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P
Fazer rir, assustar, fazer rir outra vez. Que merda de ideia, ele nunca quis ser palhaço mas de alguma forma foi nisso que se tornou. Bem tenta dar um ar sério mas não vale a pena. Procurou na net formas de contornar o problema. Participou em fóruns sérios, sobre a cultura e política no país. Nunca ninguém lhe chegou a responder e no fim escreveu num tópico dedicado à educação “VÃO TODOS PARA O CARALHO” em letras bem gordas mas o assunto prosseguiu como se não tivesse dito nada e nem sequer foi banido. Desesperado, certo dia numa livraria entrou pela secção da auto-ajuda. Leu vários mas se os prefácios garantiam uma viragem de 180 graus na vida infeliz do leitor, tal nunca aconteceu. Que merda de ideia a de fazer rir e assustar. Começou a pensar que os amigos têm até uma alcunha secreta para ele, daquelas que despertam a risota geral mesmo quando ele não está.
O Palhaço.
Porque é que havia de ser outra? Desde sempre que fora um palhaço. O pior foi quando a Maria lhe pediu para contar uma anedota. Claro que ele não sabia nenhuma – Nunca foi palhaço de anedotas. Foi sempre palhaço de outras merdas. Ele quis dizer-lhe isso mesmo com ar sério, mas para o grupo de amigos que esperavam muito atentos uma resposta engraçada, julgaram ser para rir. E então riram.
Parem, por favor, eu não quero que se riam do que eu digo. Ele quis dizer isto mas tudo se evaporou no meio do barulho de ah-ah-ah-ah-ah és demais oh palha-ah-ah-ah-ah.
É por isso que ele hoje comprou uma 9mm com uma caixa de chumbos. Porque não? Se a descobrirem ninguém vai pensar que é verdadeira. Na volta pedem-lhe que dispare para eles, que está calor e precisam de água para se refrescar. Foda-se e porque não? Porque não?! Se calhar nunca ninguém pensou em aparecer com uma arma de verdade naquela escola, pensou ele. Mas mesmo que toda a gente andasse com uma, nenhuma alma acreditaria que a dele matava. Um palhaço só faz mal ao ambiente quando apita o apito e larga balões de hélio para a atmosfera. O resto são anedotas, mas também nunca ninguém morreu de rir.
Quando ele entra pelo portão de cima, o porteiro diz-lhe sempre um olá mostrando-lhe os dentes que ainda tem, e com os olhos em pulgas para se rirem também. Vá, parecem dizer, faz-nos rir mesmo a sério palhaço do caralho, só assim é que a palavra “sério” pode vir empacotada com o que és na mesma frase já reparaste?
A pistola pesa-lhe cada vez mais na mochila a cada passo que dá para junto dos amigos. É de tarde e o sol bate-lhe nas costas como que a encorajá-lo para seguir em frente e sacar da arma.
- Olhó Paulo! – diz o Carlos, o típico playboy.
- Sou eu , sou eu – responde o Paulo.
O Carlos ri-se enquanto apertam a mão e depois a Maria e a Cátia dizem-lhe olá sem se chegarem para o cumprimentar. Este palhaço não tem o rosto pintado mas elas estão-se nas tintas para ele. Só querem uns segundos de risota, tudo muito engraçado, ou minutos como quando a Maria lhe pediu uma anedota. E depois que se lixe o Paulo, vamos sair à noite e as piadas não se ouvem muito bem numa disco. Agora que ele reparava, na Cátia tinha crescido uma gigante borbulha mesmo no meio da bochecha, parecia o botão de um comando para ligar a Tv. A miúda bem que tentava disfarçar aquilo com o cabelo puxado para a frente mas sem sucesso.
- Tás a ouvir meu? – disse o Carlos, batendo-lhe levemente no ombro – Tou a falar contigo e tu a fazeres olhinhos à Cátia.
Riram-se todos. Claro que foi um rir completamente diferente – a piada do Carlos fora deixada a pairar no ar e toda a gente se ria dela. Quando o palhaço tentava fazer a mesma coisa, o que dizia voava tão depressa como um dos seus balões e só ficava ele com um X no peito para que se rissem. A questão portanto era se devia sacar da arma já ali, uma bala no Carlos, outra na Cátia (10 pontos caso acertasse na borbulha, embora dali nem parecesse muito difícil) e por fim, queres uma anedota Maria? Ri-te com esta. Bang-Bang-Bang!. Ou se devia esperar pelo momento certo, talvez quando todos se estivessem a rir dele.
Trrrrrrriiiiiimmmmmmmmm
O toque para a primeira aula da tarde. Uma coisa era certa, estes três não se iam rir muito mais tempo. E não valia a pena chorar quando ele tirasse a 9mm da mochila, nessa altura já seria tarde demais. Só de pensar nas caras que eles fariam, os O’s de estupefacção. A antecipação daquela imagem era suficiente para que se excitasse, sorte que trouxera hoje calças de ganga. Depois de resolvido o problema, talvez apanhasse vinte e cinco anos na choldra mas também lá quando soubessem do que é que ele fez, ninguém se ia rir dele. E isso é que era importante – Acabar com aquela palhaçada toda.
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Ouvidos no mundo
- Já viu isto dos novos aparelhos obrigatórios?
Joaquim Ramos, mais conhecido por Ossos, folheava o jornal sentado num banco de jardim. Por detrás dos óculos, os seus olhos sondavam as linhas da notícia de sobrolho carregado, e franzia o nariz a cada dez segundos num tique nervoso. Eu estava sentado ao lado dele e não precisava de o observar para saber isso – Conhecia-o há demasiado tempo.
- Daqueles que são enfiados nas portas dos carros? Ouvi dizer que apitam à terceira infracção. É verdade?
- Os mais recentes apitam logo à primeira. Mas isto é ainda pior, veja aqui. Inclinou o jornal e tive que segurá-lo para mantê-lo estável no mesmo sítio. Com o Ossos era sempre assim. Apontou com um dedo magrinho e a mão a abanar, como se tivesse uma chave de fendas entre os dedos e a usasse para desapertar um parafuso invisível. Na notícia via-se a fotografia a preto e branco de uma parede com aquilo que me pareceu ser uma orelha de alguém, afixada. Depois olhei mais atentamente e ali estava mais uma orelha e outra a seguir, quase despercebidas pela má qualidade da imagem. Apesar disso, compreendi imediatamente o significado daquilo, ainda antes de ler o título da notícia.
- Estão a meter os aparelhos dos carros nas casas da gente? – Perguntei começando a ler mas sentindo que a fotografia me havia roubado a surpresa toda. Uma gota de suor salgou-me a vista e passei a ler só com um olho.
- Sim. Depois de oitenta e dois anos sobre o mundo e querem vir agora saber o c’ando a dizer.
- Eles não podem fazer isto.
- Isso foi o que eu disse quando começaram a enfiar as primeiras orelhas dentro dos bichos. A minha Cidália, tenha Deus em descanso, nunca me perdoou pelo que fiz ao Golias.
- O que fez? – Perguntei genuinamente curioso.
- Dei-o.
- Foi só isso?
- Matei-o primeiro. Tive que o fazer entende? Usavam-no como uma ferramenta, o pobrezinho.
- Os cabrões agora querem que as paredes tenham ouvidos também… Com isto devolvi-lhe o jornal, que logo recomeçou a abanar nas suas mãos. Recostei-me no banco e olhei para cima, deixando-me embalar pela brisa do final da tarde. O sol já era menos do que uma meia moeda por detrás das montanhas, o céu pintado de vermelho à sua volta. As primeiras estrelas cintilavam como faróis longínquos; pensei em ti… Que dirias disto? Não das estrelas, mas deste mundo onde me deixaste. Como chegámos a este ponto? Sinto-me sozinho aqui, ironicamente, pois nunca tive tantos ouvidos à escuta. O Joaquim é o meu único amigo – o ultimo amigo – e olha para ele como treme. Dentro de pouco tempo ficarei definitivamente sozinho, à deriva num mundo que só quer ouvir mas nunca fez um esforço para compreender. Não querem saber dos assobios do vento ou do restolhar das folhas quando ele passa. Nunca tiveram ouvidos para o cantar dos pássaros nem para os latidos longínquos dos cães, meras ferramentas para eles.
Olhei para o relógio no meu pulso e fiz para me levantar mas a mão do meu amigo prendeu-me com força surpreendente para a idade. Conheço Joaquim Ramos há mais de cinquenta anos e no entanto nunca o vi tao ensombrado. Sob uma luz natural cada vez mais desvanecida, o meu amigo era nuvens carregadas de mau pronuncio, ventos frios inesperados num dia de verão. Quis perguntar-lhe o que queria de mim mas antes de o fazer ele mostrou.me outras páginas do jornal, a abanarem mais do que nunca, revoltando-se como ondas sob a tempestade. Desta vez ele não apontou para a notícia em questão, talvez antevendo que não valeria a pena dada a sua condição agravada. Não havia fotografias nas duas páginas do jornal mas o título da notícia intrigou-me. 
Em letras gordas lia-se: OUVIDOS NO MUNDO
O artigo estendia-se ao longo de uma pagina inteira, detalhando as novas medidas do Estado. Li tudo e voltei a ler. Ossos não me disse nada durante esse tempo e não creio que me pudesse ter dito alguma coisa de modo a reverter a nossa situação. Tentei falar.
- O que é que vamos…
Ao longe ouvi uma sirene. O meu coração terá falhado uma batida e logo a seguir outra. Joaquim Ramos estava lívido e com as pálpebras descaídas, o rosto ossudo marejado de lágrimas. Tentei erguer-me novamente, apoiando as mãos no banco. Estaquei. O que é que… Os meus dedos sentiram qualquer coisa por debaixo da madeira – Qualquer coisa húmida com diversas protuberâncias, curvando-se. Havia pequenos pelos ali, naquela orelha de alguém. Perdi as forças, sentei.me, quis derreter contra o banco. A sirene mais próxima.
- Está um ouvido no nosso banco. – Disse eu.
Ossos não reagiu e eu não lhe disse mais nada. Eles estavam a ouvir. O que é que eu tinha dito que me pudesse incriminar? Rebobinei tudo, cada palavra, cada som… Os meus dedos ainda tocavam a orelha, o indicador fazia curvas e curvas até ao seu interior. Ouvidos nos carros, nos cães e nos bancos. Até as paredes têm ouvidos. Ouvidos no mundo. Senti um grito enorme às voltas no meu estômago, subindo pelo peito acima, queimando tudo no seu caminho como um shot de whiskey regurgitado. Levei a mão à boca para que o grito não saísse, nem o almoço de horas atrás. A sirene mesmo ali ao pé… Ouviram-me, pensei, ouviram-me. Olhei para Ossos mas o meu companheiro continuava na mesma posição, de olhos quase fechados e com as lágrimas ainda cintilantes no queixo. O queixo não tremia. Nem os ombros, nem as mãos.
- Ossos – Sussurrei-lhe.
Se ele ouviu não deu sinal disso. Toquei-lhe no ombro e caiu para o outro lado, puummmpf. Céus,Ossos! Não me deixes sozinho. O grito entalado na traqueia, tarde demais meti as mãos na boca e saiu em jorro. Não um grito criado pela vibração das cordas, mas um grito molhado, deixando-me os lábios com um sabor ácido. Restos do almoço no chão e sobre os sapatos. As sirenes cessaram; os pirilampos iluminavam o parque de vermelho e azul. Apoiei a cabeça nas minhas mãos, cotovelos nos joelhos, à beira do colapso. Esforcei-me para focar a vista, pois sabia que a qualquer momento os meus sentidos me abandonariam. Nos meus pés, onde deviam ter estado pedaços de um bife mal passado, estavam orelhas de alguém. Orelhas de todas as dimensões, espalhadas no meio do liquido, a ouvirem o mundo. Olhei para elas e elas olharam para mim, as curvas, os pelinhos nalgumas e brincos noutras. Ouvidos no Mundo e dentro de mim. Ouviram-me soluçar, praguejar, gritar. Ouviram mas não compreenderam. O mundo girou e o chão veio contra mim.
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Fogo (1)
Foi quase de forma espontânea a combustão de elementos no interior de Gaspar Horta, no preciso momento em que, pela primeira vez, pousou o olhar naquele rosto de mulher. Logo ele que nunca sequer considerou a possibilidade de beijar uma mulher ao fim de quarenta e sete anos. Naquele pequeno intervalo de tempo, enquanto a chuva caía sobre o mundo e a leve brisa de Inverno assobiava entre os pinheiros ali do parque, deu por si a imaginar como seria se de facto os seus lábios tocassem os de outra pessoa. Exigia-se um grande esforço de imaginação pois nem os seus próprios lábios sentia. Não verdadeiramente. Tocavam-se, claro, mas era como se estivessem dormentes ou, pior ainda, mortos. E como Gaspar sempre fora um homem racional, atento à ordem geométrica de tudo em seu redor, calculando com toda a precisão cada passo e meticuloso até com a métrica das poucas frases que proferia, nunca lhe passou pela cabeça a possibilidade de sentir alguma coisa. Foi portanto uma situação bastante peculiar, aquela de perda das rédeas da sua vida, quando ao fim de tantos anos percebeu não conhecer afinal o verdadeiro significado de algumas palavras do dicionário. Gaspar Horta, que sempre tivera a cabeça cheia de outras coisas para pensar, demasiado ocupado para se permitir a mais breve conciliação com outro ser humano, soube naquele momento que uma nova engrenagem havia começado o seu movimento.
Cansado, quase esgotado das forças que o levassem até ao seu apartamento – fora mais uma vez eleito o empregado do mês e tal como era habitual, naquele dia fora o ultimo a sair do trabalho em toda a cidade – movia-se em modo automático ao longo do jardim do Campo Grande, sem dedicar especial atenção ao meio envolvente. Não que houvesse alguma coisa digna de nota àquela hora deserta. Podia ser o único sobrevivente de uma catástrofe a nível global, o ultimo suspiro da humanidade, que provavelmente levantar-se-ia no dia seguinte à mesma hora de sempre com o único propósito de ir trabalhar. De olhos fixos no solo vendo a gravilha deslizar por baixo dos seus pés, por um breve segundo terá fechado os olhos, adormecido entre um passo e o seguinte, pois quando o ar estalou, foi tal o seu sobressalto que os sapatos descolaram da terra. Olhou em volta sem saber ainda se aquele barulho tinha sido dentro ou fora das paredes da sua consciência. Tudo quieto, as árvores, os bancos, as nuvens, a lua, como modelos pousando para uma fotografia. Depois reparou que alguém estava sentado num dos bancos. Demasiado longe para lhe distinguir os contornos do rosto de modo a compará-lo rapidamente com o seu minúsculo reportório de conhecidos.
E no entanto, perto o suficiente para saber que alguma coisa estava errada.
Claro que, sendo Gaspar quem era, ponderou imediatamente atalhar pelos arbustos e evitar qualquer confronto incomodativo com outra pessoa. Não o fez, mas passou a caminhar na margem oposta do passeio, corcovado, o chapéu-de-chuva empunhado por uma mão mais tensa a cada passo. Só os seus sapatos restolhando na terra lhe lembravam que havia som no mundo, e depois um tambor ao longe, do outro lado do parque que parecia aproximar-se. Gaspar, a poucos metros do banco, observou a mulher sentada, com o rosto totalmente encoberto por cabelos tão vermelhos que a cabeça parecia ter pegado fogo. E o tambor mais próximo, mais rápido - O coração de Gaspar Horta ribombava na noite, tão alto que seria uma questão de tempo até acordar toda a cidade.
Depois viu o que ela tinha na mão e estacou imediatamente. Susteve a respiração, desejando conseguir fazer o mesmo com o coração. Nunca, em toda a sua vida, tinha visto uma pistola. Isto é, nunca para além dos mil documentários que passavam na televisão, das revistas e das páginas sangrentas nos jornais. Vê-las em duas dimensões não o intimidava mais do que um candeeiro ou um tapete, do seu lugar no sofá da sala. Era como observar um planeta distante através de um telescópio. No mundo dele não havia lugar para coisas assim, havia ordem. E fora sobre pressupostos como este que construíra a fronteira que o separava da loucura total, daquilo que os crentes chamariam de perverso. E aqui estava uma arma real, mesmo à sua frente.
Mas o cano da arma estava virado para ela.
Gaspar não compreendeu imediatamente o significado daquilo, como se uma parte do seu cérebro tivesse colapsado sob o peso daquela imagem. Só mais tarde compreendeu que a mulher tentara suicidar-se. Mas o raio da arma encravara, fazendo aquele estalido seco que o despertara. Quis continuar a andar, seria melhor se não se metesse onde não devia – afinal de contas cada um sabe de si e quem era ele para decidir quem vivia? – mas as pernas recusaram-se a obedecer, ganhando vida. Ditou a inevitabilidade do destino que ambos se encontrassem, e foi isso mesmo que aconteceu. Gaspar aproximou-se.
- É uma Walther P88 ? - Ouviu-se a si mesmo perguntar e arrependeu-se imediatamente. Conhecia a maioria das armas usadas pela PSP devido às inúmeras reportagens que passavam no telejornal e perdia horas a ler sobre o equipamento das forças de segurança na internet. Mas era a tal história: Uma arma a três dimensões, ao vivo e a cores, depressa ganhava outras tantas. Temperatura, solidez, brilho… Peso. Sentiu-se ridículo, transbordando de insignificâncias, sem as palavras certas, não importava quantas conhecesse.
Ela ergueu o rosto e, por entre as cortinas dos seus cabelos, Gaspar obteve o primeiro vislumbre de um nariz delgado, polvilhado de sardas como sementes, únicas em todo o Universo. Depois as cortinas abriram mais um pouco e deram lugar a duas enormes safiras. Fitavam-no surpreendidas, sob sobrancelhas arqueadas num acento circunflexo. Finalmente a boca, o personagem principal em palco, os lábios pintados de vermelho. Ali, sob a luz de um candeeiro, viu lágrimas ainda por secar confluírem dos dois lados do rosto para se virem alojar nos cantos da boca. E foi então que Gaspar, sentindo o mundo fugir-lhe dos pés, tonto à boleia num estranho pêndulo de Foucault, ardeu de dentro para fora. Quis amparar-lhe a queda, abrir-lhe as asas. Mas acima de tudo desejou que os lábios, tão perfeitos na sua forma, deixassem de tremer. Desde essa noite que o coração de Gaspar ganhou um novo ritmo. Ao fim de quarenta e sete anos, tornou-se na criança que nunca tinha sido ou que já não lembrava. Entregou-se de corpo e alma a Marisa Pontes, e ela a ele. Gaspar nunca deixou de a amar, até ao dia em que, não por combustão espontânea mas com um ataque cardíaco, o peito subiu e desceu uma ultima vez.
Marisa chorou a sua morte e fez-lhe o funeral. Diria mais tarde que nunca em toda a sua vida conhecera alguém tão cheio de vida como Gaspar.
- P-p-pode baixar a arma m-m-minha senhora, está t-t-tudo bem – conseguiu finalmente dizer.
- Está? – Um murmúrio foi tudo o que ela lhe deu.
- Sim, (ccccc)com certeza que sim.
“Com certeza que não” pensou ele “O que é que pode estar bem aqui?
Gaspar estendeu-lhe a mão para ajudá-la a levantar-se. No entanto, e para grande horror seu, a mulher entregou-lhe a arma, com o cano virado para ela, nem teve tempo de tirar a mão. Quem os observasse agora (e havia sempre alguém a observar, até nos locais mais inesperados) seria fácil tirar a errada conclusão de que ele estava pronto a tirar a vida de alguém. Gaspar Horta, um perverso. Guardou imediatamente a pistola no interior do casaco, afastando aqueles pensamentos, sem se preocupar em travar o gatilho pois se no conforto da sua casa era fácil criticar os polícias que se esqueciam, na vida real parecia nem haver tempo para respirar. Olhou em volta, certo de que alguém estaria a observá-los. A mulher puxou-lhe a manga do casaco.
- O senhor percebe de armas? Consegue arranjar a minha, por favor?
- Talvez, mas precisamos de sair daqui se não queremos apanhar uma pneumonia.
- Não há nenhum sítio que me abrigue – disse ela olhando para o céu, rios de chuva e lágrimas resvalando pela encosta do seu rosto.
- Vamos para o meu apartamento – Gaspar nem queria acreditar que acabava de convidar uma mulher para sua casa, logo no primeiro encontro mesmo que as suas intenções fossem plenamente altruístas. Tal coisa teria sido impensável até nos seus sonhos mais íntimos. E o que é que era aquilo de se fazer passar por herói? Sentiu-se como um verdadeiro impostor, ele não era nenhum Clark Kent e se havia alguém à espreita, ninguém diria “Ali no céu, olhem: É um pássaro. É um avião. É o Gaspar Horta!”. Ele era só e apenas… ele. Caso contrário, se fosse mesmo um herói, nesta realidade virada do avesso, então não podia haver inclinação no eixo da Terra nem estações do ano. A ser verdade, a chuva devia estar a cair para cima e, principalmente, as suas mãos não estariam a tremer como agora.
- Não s-sei o que aconteceu – disse ele - mas é melhor sairmos daqui – E aproximou-se para ajuda-la a erguer-se.
- Apenas quero que arranje a minha arma, por favor.
- Eu arranjo, mas venha comigo, não sente este frio?
- Não, já nem sei dizer se sei sentir alguma coisa – disse ela olhando para os dedos crispados nos joelhos, franzindo o sobrolho como se tentasse decifrar um enigma
- Vamos andando – disse Gaspar estendendo-lhe novamente a palma da mão que ela agarrou desta vez sem hesitar – Não creio saber ainda o seu nome.
- Chamo-me Marisa. Marisa Pontes.
- Eu sou o Gaspar, é um prazer conhecê-la.
- Mesmo dadas as circunstancias?
- Sim.
Caminharam lado a lado pelo passeio, afastados um do outro o suficiente para evitarem os constrangedores toques de ombros. Marisa tinha os olhos pregados no chão, com os cabelos como talas nos lados do rosto e os braços cruzados junto ao peito, tiritando com os dentes (sentia o frio afinal de contas e já isso, por si só, era um sinal de que ainda sentia qualquer coisa, para grande arrebatamento dele). Gaspar ofereceu-lhe o chapéu para que se abrigasse da chuva. Quando ela não ergueu a mão para o receber, ele aproximou-se e ficaram os dois debaixo dele. Os ombros tocaram-se durante o resto do caminho.
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Cisco (2)
Deixei cair o crânio. Ou melhor, atirei-o para o chão com as mãos a tremer. Estaria a mentir se vos dissesse que não tive medo e que nao gritei como uma menina. Mas também, quem é que me podia culpar por isso? Já algum de vocês viu um crânio a falar?
Eu vi-o resvalar numa pedra e depois noutra, a descer os últimos três metros que tinha acabado de subir. Parou entre duas pedras atravessadas no caminho, com o que restava do rosto virado para baixo. Fiquei especado sem saber o que fazer, as mãos ainda tremiam e o cheiro paralisava-me. 
Nunca pensei que o Cisco estivesse...vivo?
Depois veio o corvo. Com as patitas em cima do globo branco, estudou o melhor sítio para bicar em primeiro lugar. Protestou qualquer coisa por não se conseguir decidir, afinal de contas não devia acontecer muitas vezes um humano trazer com ele um crânio sem valor gustativo. Atirei-lhe com uma pedra sem pensar que podia acertar no meu irmão. Preocupação que se revelou infundada uma vez que ter força para lançar uma pedra à distância de um metro, não era a mesma coisa que fazê-lo para três. A pedra ficou aquém do alvo e o corvo se reparou não deu sinais disso.
- Larga o meu irmão!
O pássaro bicou o crânio num movimento rápido como um cuco faria na casca de uma árvore, produzindo um som que ainda hoje ressoa dentro da minha cabeça. “Crack”. E foi tudo o que bastou para me libertar da inércia que me mantinha os pés pregados no chão. Saí disparado em direcção ao animal, para salvar o meu irmão, por pouco não caindo. Usei os braços para o espantar mas num horrível segundo, o corvo não se mexeu.
- Larga-o. Já te disse! – E peguei numa pedra que nunca cheguei a usar. Um corvo não compreende o que dizemos, mas tem boa memória e o bico ainda devia doer da primeira que lhe atirei. Saiu em debandada, batendo com as asas furiosamente.
De novo ao pé do meu irmão, peguei-lhe com uma mão em cada lado do crânio. Uma pena negra repousava por cima dele, alheia ao vento, como se fizesse parte do osso. Soprei-lhe e ela voou. Nunca gostei de corvos, são negros como a noite e dão sempre a impressão de estarem a magicar qualquer coisa. E foi com grande prazer que vi a pena deste ser engolida pelas folhas que espiralavam á minha volta.
-  Boa, boa, voa, voa passaralho espero que doa – Ouvi o Cisco cantarolar, com o crânio a ressoar nas minhas mãos 
Desta vez não o larguei mas tive que recorrer a toda a minha força (a força mental, claro) para virá-lo de modo a encarar de novo o meu irmão. E ali estava ele, outra vez a sorrir enigmaticamente, com a boca fechada.
- Cisco? – Perguntei-lhe com a voz a tremer como a corda de um alaude.
- Não faz sentido chamares-me isso agora – Enquanto falava, a mandibula descia e subia tal e qual um ser humano mas sem os lábios – Já não trabalho na forja maninho. Nem sequer tenho mãos para isso. – Depois riu-se como se tivesse contado a maior piada do mundo, com a boca totalmente escancarada num ângulo impossível para qualquer homem.
- Estou louco – disse eu entredentes mais para mim do que para ele – é isso, entrei em hipotermia e estou a alucinar.
- Não consigo ver o topo, quer dizer que já chegámos?
- Ainda não.
- Sempre te cansaste muito depressa.
- O que é que há lá em cima?
- A velha não te contou? Lá em cima é onde contornas o limite da Terra e começas a andar do outro lado.
- Mas como se a Terra é redonda?
Depois disso, silêncio, não me disse absolutamente mais nada. Calado como quando a mãe lhe disse que não queria o cão lá em casa. Olhei para cima, em direcção ao cume da montanha. O vento do norte fustigava-me o rosto e até os pinheiros pareciam dançar. Ou talvez não fossem árvores. Caíam pesadas gotas cada vez mais depressa e enfiei o meu irmão dentro do saco novamente. De onde estava, já conseguia ver o nivelar do solo que se adivinhava mais fácil de subir. Aquilo deu-me alento e, embora não soubesse o que iria encontrar, desejei ardentemente chegar ao fim. Não posso dizer que me tenha sido fácil porém. É que por muita força mental que tenhamos, chega a um ponto em que o corpo deixa simplesmente de responder. E o meu era rápido a fazê-lo. Tal como um carpinteiro sem as suas ferramentas, um cérebro sozinho não consegue fazer nada. Por falar nisso, tinha saudades dos velhos tempos, quando o Cisco ainda possuía um corpo que sustentasse a própria cabeça. Não que eu me queixasse muito, afinal era meu irmão e os irmãos ajudam-se. Mas se tivesse o corpo tudo seria mais fácil. Se assim fosse, quando finalmente cheguei ao topo e vi a igreja ao longe, não teria as pernas tão arqueadas e doridas, sentindo que se desfariam ao mínimo movimento. Mas como as coisas nem sempre correm como desejamos, era precisamente essa a minha situação.
Estaquei com uma mão apoiada na perna e com outra no peito a latejar. “ Quase que consegui. Não dá para continuar” pensei. O vento e o frio eram tão fortes ali em cima que as minhas pernas cederam sob um peso absurdamente desproporcional e perdi o equilíbrio. Caí de borco, com o saco a resvalar das minhas costas para o chão. A lama amparou a dor e julgo ter sido só por isso que o meu corpo não se partiu em mil pedaços. Fiquei naquela posição por tempo incerto vendo a chuva a cair mesmo em frente do meu nariz, como meteoros criando crateras na terra. Um pouco mais abaixo estava o Cisco que saíra do saco durante a queda. O crânio sujo, com a chuva escorrendo a lama para dentro do sítio onde deviam estar os olhos e para dentro da falha no sobrolho - “O machado que o matou”. Veio outro trovão ao mesmo tempo que o som estalava na atmosfera e desta vez pude ver o raio a cair sobre um pinheiro ali perto. Lembro-me de pensar que aquele era o fim, o meu e o do Cisco. Fechei os olhos pela primeira vez em muito tempo e deixei que os pensamentos deslizassem através do túnel para o subconsciente e a descer pelo buraco. O Cisco a vir da forja com o rabo-de-cavalo a abanar ao sabor do vento. A minha mãe a dizer-lhe que não queria o cão em casa, com um dedo indicador espetado no ar e a balouçar-se como o pêndulo de um relógio. Havia animais vivos em toda a parte da aldeia mas o Cisco não queria saber desses. “Nem lhe cheguei a dar um nome” dissera-me na manhã seguinte. A minha mãe com o vestido branco, parecendo levitar dois centímetros acima do alpendre. O cabelo sempre em desatino com o vento. O sorriso sereno contendo nele mistérios que eu nunca tive tempo para descobrir. Queria voltar para casa, não como ela estava agora mas como quando a minha mãe era viva e o meu pai ainda não bebia. Continuei a descer pelo túnel, a descer, a descer, até deixar de ver a luz e perder os sentidos.
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Cisco (1)
Naquela noite de Inverno, olhar para o céu seria o mesmo que fechar os olhos. Não havia estrelas nem lua, apenas nuvens. A temperatura parecia descer vinte graus a cada passo que eu dava em direcção ao cume da montanha. O frio envolvia-me como um manto gelado, com lâminas a cravarem-se nos meus ossos.
Para além disso, havia o corpo.
Ou o resto do corpo. Carregava às costas um saco contendo aquilo que um dia foi parte de um ser humano. O peso insistia em puxar-me para o chão fazendo com que, mais de uma vez, quase perdesse o equilíbrio. Nunca fui um homem de muita força. Sou magro e o meu pai costumava chamar-me “aranhiço” por causa da forma como arqueio as pernas quando estou cansado. Eu canso-me facilmente, mas habituei-me a pensar que é a cabeça que importa. É esse o meu truque, não dizem que o cérebro é o órgão mais importante? O meu pai havia de se rir a valer caso me visse ali perdido, entre os pinheiros. “Aninha-te, isso!” diria ele como tantas outras vezes “Faz aquele som que fazes sempre com a boca quando ‘tás cansado meu aranhiço”. E eu fazia, não porque ele me pedia, mas porque tinha que ser. Eu nunca fui um homem de muita força.
As árvores erguiam-se nos dois lados do caminho sempre a subir, como espectadoras de uma peça de teatro. Não tenho medo do escuro se estiver dentro de casa. Mas ali era outra coisa. Em casa não há pinheiros com quinze metros de altura com as agulhas assobiando musicas sinistras. Não há a caruma caída no chão a crepitar sem sabermos porquê. Pelo menos na minha casa também nunca entrou um lobo. Céus, como era aterrador ouvi-los ali. Devia andar perto daquilo que as presas sentiam quando a corneta dos caçadores ribombava pelo vale. Para além disso, as pessoas contavam histórias. Se quiséssemos acreditar no que se dizia, homens com três metros, ou mais, cirandavam nas profundezas da floresta. Que se agrupavam dentro de cavernas que não apareciam assinaladas nos mapas. Ou que embora fossem tão grandes, pouco barulho faziam e era impossível dar por eles até ser tarde demais. Diziam que quem os via nunca sobrevivia para contar o sucedido. O que para mim soava a uma grande mentira, pois se assim fosse nunca teríamos ouvido falar deles. Como vos disse, nunca fui um homem de muita força, mas tenho um cérebro que pensa.
Mas o medo insistia em sussurrar ao meu ouvido. Enquanto escalava, por uma vez quase pude jurar ter visto uma árvore a andar. Claro que na minha cabeça aquilo não podia ser uma árvore porque as árvores não têm pés para andar, mas talvez as histórias tivessem um pouco de verdade nelas afinal de contas. “Não, não” pensava eu “não sejas tolo, os homens raramente passam dos dois metros, e mesmo esses só cinco ou dez centímetros”. Mas pensar assim não fazia com que eu deixasse de tremer, e não só pelo frio que se fazia sentir.
Noutra vez foi o crocitar de um corvo que soou tão claro nos meus ouvidos como quando o senhor Almeida empunhava o seu martelo contra a bigorna de aço. Não sei se já alguma vez viram um ferreiro a trabalhar mas quando o martelo bate no ferro saltam faíscas criadas pelo choque. Neste caso isso não aconteceu, claro, e em vez de faíscas saiu um corvo da copa de um pinheiro. Segui-lhe o bater de asas com os meus olhos até o perder na escuridão da noite.
Mas eu ainda não vos disse quem é que eu carregava dentro do saco – Era o meu irmão. Chamava-se Francisco mas eu tratava-o por “Cisco” não só por ser mais fácil como também por ser um sinónimo de sujo. Não me interpretem mal, eu amava-o (e amo) como nunca amei ninguém, mas sendo ele ajudante do senhor Almeida, andava sempre com o queixo e as mãos chamuscadas da fornalha. Chegava a casa sempre sem parecer dar por isso e só quando se sentava para jantar, e via o reflexo do rosto na borda do prato, é que se lembrava e corria para a casa de banho. Eu vivia com ele e com o meu pai, o que era o mesmo que dizer que vivia só com o meu irmão. O meu pai sempre foi um bom vivant…
O Cisco era mais ou menos como eu embora fosse fraco da cabeça mas forte de ombros. Tinha o cabelo negro (e que ás vezes também se confundia com as cinzas que trazia com ele) com um rabo-de-cavalo que não parava de aumentar. Pelo menos até chegar a meio das costas. Depois, com toda a simplicidade de quem nada deve a ninguém, cortava-o rente. A primeira vez que o vi fazer aquilo, julguei que enlouquecera. Não lhe disse nada, mas foi justamente isso que pensei.
Na aldeia onde vivíamos, por vezes o tempo tinha o hábito de medrar ao ponto de nos julgarmos parados com ele. A vida no campo é mesmo assim. Eu trabalhava como aprendiz de carpinteiro com o mestre Acácio de manhã á noite, e ao contrário do que se diz, pelo menos no meu caso o tempo não passava mais depressa quando estávamos ocupados. A maioria dos dias, só via o meu irmão imediatamente antes de o sol nascer, sentado cá fora no alpendre a comer qualquer coisa antes de ir, e depois à noite para jantar. O meu pai servia para pouco mais para além de esvaziar a adega da estalagem, facto que lhe valera uma alcunha tão merecida: Seca Adegas. Em certas vezes – nos dias em que o Cisco não precisava de ir tão cedo para a forja – fazíamos o caminho juntos. Podíamos ainda ver as pegadas aos “esses” que o nosso pai fizera no piso durante a noite, provavelmente a cantar com uma garrafa de hidromel na mão. Nunca comentávamos de um para o outro, mas se vínhamos a falar de qualquer coisa, a conversa acabava e só se ouvia a água da ribeira a resvalar nos rochedos ali perto.
Estaquei e pousei o saco com o meu irmão lá dentro.
As primeiras gotas de chuva começavam a cair e tive que puxar pelos miolos durante um momento. Das duas uma, ou eu estava a enlouquecer ou então eu tinha acabado de sentir um pontapé nas costas. Como a segunda hipótese era impossível, uma vez que nas costas eu tinha trazido o saco, então só podia ser a primeira. Cofiei a barba procurando uma razão lógica para além daquela mas, como qualquer pessoa na periferia entre as leis físicas e aquilo que julga ser impossível, decidi que enlouquecera – Certamente que o saco não se podia ter mexido.
Pois não?
Fitei-o de onde estava, com o sobrolho carregado e subitamente absorto das incógnitas que a floresta escondia. O saco castanho não era maior do que algumas abóboras que eu tinha visto na horta da dona Arménia, e tinha a mesma forma arredondada. “Tudo o que sobrou do corpo foi o crânio do Cisco”, pensei.
O vento levantou as folhas caídas do Outono e elas oscilaram à minha volta, fazendo redemoinhos no ar antes de caírem noutro sítio. A chuva continuava a cair preguiçosamente sobre o mundo e as gotas tamborilavam no saco como se fossem dedos a pedirem que o abrisse. Um grilo cantou uma musiquinha alegre como se zombasse das minhas dúvidas. Um corvo – se calhar o mesmo que eu perdera no ar – pousou sobre um galho no chão a um metro de distância, esperando que a ceia fosse servida. “Passareco tonto, o Cisco já não tem nada para ti”. O bico virado para o lado deixava um olho da cor das suas penas fixado em mim. Arrepiei-me só de pensar que talvez fosse eu em quem ele estivesse interessado.
- Xô – gritei-lhe – Vai-te embora!
Se havia corvos que conseguiam replicar algumas palavras, não havia nenhum que as compreendesse, e este não era uma excepção. Nunca imaginei que os pássaros da floresta se aproximassem tanto de pessoas, pelo menos pessoas vivas. Mas a ousadia deste não deixava de me fascinar. Talvez se lhe atirasse com uma pedra ele compreendesse. E foi isso mesmo que fiz. Já vos disse que sou fraco, sempre fui, mas a um metro de distância até o meu pai bêbado teria acertado pelo que não falhei. Foi mesmo em cheio no bico, “10 pontos”, pensei. O pássaro protestou qualquer coisa antes de desertar para uma árvore com algumas penas caindo pelo caminho.
Já alguma vez estiveram à beira de um abismo? Sentiram aquela força a puxar-vos para que saltassem? Não sei porque é que isso acontece nem sei se já houve alguém no mundo a saltar só por ter sentido o puxão. Tudo o que sei é que a força, embora fraca no início, é insistente e só aumenta conforme o tempo que passamos a olhar lá para baixo. O mesmo magnetismo (chamemos-lhe assim) foi o que me fez olhar de novo para o saco. Junto aos meus pés, parecia de certo modo estar impossível de alcançar mesmo que me agachasse. O que não tinha muita lógica para os meus sentidos tridimensionais. E como eu ainda não tinha tocado nele, o impulso para o fazer aumentava a cada batida do meu coração. O ponto de ruptura surgiu quando nada o fazia prever, como o primeiro passo para saltar. Devia ser assim que acontecia, chegava uma altura em que mesmo que quiséssemos voltar não conseguíamos. Nem valia a pena gritar pois o fim do abismo é também o fim de quem desiste de viver. Apalpei o saco sentindo-lhe o couro ensopado da chuva e por baixo o sólido crânio do Cisco (recusei-me a pensar em que parte exactamente eu tocava). O pior de tudo foi perceber que ainda estava a cair e que o saco teria que ser aberto. Um cordelinho de lã atado com o nó mais simples que eu já tinha visto era tudo o que me separava do meu irmão. Não percebia como é que o saco não se abrira sozinho durante a caminhada. O corvo – o mesmo corvo – voltou a pousar exactamente no mesmo sítio, com menos penas mas com mais vontade do que nunca para comer. Desta vez não lhe dei importância, até porque mesmo que quisesse não podia voltar atrás.
Por fim acabei por puxar a ponta do cordel e escancarei a boca do saco. Se as coisas até aqui pareceram estranhas, então esperem só para saberem o que é que aconteceu. Espreitando para o interior do saco não consegui à primeira vista perceber o que é que estava ali. Sabia que ia encontrar o meu irmão, claro, mas estava habituado a olhar para ele com carne e pele. Nunca acreditei em divindades, sou inteligente, mas quando um trovão caiu ali perto, exactamente naquele momento, dei por mim a agradecer a um Deus desconhecido. A luz do relâmpago iluminou a floresta e eu absorvi como se fosse de dia cada detalhe. O troar que veio pouco depois teria sido suficiente para me acagaçar por debaixo dos cobertores caso estivesse em casa, numa noite normal. Mas como nada daquilo era normal, fiquei prostrado com uma cabeça que não era minha entre as mãos. Já tinha visto crânios de cabras e de porcos no campo. Quando éramos pequenos, eu e o Cisco dávamos-lhes nomes e houve até uma vez em que o Cisco trouxe para casa o crânio de um cão. Naquela altura a minha mãe ainda era viva e obrigou-o a ver-se livre dele. Porque ela estava muito doente, o Cisco não protestou e obedeceu. Como teria reagido a minha mãe se eu aparecesse em casa com o crânio do próprio filho? Não sei, confesso que não sei. Eu próprio, embora andasse com a cabeça dele há quase uma semana, nunca tinha olhado para ela. Não pensem que sou um tipo perverso por ter tido atenção ao estado do crânio mas a verdade é que sendo seu irmão não podia deixar de me preocupar. Só naquele momento me apercebi das suas verdadeiras dimensões, não era de admirar que pesasse tanto. Como seria de esperar, no sobrolho tinha uma fissura mesmo à medida da lâmina de um machado. No lugar dos olhos haviam sido cavadas duas órbitas grandes o suficiente para caber em cada uma o meu punho fechado. O sítio onde devia estar o nariz fora reduzido a dois pequenos orifícios unidos no meio fazendo-me lembrar as asas de uma borboleta. O que me cortou a respiração foi ver que estava a sorrir. Não com todos os dentes porque tal como nos outros animais, os dentes acabavam por cair. Mas ainda assim, o Cisco estava claramente contente.
Foi então que ele abriu a boca.
Eu disse-vos que as coisas iam ficar atribuladas. Naquela noite estava muito vento caso ainda não tenham a imagem na cabeça, e, tal como quando uma janela fica aberta, o ar entrava e saía dentro do crânio do meu irmão, produzindo o mesmo som dos búzios do mar. Apesar disso, quando a mandíbula descaiu, senti o cheiro a podre acumulado no interior, oriundo de sítios onde nem a corrente de ar chegava. No ponto onde o maxilar se unia, devia haver uma articulação partida, a julgar pelo “roc-roc” que fez, como se fosse uma porta a ranger por falta de óleo.
- Irmão – disse com a voz desconcertante do Cisco – É bom ver-te.
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menina, mulher.
Quem és tu, enigma ou indecisa? Porque foges? Que medo é esse que te isola? Quem te feriu assim tão gravemente que pareces viver debaixo de uma ameaça constante? Porque te revoltas tanto? És diferente, profundamente diferente. És tímida disfarçada, e pareces envergonhar-te de ti mesma. Erras como todos, mas insistes em revoltar-te, em gritar para depois te esconderes e seguires um rumo diferente. Desistes depois de lutas épicas sem esperar para ver os resultados, abadonas-te a ti mesma, deixas de acreditar e choras… porque o mundo não te compreende. Quem és tu, menina, mulher? Tudo muda, até os pilares da criação, e tu… tu mudaste uma vez mais. Abandonaste o teu passado antes mesmo de ele passar. Esqueceste os que foram algo, ignoraste os que quiseram ficar, viraste as costas, e imóvel aguardaste que se fossem eles embora. Será isso? Queres mesmo parar no tempo? Queres mesmo ficar para sempre sem saber como é ir em frente?
A gentileza dos teus gestos devia ser permanente, sabes? Devias olhar um pouco para ti, e descobrir de que cor queres pintar os teus dias, cobrir esse sépia envelhecido que vais deixando a cada passo.Os teus bolsos são demasiado fundos, e esses nadas demasiado pesados.  
Mais uma batalha, com silêncios de espada em punho, e olhares de caçadeira nas mãos. Pedes mais uma chance, revoltas-te e nem dás conta das ondas que produzes à tua volta, como uma enorme pedra atirada para um charco.  
Mais uma hipótese, as coisas mudam, vai ser diferente. Sei que no fundo também não acreditas nessa mudança, e de cada vez que sorris, os castelos derretem e naufragas novamente deitada na tua própria cama.
O amor há muito passou a memória, a memória há muito passou a ódio, e o tempo… há muito que apenas passou.
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You sin (1)
You see, I’ve never been much of a great guy. There was a time I thought I was, but not anymore. First, Laura wanted to marry me - I didn’t. Fuck, I didn’t even want to Fuck her. But I did, of course. Fuck it. Then she asked me what was troubling me since my eyes seemed so distant from this world. I lied. If there’s anything I am good at is lying. But she didn’t know that at the time. So I told her I’d been tired, my job was even worse than me (this last bit at least was true). I guess she didn’t truly believe it but no words of defiance came out of her mouth. And god knows talking was the second best thing her mouth could do. I wish I was a better person so I could stop saying things like these. My mouth doesn’t really excel at anything. It’s fine, I just wish to be a better person. I don’t even write the word god with capital G as you may have noticed. I could but I won’t. And that just makes it worse. I don’t believe in the greater good; there is no god, there’s only pure human Fuckery.
When she told me again that she wanted a baby, I didn’t speak. “What’s the matter with you?” but my eyes never left the floor; my mouth shut like a tomb. “You dont love me anymore, I can see it”. It was true. If only I was a better person, maybe I could have loved her. But I wasn’t and I didn’t.
“Why don’t you say it? you coward”. She never had been so right in her whole life. Worst of all, I started to cry like the man I wasn’t (here’s your baby darling, here’s your god damn little newborn wanna hold him?). My fists were clenched like two white stones, fingernails piercing flesh, blood driping to the floor. She must have seen it and turned her back to me. I looked at her. god, she was beautiful. If only her back was her front and her front was her back. See? I told you I’ve never been much of a great guy.
I tried to touch her shoulders but, because of my tears, she seemed sooo far away as If I was seeing her through the wrong side of a telescope. I needed a glass of whiskey, my lips were like sandpaper. And what could I say? Sorry? Did I really think that would have been enough after all I didn’t do?
“You want to leave me… but you won’t say it. You can’t leave”
(Wish I could, baby) “That’s not true, baby” I finally managed to say.
“So why? Why don’t you want a baby?”
“I want, I swear I do” (but not with you… that’s all. I’m not even lying this time)
She started taking off her jeans. Her black hair hung in the air hiding her face, like a curtain hiding the stage for a bad play.
“Come then, I’m not horny now, but we can do it right here”
“There’s no need. I’m late for work”
“You don’t even like your work”
(oh but I dont even like you, baby, and here I am) “I can’t be late”
“Go then. Run away like you always do. Dont forget your lunch bag and take your cowardice with you”
“okay”
“okay? Is that all you have to say?”
(I have so much more to say, you would never believe it) “ umh umh”
She pulled her jeans again and left, shutting the door behind. Perhaps another guy would have ran after her, kissed her lips and made love to her right there on the floor. Maybe that doesn’t even require a man of love but I just… didn’t feel like doing it. My mood was someonewhere else.
Since I’d never been much of a great guy, I had bought a second cellphone with the money I got every month from my shit job. We were always arguing about babies that would never be and dream marriages which to me felt more like nightmares. So I got another person to talk to. Another woman. You know, just talking, nothing wrong. Then was the time when I still thought there was some good inside me; when I believed in souls and wrote god with capital G. Looking back I think buying that phone was like buying a gun to commit the crime I was yet to understand.
I met Fiora on the internet through live chat. First we only talked at nights when my ought-to-be-wife fell asleep like a princess. One night Fiora asked me to turn on the webcam - she “really wanted to see me”. A phrase I had forgotten for a long time. So I turned it on without thinking twice. “Oh boy, you are one of a kind” she wrote in pink inside the small text box. I blushed, thankful for the only dim light inside the room, coming out of my computer. It was almost full dark, but still, she saw another thing. “Is there someone on that bed behind you?” (Fuck) “Yes” I wrote back. “Who is it?” I wanted to lie. But this time I had made a promise to myself: no more lies from now on. I really didn’t want to mess things up with this new woman. So, against all odds I said she was my sister. “ohh I hope she doesn’t wake up because of us”. At the time my heart was pounding inside me like a drumstick played by a really angry musician. I was afraid to wake her up with it, so, eventually I called it a night and we both wrote “I like you very much, goodbye”. I layed beside Laura and didn’t sleep until 5 a.m, thinking about Fiora. Went to work at 7 after a very sweet dream.
Night-stand conversations started do feel like were not enough. We wanted to talk during the day too. So I bought the phone and we started texting almost 24/7. At this point my soul was starting to give way and although I'd never seen Fiora, I could picture myself with her. Talking but not only that. My thoughts were getting dirty. Dirtier. Remember that little crime I was yet to understand? I know this now: Every text I sent was a bullet thrown inside the loader. Sooner or later I’d have to pull the trigger. I wanted it to be later because I was a coward - always have been - and didn't want Fiora to know the real me. What if she saw through my flesh and bones? I've never been much of a great guy and Fiora deserved better. She deserved the world. Maybe all this had been a mistake.
The day after our last fight (this is, of course, if you accept one beating the shit out of the other without resistance as fighting), she called me during lunch break. Only it was my first cellphone and the name read Laura. My smile faded imediatly (fuck).
"hey" I said
"hey, we need to talk"
(oh, really?) "alright"
"What have you been doing?"
I poked my other pocket to make sure I still had the second phone there.
"What do you mean?"
"Today, how's work?"
"Oh... lovely"
"you seem distant baby"
(I'm preety much distant yes, I must be on Mercury judging by the temperature. Maybe this is Hell. You see, darling, I've been a bad bad boy. I don't love you, I love another. I won't tell you because I left my balls on Earth and now I want to hung up and carry on finishing my shitty lunch and doing my shitty job. Goodbye, au revoir) "Why are you always saying that?"
"Because you are always distant"
"I'm just tired"
"You always say that"
"You always ask why I'm distant"
"Okay. Baby, listen, Im sorry that I talked to you like that yesterday. It's just that... before, you were not like this"
She had apologized, alright, but I was still her coward and we both knew that. I wanted to tell her a lot of things but I didn't.
"Its fine"
"okat baby, have a nice day" and this was what she meant by the need to talk bullshit.
(I hope you die) "you too"
"I love you"
"I love you too darling" 
Lies.Lies.Lies.
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