1 • Trauma
KAYRA
Poderia dizer que tudo começou quando minha filha nasceu, mas seria errado, porque tudo começou no colegial, apesar de uma criança te acordar e te fazer perceber que a vida é mais que festas e bebidas.
Conheci o Justin quanto tinha só dez anos, estudamos juntos, na mesma turma, sempre, nos formamos no fundamental, e um dia, ele me convidou para ir ao baile com ele, no primeiro ano do ensino médio.
Primeiro, era somente sobre ele ser meu melhor amigo, morava quase ao lado da minha casa, nos conhecíamos desde muito novos, mas algo mudou no nosso último ano.
Namoramos, nossos pais adoravam, porque já o conheciam e não foi o maior dos problemas. Foram cinco anos, desde os meus dezesseis anos pensando que o amor da minha vida sempre esteve ao meu lado.
Só que um dia, eu e ele nos acordamos do sonho.
Percebemos que, talvez, como casal não funcionava, somente como amigos, chegamos a um acordo, nenhum saiu triste, foi uma decisão dos dois, e ele continuava morando perto, cinco minutos da minha casa, talvez nem isso.
Ele continuou indo conversar comigo, íamos ao mercado juntos, naquele tempo, de quase cinco meses separados, me contou sobre uma outra garota, e eu contei sobre estar tentando também, e era tão...normal?
Não me sentia estranha tratando ele como um amigo, e ele parecia aliviado por me tratar como uma amiga também.
Até que a bomba estourou, e descobri que estava grávida de quatro meses, e pelo tempo, só podia ser de uma pessoa.
Fiquei com medo de contar, mas precisava ser feito, e tudo que ele disse foi: Tudo bem, vamos dar um jeito.
Meus pais ficaram bravos, disseram que não era saudável e super difícil criar uma criança sozinha.
Teoricamente era sozinha, apesar do Justin ter me ajudado muito. Ela morava comigo, então, eu precisava estar sempre correndo.
Jamais faria aquilo por ninguém, mas a diferença de ser sobre um filho seu, é que por mais difícil que seja, tudo se torna gratificante no final.
- Não deixa ela comer Nutella, sente dor de barriga depois.
- E sorvete? Ela pode? - Rolei os olhos.
- Só depois do almoço.
- Que chata...
- Estou falando sério, ela precisa saber que tem regras. - Cerrou os olhos.
- Vou respeitar, mas só porque é você. - Entreguei a bolsa para ele. - Ela volta na segunda a noite, certo? Eu te ligo caso algo aconteça, e...ela provavelmente vai querer falar com você.
- Não esquece que ela fala, se a sua namorada tratar ela mal, eu vou saber...
- Kay, se qualquer pessoa tratar a Bella mal, eu mesmo faço questão de expulsar do meu círculo social. - Sorri, satisfeita. - Inclusive, aonde ela foi?
- Oh, ela está dormindo. - Levantei do sofá. - Eu não quis acordar, mas se você...
- Não, pega ela, vou colocar as coisas no carro.
E a semana do pai começava, a parte boa de ter a guarda compartilhada era aquela, e por qual motivo? Faxina completa na casa, por mais horrível que fosse admitir.
Nem se mexeu quando a peguei no colo, o banho e a roupinha confortável provavelmente fez com que sentisse sono. Levei ela até o carro, a deixei na cadeirinha e beijei a testa dela, era sempre difícil, por mais que fosse com alguém confiável.
Ele me abraçou e beijou meu rosto, prometendo que ninguém ia tratar ela mal e que na segunda estaria de volta. Apenas assenti, sorrindo.
Suspirei, e disse ao meu próprio cérebro que tudo bem, a namorada do J não ia tratar a minha Bella mal, e que ela não precisava ser necessariamente a rainha má dos contos de fada.
- Ela foi com o pai hoje?
Lorence, a minha vizinha, uma senhora de sessenta e poucos anos, um pouquinho sem noção, fofoqueira e que sabia cozinhar muito bem. Me recebeu com uma fornada de biscoitos quando mudei para o bairro.
- É o fim de semana dele. - Falei simples, sem dar tanta informação.
- É uma pena. - Franzi o cenho. - Que sejam separados.
- Foi melhor para nós.
- Ele é um bom homem.
- Com toda certeza.
Sorri, e saí antes que começasse a falar mais. O elogio dela teria sido normal se não a conhecesse, sabia que acobertava o Justin e pensava que provavelmente eu era uma vagabunda que prendeu ele com um filho.
O que não chegava nem perto de uma meia verdade.
Sempre trabalhamos, os dois, e o consenso da separação chegou antes da notícia da gravidez, e desde que a Bella nasceu, expliquei tudo para ela, sobre o papai não morar com a mamãe, porque eles eram apenas amigos, e também tinha a terapia, nenhum de nós queria que ela ficasse confusa.
Peguei minha bolsa, liguei e fui em direção a maior festa da minha vida.
Mentira, era só o mercado.
Eu não evitava ir ao mercado com a bebê, mas era mais fácil e rápido sozinha, e visto que não tinha nada melhor para fazer, fui até lá.
Fazia uma lista típica no celular e comprava tudo que precisava, incluindo o cereal colorido dela e os biscoitos sortidos sabor chocolate e morango.
Fazer compras era sempre uma tarefa difícil para qualquer dona de casa, primeiro pelo tempo, o escritório que eu trabalha por meio período me fazia ter preguiça de qualquer coisa quando chegava em casa, e depois porque tudo custa uma fortuna, não só as compras do mês, mas manter uma casa era cansativo.
Sorri sozinha quando vi um pote de Nutella, ela não podia comer sempre, mas eu sim, então, cometeria o pecado de comprar e comer sozinha. Mães sempre têm seus segredos.
Deixei o carrinho no corredor e fui até o final, apenas para pegar uma embalagem de salgadinho, nem olhei para frente, e pelo visto, o outro ser humano também não.
Nossos ombros bateram fortemente e o barulho de algo caindo foi característico e até alto, e depois senti alguns respingos.
Até me dar por conta que duas caixas de leite estavam no chão, uma sobreviveu, a outra não.
- Merda. - Ele murmurou, em inglês.
Franzi o cenho na hora, estávamos em Quebec, no Canadá, era raro escutar inglês e não francês, apesar de não ser tão assustador encontrar alguém que falasse as duas línguas.
- Desculpa. - Falei no mesmo momento. - Eu...eu não te vi e...
- Ei! - O encarei, e ele só sorriu. - Não adianta chorar pelo leite derramado, não é?
Pelo visto falava as duas línguas, só mais um morador comum, e sorri aliviada quando ele riu, pegando a outra caixa do chão.
- Eu pago pelo leite, e pelo outro que você provavelmente vai repor no lugar desse...
- Não precisa, foi só uma caixa de leite. - Levantou, com a outra caixa na mão, a sobrevivente. - Duas caixas eram mesmo exagero.
- Mesmo assim, foi eu quem bati em você.
- E quem garante que não foi eu? - Levantou as sobrancelhas. - Harry, a propósito. - Estendeu a mão.
- Kay. - Ele sorriu, e apertei a mão. - Bom, ainda acho que foi eu...
- Mas acho que foi eu. - Cerrou os olhos. - Não gosto muito de perder, acho que seria bem importante dar uma olhada nas câmeras...
- Seria muito exagerado? - Pensou por momentos.
- É, talvez.
Rimos baixo, e ele encarou a caixa de leite na mão dele, enquanto eu encarei meu pacote de salgadinhos, dando uma olhadinha no semblante animado de alguém que acabou de perder uma compra e provavelmente teria que pagar.
Pessoas simpáticas, nunca entendi muito essa espécie.
- Então...
- Eu pago, é isso. - Disse rápido. - Foi um prazer, tenha um bom dia, e o mais importante, senhora...
- Senhorita. - O corrigi.
- Bom saber. - Sorriu largo, me deixando com vergonha. - E o mais importante, não esbarre em mais ninguém com caixas de leite. - Riu baixo. - Vou chamar alguém para limpar, foi um prazer.
- É...acho que foi.
Aquela foi a coisa mais ridícula que eu já disse para um homem bonito, e quando uso o termo "homem bonito", me refiro a alguém simpático, e compreensível que merece mais que um "acho que foi".
Ele só sorriu, e deu meia volta, desaparecendo no corredor. Corri até o carrinho e joguei o pacote de salgadinho dentro, e me dirigi ao caixa.
Fiquei constrangida de não ter pago pelo leite, e não queria ficar lá até alguém aparecer para limpar, seria tipo bisbilhotar o serviço dos outros, então só fui pagar pelas minhas compras.
Deixei tudo no carro, coloquei o carrinho de volta e lá estava eu, voltando para casa, retirando as compras do carro, guardando tudo e aproveitando para limpar armários.
Roupas lavando, depois na secadora, o pó sendo limpo e o barulho do aspirador por sorte não era tão alto contra o carpete. Arrumei todo o quartinho da Bella, incluindo o espaço para os brinquedos e depois arrumei o meu, e os banheiros.
No final do dia, eu só queria sentar no sofá e assistir algo legal, mas nem a televisão compensou, então peguei meu celular.
Face time nunca foi tão legal, antes eu não gostava, mas ficar sem falar ou ver o meus pais o chateavam muito.
Não moravam tão longe, era na cidade próxima, pouco menos de meia hora de carro, e se tinha algo que eles amavam, era a neta deles.
Filha única, fui criada sozinha, na companhia de uma prima, mas nunca fomos tão próximas. Minha mãe tentou ter outros filhos, mas nunca conseguiu, parou de tentar depois do segundo aborto, quando eu tinha onze anos.
Eles costumavam dizer que eu era o milagre deles, a semente que deu certo, a luz da vida deles, e muito mais. Talvez, por aquele motivo eu me contesse tanto.
Queria que tivessem orgulho de mim, eu era a única filha, alguém precisava fazer o trabalho duro, e por aquele motivo, criava a Bella sem pedir nada, para eles conseguirem perceber o quanto eu podia ser independente.
Criava uma filha sozinha, cuidava da casa, trabalhava, e eu precisava fazer tudo aquilo, eu queria fazer aquilo, cuidar de uma criança que passou a ser a minha prioridade.
Suspirei, naquele sofá ridiculamente aconchegante, chamada encerrada e a televisão sintonizada em algum canal de filmes que eu não fazia a menor ideia do que era.
Levantei e saí pela porta dos fundos, arrumei toda a casa e esqueci de verificar a parte externa, mesmo que não fosse a melhor hora para fazer aquilo, quase escurecendo.
- Bella! - Franzi o cenho. - Bella! Tia Kay, a Bella está em casa?
Ri alto, olhando para o muro, mas não tinha ninguém. Obviamente o garotinho de quatro anos estava escondido atrás dele.
Fui até lá, e o espiei por cima da madeira, e ele sorriu, acenando com a miniatura de mão.
- Oi, Joe, tudo bem?
- Sim. - Assentiu, olhando para cima com um sorrisinho adorável. - A minha amiga Bella está em casa?
- Oh, hoje não...
- Ela saiu, tia?
- Saiu, querido. - Sorri com os lábios. - Saiu com o pai dela.
- Mas...ela foi lá hoje? - Ri nasalmente, e assenti. - E ela volta hoje? - Ri mais alto.
- Só na segunda, Joe, podemos ir ao parque juntos no próximo fim de semana, pode ser?
- Sim eu... - Franziu o cenho. - Tia, vou pedir para a minha mãe primeiro.
- Tá bom, é importante pedir antes, certo?
Ele assentiu, animado.
Joe era dois anos mais velho que a minha filha, e eram melhores amigos, depois que descobriram a arte de conversar através da madeira, falando alto e batendo as mãos na cerca.
Foi um dia mágico quando eu e a mãe dele os levantamos e eles se conheceram pela primeira vez, depois, a Bella ia na casa dele e ele na nossa, passavam bastante tempo juntos, além de frequentar a mesma creche.
- Joe. - A mãe dele sussurrou. - A tia Kay deve ter um monte de coisas para fazer.
- Coitada da tia Kay, meu único amigo é seu filho. - Ela riu.
- Isso é meio decadente para um círculo social popular. - Assenti, rindo. - E a Bel?
- Com o J. - Ela assentiu.
- Vai aproveitar a noite, então?
- Ah, é claro. Eu com certeza vou à uma festa muito popular, se chama dormir. - Ela riu alto. - Estou cansada, nem lembro a última vez...
- Nem me fale. - Rolou os olhos. - O meu cunhado chegou hoje de viagem, ele é legal, mas...fico sozinha, a única mulher, aí é difícil. - Deixou o ar escapar pela boca.
- Cunhado solteiro e encrenqueiro? - Apenas sorriu, ajeitando o cabelo do Joe.
- Não, ele é do tipo sério, mas mesmo desse jeito, me sinto deslocada, ainda mais porque ele vai dormir aqui, e...sabe? É difícil receber visitas que não sou acostumada.
- Ah, eu sei, no ano novo, eu e minha prima dormimos na mesma casa, saímos juntas, somos parentes e eu gosto mesmo dela, mas não nos conhecemos, sabe?
- É exatamente isso. - Suspirou, me analisando, sorrindo com os lábios, inclinando a cabeça em seguida. - Na verdade, você podia vir jantar aqui hoje.
- O quê? - Franzi o cenho, provavelmente fazendo uma careta junto.
- É, para eu não ficar sozinha, podem ser dois homens, e duas mulheres. - Sorriu largo.
- Chelle, eu não sei se deveria...
- Não vem com essa, o que você tem de melhor para fazer? Ficar deitada no seu sofá comendo chipps e assistindo série?
- Ei! Não fala do chipps como se fosse algo errado! - Fingi xingar.
- Por favor. - Chegou mais perto da cerca. - Vai ter mousse de morango...
- Não faz isso...
- E eu fiz barra de nanaimo...
- Tá bom! - Falei rápido, fechando os olhos, mas os abrindo logo em seguida. - Eu vou no seu jantar chato. - Ela sorriu largo.
- Te espero às sete. - Deu um pulinho. - Tchauzinho para a Kay, filho!
- Tchau, kay. - Abanou a mãozinha, e fiz o mesmo.
Passos lentos até a porta dos fundos, suspirando. Não queria realmente ir, mas Michelle estava certa, não tinha nada melhor para fazer, e se ficasse em casa, ia passar a noite preocupada com a minha garotinha, me perguntando se estava bem e o que estava fazendo.
Banho demorado, mas só por preguiça, não valia a pena exagerar, era um jantar em família, uma família que não era minha, mas pelas barras de nanaimo valia a pena.
Calça jeans, meu fiel vans preto e blusas de frio, sempre nevava no inverno, e a temperatura já estava de matar mesmo que a estação ainda estivesse no processo de mudar.
Eu podia dar uma de delinquente e pular a cerca de madeira, mas seria muito mal-educado, então fui andando, fiz a volta na rua até parar do lado contrário, na frente da casa, andando devagar até o desastre.
Barras de nanaimo, Kay, pense nas barras de nanaimo.
Bati na porta, e lá estava a Chelle, sorridente, praticamente me puxando para dentro.
- Pensei que não viesse.
- Trato, é trato. - A segui pela cozinha.
A casa dela era legal, não tão diferente da minha, só a paleta de cores dela que ia de rosa, para lilás e branco, enquanto eu preferia só o branco, bege, talvez alguns tons em vermelho ou laranja, mas nada absurdo.
Ela entrou na cozinha, e escutei os risos deles, provavelmente todos lá, e então entrei logo atrás, pronta para forçar um sorriso e cumprimentar quem quer que fosse.
- Escondam as caixas de leite. - Olhei na direção da voz. - Oi, não veio pagar pela caixa, veio?
- Ah...não. - Franzi o cenho levemente, o acompanhando com o riso baixo.
- Vocês se conhecem? - Chelle perguntou, tão confusa quanto o marido.
- Do mercado. - Ele disse breve. - Nos esbarramos, enfim. Boa noite. - Estendeu a mão.
- Boa noite. - O cumprimentei. - Oi, Mitch. - Dois passos na direção do marido dela.
- Oi, Kay, faz tempo. - Ri nasalmente.
- É o trabalho. - Dei de ombros.
- Muitos casos?
- Tem sido mais tranquilo agora...
- Você é da polícia? - Harry se intrometeu, nos fazendo rir.
- Conselho tutelar. - Ele fez um semblante surpreso.
- Ela é famosa aqui. - Rolei os olhos assim que Chelle disse aquilo. - E a melhor que temos no cargo, ela já esteve nos jornais.
- Ela exagera. - Falei rápido.
- Mentira. - Mitch se pronunciou. - Sabe aquele caso do garoto Harlo? - Harry assentiu. - Foi ela.
Ele virou o rosto, me observando, e sorrindo em seguida.
- Kayra Chambers, claro, sei quem você é. - Sorriu com os lábios. - E olha que nem moro aqui...
- O Harry é de Los Angeles. - Ri de novo, não sabia qual deles era o mais intrometido.
- Legal. - Falei, e me afastei, andando até o lado da Chelle.
Eles não falaram muito, na verdade, Harry passou a falar bem menos, mas percebia ele me encarando, provavelmente queria me perguntar sobre o caso.
Não era um troféu para mim, a Chelle ter tocado naquele assunto só me trouxe más lembranças.
O caso dos Williams não era diferente dos outros. A mãe e o pai do Harlo, um garotinho de três anos, e no começo tudo bem, eles eram uma das famílias mais potentes da nossa cidade.
Até o dia que fui ao mercado e vi Mary com o olho roxo, não tinha desculpa nenhuma para aquilo, e me equivoquei quando a segui até o estacionamento e disse que podia ajudar, ela me xingou, disse para eu não me meter e só o que fiz foi deixar meu cartão com ela.
Uma semana depois, as duas da manhã, recebi uma ligação de um número desconhecido, Bella estava com o pai, e eu não tinha nada melhor além de assistir séries até pegar no sono, então atendi.
Foi assustador, ela estava chorando desesperada e só sabia dizer "ele quer ele, ele quer meu filho", e "ele tem uma arma, por favor, me ajuda", em meio a soluços de choro, eu podia até sentir as lágrimas.
A única coisa que fiz foi vestir uma calça jeans e um casaco em menos de cinco minutos, peguei as chaves e digitei o número da polícia. Enquanto eu dirigia, dava as informações a policial.
Estacionei bruscamente, nenhuma viatura, então recorri a algo que nunca havia precisado antes, minha arma.
Eu tinha porte, não que ser do conselho tutelar seja uma série criminal, mas nunca se sabe.
Sai do carro e dei a volta na casa, os barulhos de alguém tentando arrombar eram característicos, e quando gritei para chamar atenção, ele se virou, apontando a arma na minha direção.
Tive medo de morrer.
- Você não quer isso. - Falei, calma. - Vai causar uma desgraça na sua família, e...
- A desgraça já foi feita. - Ele disse, sem parar de me encarar.
- E o que vai fazer? Matar seu filho? Grande ideia para consertar tudo.
- Não, ele não. - Riu. - Ela, aquela desgraçada!
- Você bateu nela!
- Eu nunca encostei na Mary, porra! - Estava bravo, eu sentia. - Nunca bateria nela, acha que em todos esses anos, com todo esse recurso e tecnologia, já não estaria preso? - Não baixamos as armas em nem um momento. - Você me conhece, Kay...
- Não te conheço, e nem quero...
- Qual é? Fizemos o ensino médio juntos, você sabe que não sou assim! - Falou rápido, gritando. - De que lado?
- Como assim?
- O olho roxo dela, de que lado?
- Direito.
- É, direito. - Foi quando olhei para ele, estava segurando a arma com a esquerda. - Não sou destro, aquela vadia burra não soube nem...
- Não fala assim. - O interrompi. - Abaixa essa arma, e eu te ajudo a resolver.
- Quem garante?
- Eu garanto. - Falei firme. - Falou do ensino médio, então sabe que trato, é trato.
Ele ficou quieto, e de repente, deu passos a frente, me entregando a arma, mas eu não podia abaixar a minha, então peguei da mão dele e o conduzi até a frente da casa.
Os policiais chegaram, o jornal local, a Mary com o olho direito roxo e o garotinho chorando, assustado, prometi ao Greg que daria um jeito.
E consegui, não sei como, mas desvendei o caso com a polícia, na verdade, eles nem queriam, disseram que era simples, o marido batia na mulher e depois do divórcio ele tentou matá-la, mas não era só aquilo, e eu sabia, algumas peças não se encaixavam.
No fim, descobrimos a verdade. Mary queria o dinheiro, metade dos bens dele, Greg era dono de quase metade da cidade, e ela, com parte do dinheiro, conseguiu comprar muitos imóveis no nome dela, ainda no casamento.
O garotinho, infelizmente contou que viu a mãe machucando o próprio rosto, e ainda nos disse que ela falava que era tudo culpa do pai, e que era para ele contar aos colegas da escola, porque ela "precisava de ajuda". Honestamente, preferia que ele não soubesse de nada sobre aquilo.
A questão mesmo foi que o uso de armas contra ela não estavam nos planos, Greg surpreendeu a todos.
No final das contas, ela foi presa, e ele também, por ameaçar de morte e todas aquelas coisas, mas teve direito a fiança, já Mary, não, e foi levada para a prisão da cidade de nascimento, no sul do Canadá.
Mesmo que Greg estivesse fora da cadeia, decidi que Harlo não podia ficar com alguém que recorreu a uma arma, então, passei a responsabilidade para os avós paternos dele, e liberei visitas constantes do pai.
No fim, apareci no jornal depois de todo o crime revelado, e só dei uma entrevista, não achei que aparecer demais fosse fazer bem para a Bella, então tentei esclarecer tudo de uma vez só.
Não foi grande coisa, mas o que veio a seguir foi pior.
- Kay? - Encarei a Chelle. - Você quer salada?
- Ah...não, valeu.
- Aonde você estava? Te chamei umas três vezes.
- Só...pensando.
Era o que acontecia quando alguém falava sobre aquele caso, eu ficava aérea, e alguém na mesa percebeu aquilo.
Eles estavam falando de alguma empresa, não entendi bem, e nem queria. Pedi licença e subi, aquela altura, depois de mais de um ano sendo amiga dela, eu sabia onde ficava o banheiro.
Fechei a porta e tranquei, peguei meu celular no bolso e abri as chamadas de vídeo.
- Fiz uma aposta com a Hanna, disse que não aguentaria até as nove sem ligar. - Justin disse, sem nem me dar oi.
- É, boa noite. - Ri baixo. - O que ela está fazendo?
- Brincando de massinha. - Sorriu. - Olha...Bel, a mamãe ligou...
- Mãe!
O alívio que surgiu no meu coração quando ela pegou o celular, e eu ri, Bella, aproximava o celular da boca para falar, e depois o afastava, para me ver na câmera, era sempre engraçado.
- Oi, meu bebê. - Acenei para ela, que franziu o cenho levemente.
- Mamãe, eu não sou um bebê, sou grande. - A fala indignada dela foi adorável.
- Eu sei. - Sorri. - Mas para mim, você é um bebê.
- Mas...mas eu não sou, mãe.
- Tá bom. - Ri. - O que você fez hoje?
- Eu dormi muito na cama grande do J. - Riu, olhando para cima, provavelmente para ele. - E comi sorvete de morango, é o nosso sabor favorito, e...
Fiquei escutando ela falar por uns minutos, sobre colocar areia do parquinho no cabelo, e depois o Jus pegou o celular, me prometendo que não tinha mais areia no cabelo dela.
E depois ele se despediu, dizendo que ia arrumar ela para dormir. Desliguei e guardei o celular, suspirei, com os olhos fechados.
Ninguém sabia do medo excessivo que eu tinha de algo acontecer com ela toda vez que eu lembrava do caso, mas nunca contei para ninguém, parecia muito bobo dizer que me traumatizei depois de pegar uma arma pela primeira vez, e pensar em atirar.
Passei água no rosto, sequei e me olhei uma última vez no espelho, canalizando a ideia de que estava tudo bem.
Abri a porta, e voltei para o banheiro, pulando se susto com o ser humano parado bem na frente dela, encostado na parede.
- Qual é o seu problema? - Riu, me analisando.
- Fiquei preocupado.
- E resolveu me seguir até o banheiro?
- Foi exatamente isso, na verdade. - Deu de ombros, e fiquei boquiaberta. - Não sou fã de mentiras.
- Percebi. - Olhei para o corredor vazio. - Vou voltar.
- Isso é mentira. - Parei de andar, e virei o corpo, para observá-lo. - Você pode até voltar, mas a sua mente não está aqui. - Saiu da parede, e deu alguns passos até mim. - Não quer estar nesse jantar, não é?
- Eu quero. - Queria mesmo, de verdade, a família da Chelle sempre foi legal comigo, o problema era a minha mente me sabotando. - Só...não foi um dia tão bom.
- Claro, o meu também não foi tão legal. - Deu de ombros. - Primeiro dei um azar enorme no mercado. - Rolei os olhos, o fazendo rir. - Depois eu passei o dia fora resolvendo umas coisas, e quando voltei, precisei escutar o discurso da Michelle sobre não comer o nanaimo, e eu já tinha pego dois, então...
- Escutar os sermões da Chelle nem sempre é fácil. - Ele riu, concordando. - Vou voltar.
- Justin é seu namorado? - Dei meia volta de novo.
- Não. - Depois continuei andando.
- Isso foi um "não, ele não é meu namorado" ou um "não, eu não tenho um namorado e podemos sair para jantar amanhã a noite"? - Fui obrigada a rir.
Parei no meio do corredor e virei o corpo, estava incrédula com a audácia, mas não foi o que meu rosto mostrou.
- Isso foi um "Não, eu não tenho um namorado, e não quero sair com você", tenha uma boa noite. - Continuei andando.
Murmurou algo, mas não escutei, desci as escadas e fui até a cozinha, sentei na banqueta bem ao lado da Chelle e não vi nem Harry, nem Mitch.
Ela ficou falando alguma coisa sobre fazer pilates, porque segundo ela, yoga era o esporte das mães, o que me fez rir.
Sempre gostei de correr, curiosamente, em qualquer horário, inclusive nas madrugadas, mas parei depois que tive minha filha, não dava para sair e deixar ela sozinha.
Fui para casa depois, sozinha de novo, caminhando na rua, observando as luzes das casas ligadas e pensando se eu teria um bom sono.
Deitei na cama, e dormi, o problema mesmo veio depois.
Minha casa inteira pegando fogo, e meu primeiro instinto foi correr para dentro, a Bella estava lá dentro, de alguma forma eu sabia que estava.
Então entrei, chamando por ela, e ela gritou, me pedindo ajuda. Subi o mais rápido que pude, não estava no meu quarto, nem nos banheiros e nem na sala de brinquedos.
A porta do quarto dela estava trancada, e não vi a escada, mas sabia que o fogo já estava quase lá, e a fumaça no andar de cima era característica. Bati na porta com meu pé, usei toda a força que tinha, e então a porta abriu.
A garotinha estava sentada na cama, agarrada ao coelho de pelúcia, e não olhou para mim, mas sim para algo a frente.
Eu mesma, segurando uma arma na direção dela, prestes a atirar, e eu sabia o que viria a seguir.
- Mamãe, por que está fazendo isso comigo?
Seguido do barulho do tiro, eu sabia que havia matado ela, mas nunca vi realmente.
Eu sempre gritava e tentava impedir a mim mesma, o que sempre resultava em um hematoma.
Abri os olhos, percebendo que estava gritando e estapeando a fechadura da porta dela, e suspirei, fechando os olhos e segurando minha mão.
Abri a porta e liguei o luz, o quartinho dela vazio e bem arrumado, nada de fogo ou fumaça e nem ela mesma estava lá.
Sentei na cama, e peguei o coelhinho do meio dos travesseiros, para encará-lo. Nem sabia ao certo o horário.
- Maldito terror noturno. - Sussurrei.
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