.
Dizem que, cada vez que um de nós morre,
as constelações cheiram cocaína,
porque não suportam ver no túmulo apodrecer
aquilo que era para ser um colar de pérolas.
UM HAICAI DE ISSA
(Cerimônia do Chá 1)
A monja Shai passa pela chaniwa (jardim do Chá),
onde purifica as mãos nas águas duma tsukubai (pia de pedra),
depois toma seu lugar na Cerimônia do Chá:
a fragrância do incenso é de folha de bananeira.
Na parede do chaseki (recinto do Chá),
o rolo com a caligrafia de um haicai de Issa:
tada oreba
oru tote
yuki no furi ni keri
apenas estando aqui
estou aqui
e a neve cai
Enquanto ora pelos mortos,
a monja Shai prova do yutô (arroz cozido)
e do yakizakana (peixe grelhado).
O toar do gongo e do koto (tambor) indicam o início da Cerimônia do Chá.
No tatami, com a xícara entre os dedos,
a monja Shai medita na chashuwan (árvore do Chá) que,
com mais de 800 anos, ainda hoje na província chinesa de Xishuangbanna.
EPISÓDIO NO SALÃO DE LEITURA DA BIBLIOTHÈQUE NATIONALE
Passo o dia sob a redoma de vidro do salão de leitura
– hermeticamente fechado – da Bibliothèque Nationale.
Envolto pelo zumbo de um vendaval profundo,
até esqueci em que abissal gulf stream atirei minhas pérolas.
Meu nome é junco ou qualquer um x,
e é bem verdade que areeiro é a palavra que se dá a pequeno vaso,
onde se guarda areia fina para secar a tinta da escrita.
Se as coisas passam a não ter sentido algum,
é bom saber que aquele que está cheio de alegria não peca.
A alma não sabe que o corpo existe,
por isso quando o ar cessa nas narinas,
a alma confessa que o vendaval profundo é uma prece natural
que envolve os tímpanos daquele que passa o dia
sob a redoma de vidro da Bibliothèque Nationale.
A FONTE DO ACASO
Bebendo na fonte do acaso,
a cítara esfria o suor do cristal na penumbra:
agora frio, o cristal é ainda fresco de fogo.
O pequeno oratório das âncoras
é planta selvagem que cresce aos poucos,
âncoras sedentas por decifrar
a engenhosa escritura do mediterrâneo.
O leque fechado é um relâmpago adormecido.
Quando se abre, o leque é o último cação
no abissal gulf stream, enquanto o racimo de uma chuva
fere de pluma o aquário no living,
living onde a cítara excita as raízes da música:
a mosca-das-frutas vive apenas dois meses,
o urubu-de-cabeça-vermelha: 118 anos.
AS PLANTAS NA VARANDA
Algo, em mim,
enquanto lanha-se nas afiadas ostras,
ao mesmo tempo banha-se em outros astros.
Algo, em mim,
não pode ser ferido por espinho de mandacaru,
nem enterrado no Cemitério do Cajueiro que,
rente ao mar, é um canteiro de sopros extintos.
Algo, em mim,
diminui o açor da tempestade
que tenta rachar o crânio.
Algo, em mim,
cura surtos com sutras,
cura larvas com lavas vulcânicas.
Algo, em mim,
faz com a pluma da alma
um rombo no casco do encouraçado Potemkim.
Algo, em mim,
rompe a pedra mais dura,
esfrega teréns de música num bule de Braque,
escuta bolero no rádio e rega as plantas na varanda.
Fernando José Karl, 57 anos, é natural de Joinville/SC. Jornalista, roteirista de cinema, artista visual e poeta. Foi redator e editor-assistente do jornal cultural paranaense Nicolau. Autor, entre outros livros, de “Brisa em Bizâncio” (Travessa dos Editores/2002) e “O livro perdido de Baroque Marina” (Prêmio Cruz e Sousa 2010/Categoria Romance/Editora da UFSC).
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