A CAIXA DE GIZ AMARELO
Um véu translúcido de pó acumulado cobria a superfície de madeira da mesa. Trazia consigo o peso dos anos que, parado solitário, havia se tornado um objeto parte da mobília. Iluminada por um feixe de luz no centro do móvel, havia uma caixa cheia de gizes de cor amarela.
Sentada em uma cadeira ao lado da mesa, havia uma figura humana de saia longa, cujos dedos grossos, cegos e caducos insistiam em desenrugar o tecido liso de sua vestimenta. Uma figura menor brincava logo à frente, em cima de uma poça d'água, umidificando o ambiente quando seus pés incessantes espalhavam o líquido ao redor. A umidade trazia aconchego.
O sol nasceu, mas não havia horizonte. As sombras dominavam todo o ambiente, mas não havia telhado. O corpo pequeno pulava em um ritmo descompassado, e o relógio de parede marcava um tempo que não existia.
- Venha aqui.
A figura, sentada na cadeira, olhou para a outra pequena que pulava.
- Venha aqui, tenho algo para você.
Fisgada pela curiosidade, a pequena fixou os pés no chão e caminhou até a mesa. Na ponta dos pés, tateou toda a superfície do móvel com uma das mãos. A caixa de giz, porém, agora, repousava no colo da outra figura. A serenidade disputava espaço com a curiosidade, e as batidas que ecoavam vindas de lugar nenhum eram o único indício que poderia tornar aquele lugar provável.
- O que é isso? - perguntou a pequena forma humana.
- É a sua herança. - respondeu a outra figura.
De pé, era possível notar a diferença entre as duas, uma delas era tão grande que obrigava a outra a olhar de cabeça erguida.
- Venha comigo.
As duas caminharam pela escuridão e encontraram uma enorme parede. Não era possível saber onde ela terminava e após a terem encontrado, já não era mais possível saber onde começava também. Estavam cercadas por paredes.
Os braços da figura envolveram a pequena forma humana, um fio saído do corpo da maior percorreu as veias e nutriu o coração da outra em seu colo. Naquele momento, a menor se tornou uma criança, nua, desengonçada, quente pelo calor que emanava do corpo da figura que, agora, era sua mãe.
A mãe desenhou um quadrado amarelo na parede, usando um giz amarelo da caixa.
- Desenha e imagine o lugar para onde quer ir. - explicou a mulher ao entregar o giz na mão da criança em seu colo.
O quadrado na parede ganhou um preenchimento branco que tremeu por alguns segundos até que pequenas formas geométricas emergiram dele, flutuando soltas e ao se encontrarem, formam a imagem de uma casa de alvenaria com uma árvore de frente a ela, que chacoalhava suavemente ao ser empurrada pelo vento.
- É a nossa casa, mamãe! - exclamou a criança arregalando os olhos e abrindo um sorriso.
Seu corpo foi, então, jogado para frente, de encontro com o quadro na parede, o peso fez uma forte pressão, rompendo a película que a mantinha naquele lugar escuro e jogando-a para o outro lado, dentro do desenho, onde a casa de alvenaria estava atrás da árvore esvoaçante.
O novo mundo era frio e seco, e o rosto da criança se contorcia ao chão. O gélido orvalho rasgou os primeiros sentimentos, ainda pouco concretos, que brotavam em seu interior, e a paisagem forçou seus olhos a se abrirem.
Nos braços de seus pais, a criança agora era uma menina. Nas mãos da pequena, encontra-se um giz amarelo de ponta usada. Inquieta, ela desceu e engatinhou até a casa, onde, apoiada em uma das paredes, levantou-se e, com passos incertos, foi até o corredor, onde as palavras de seus pais, emaranhadas de carinhos, fortalecem seus calcanhares e fizeram correr solta por todos os cômodos. Cada parte que tocava ganhava um som e uma cor, e logo tudo era um arco-íris sinfônico.
Haviam muitas cores. Haviam muitos cheiros. E havia também o cantarolar de sua mãe que podia, com um abraço, a fazer recordar de um sonho que já não sabia que o tivera.
Mas a menina crescia mais rápido que a casa era capaz de abrigar. Não cabia mais na cama. As roupas já não lhe serviam. Crescera tanto que nem no quarto podia ficar. Os ombros doíam, não podia esticar as pernas e já não era mais confortável estar em nenhum lugar dali, porque tudo parecia quebrar com sua imensidão.
- Eu vou desenhar um quadrado na parede. Quero ir para um lugar onde haja muito espaço e onde eu consiga esticar as pernas. Mãe, pai, venham comigo.
- A casa é tudo que tenho, não posso ir com vocês. - respondeu sua mãe. As mãos com rugas recentes acariciaram o cabelo da filha.
Uma lágrima cortou o último fio que ainda as conectavam. O coração da menina, que ainda era e sempre seria sua menina; continuou a bater como antes, mas o de sua mãe vibrou tímido a medida que a via desaparecer dentro do desenho junto ao pai. A menina ultrapassou a figura na parede, mas sua mãe jamais sairia do primeiro quadrado que a havia definido. Silêncio retomou ao lugar que um dia foi colorido.
O mundo agora era frio e metálico. Era preciso roupas grossas para poder se movimentar por aquele lugar feito apenas de máquinas e pessoas que se comportavam como as máquinas que as manipulavam.
De mãos dadas, a menina acompanha o pai que tudo sabia sobre as máquinas e os botões que as mexiam. Céu de metal, um sol de cobre que, a cada 24 horas, era substituído por uma lua através de um sistema de engrenagens. Cheiro de óleo diesel e glifosato pelo chão. Só era possível andar por filas intermináveis, e as conversas eram programadas pelas mesmas máquinas que diziam a hora de sorrir.
Todo dia era a mesma rotina, nada mudava. O sol, o óleo, as máquinas e os mesmos rostos virados ao chão. A menina já sabia tudo sobre aquele mundo, sobre suas máquinas, seus botões e engrenagens. Já não havia nada que não soubesse e, então, tudo começou a diminuir. Seus dedos eram grandes demais para apertar os botões e seus braços se atrapalhavam no manusear das engrenagens.
As mãos de graxa procuraram no bolso o velho giz amarelo que, desgastado, estava pela metade. Chamou seu pai, mas ele estava surdo com o barulho do maquinário, não podia mais escutá-la. Precisou olhá-lo face a face para que pudesse entender as palavras que saiam pelo fio de seu coração.
- Pai, eu vou embora. Venha comigo, vamos para um lugar novo.
A menina o puxou pelos braços para que entrasse no quadrado de borda amarela na parede, mas o homem recuou.
- Estou cansado e tenho medo. Não posso deixar este mundo. - falou o senhor de rugas cicatrizadas.
Ele, então, dentro da fila, virou parte da linha de produção e desapareceu. Antes que ela pudesse o reencontrar, um buraco negro se formou na parede onde o quadrado estava desenhado e sugou a menina, jogando-a ferozmente no meio de um céu e fazendo-a cair em alta velocidade em direção ao solo. Enquanto caia, a imagem do mundo de metal foi se liquefazendo em seu horizonte, até que sumiu completamente com a forte pancada de sua cabeça de encontro do chão.
No chão, jogada, não tinha forças para levantar. Ficou imóvel, as pálpebras tremiam com a luminosidade da realidade. Era quente, muito quente naquele novo mundo. As mãos secas sangraram quando empurraram o chão na tentativa de se levantar. Foi então que decidiu procurar em seu bolso o último pedaço de giz, e em linhas tortas, desenhou um quadrado imperfeito. Surgiu uma imagem borrada de uma casa de alvenaria, fraca e esbranquiçada. Um casal de idosos sorriu em frente uma árvore que se movia calma ao ritmo do vento.
- PAI, MÃE! - chamou a menina, mas a imagem estava distante, muito distante e começou a desbotar.
A imagem foi desaparecendo, deixando para trás apenas um vidro grosso, que virou um espelho refletindo o rosto dela que, pela primeira vez, se deu conta de que não era mais uma menina. A criança deixara de existir.
Enquanto ela se observava no reflexo, uma mão tocou seu ombro. Era um jovem que havia caído naquele mundo igual a ela. Com sua ajuda, a mulher se levantou e olhou ao seu redor, onde não havia nada, apenas um infinito branco e quente. Um mundo sem nada, além de paredes que brotavam do chão a todo instante e cercavam os jovens que não paravam de cair. Eram muitos jovens, eram muitos muros e mais nada.
Todos os jovens que se levantavam, olhavam-se e nada diziam. Silêncio, calor e um imenso vazio.
A mulher olhou para as mãos, manchadas dos restos de seu antigo giz amarelo. Dentro de si, todos os mundos que ultrapassara alimentaram a força das batidas do fio que vinha do seu coração. O fio pulsava nela e ela era mais forte do que antes. O fio pulsava em todos os jovens que um dia tiveram um sonho do qual já não recordavam. De cabeça erguida, todos outros ali repousavam sem saber para onde olhar. Mas a mulher de mãos manchadas olhou para frente. Não havia horizonte ainda, mas seus olhos sabiam onde se fixar.
- Vamos criar nosso próprio giz.
Luiza Mello
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UM SEGUNDO
É um lugar muito pequeno, minúsculo, há uma casa feita de madeira com o telhado quebrado e um oceano rodeando a ilha como um deserto de água.
Há apenas uma casa e um coqueiro. Há apenas uma casa, um coqueiro e um homem velho.
O homem velho acorda todos os dias, pega um coco, pesca um peixe e conserta o telhado quebrado. Todos os dias o homem velho faz o que tem que ser feito.
A ilha é cinza e o homem velho verde. Uma boneca vermelha aparece no horizonte. O oceano cinza, de ondas cinzas traz a boneca até a beirada da praia. O homem velho fixa os olhos na boneca. Ele pensa que é um peixe, mas o gosto é ruim e decidir não comer.
O homem velho acorda todos os dias, pega um coco, olha a boneca, pesca um peixe e antes de consertar o telhado quebrado tenta entender a boneca.
A boneca é uma companhia para o homem velho. Todos os dias ela assiste o homem velho pegar um coco, pescar um peixe e consertar o telhado. Então o homem velho decide contar tudo que sabe sobre o mundo para a boneca: o oceano cinza, o coqueiro, os peixes e a casa.
Um dia o homem não acorda. Ele não pega um coco. Ele não pesca um peixe. Ele não conserta o telhado. A boneca fica onde o homem velho a deixou. O oceano cinza invade a ilha, cobre o homem velho, a casa e o coqueiro. A boneca flutua e é empurrada pelas ondas cinzas do oceano. Nada pode parar a boneca, porque não há mais nenhuma ilha.
O oceano cinza, então, diminui. Quase seca. Sobra apenas uma pequena poça d'água e a boneca flutua sobre ela. A paisagem mudou, o mundo mudou. Todo o processo que levou o imenso oceano cinza a virar a pequena poça d' água onde a boneca agora flutua aconteceu antes mesmo do relógio humano completar um segundo.
Os pés de uma garota tocam a areia ao lado da poça d' água. O mundo da garota é um pequeno planeta azul, minúsculo, rodeado por outros planetas e galáxias e ela decide contar a boneca tudo que sabe sobre ele.
Luiza Mello
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