CAP. 1
Eu vejo tudo e ninguém me vê
A primeira raiada de sol nem chegara e o calor já era insuportável. Abriu os olhos, sentiu a camisa grudar daquele suor noturno. Se virou e tateou sobre o colchão até alcançar o fio do carregador e puxar o celular. Quatro da manhã, lá fora o barulho das vozes, motos e bicicletas já começavam a se erguer e se misturar. O lugar ali era pequeno, mas pelo preço era um bom lugar. Os únicos problemas eram as telhas de Brasilit. O fazia pingar de suor durante a noite, além das infiltrações, por conta de um cano quebrado da vizinha de cima. Ultimamente tinha dificuldade para dormir, alguma coisa o inquietava, um sentimento de algo por vir... Talvez isso fosse saudade, da esposa, do filho, de outros tempos.
Levantou-se calçando o coturno na beira do colchão, sentiu o aço duro e frio do bico encostando-se aos dedos dos pés. Chegara tão cansado na noite anterior, que resolveu vestir a calça do uniforme para dormir após o banho, economizando tempo na manhã seguinte. Pegou sua camisa de serviço, era de um azul acinzentado, com manchas de fuligem amarronzadas e pretas próxima ao colarinho. No bolso esquerdo lia-se “WCM Motors”. Abriu a janela da cozinha e colocou a água pra ferver. Olhando pra porta da geladeira, entre boletos e contas de água e luz, divagou acerca da vontade de sair daquele lugar, daquela rotina miserável, lembrou-se de alguns antigos amigos... Já não era mais aquela pessoa.
Bebericou o café forte e deu um trago no cigarro, se sentiu enfim acordado. A mistura do cigarro com o café lhe deixava um sabor confortável na boca. Deixou o copo pela metade e pegou as chaves e o cartão de serviço, trancando a porta e descendo de dois em dois degraus. O lugar onde morava era uma kitnet em um sobrado, com estruturas irregulares, quartos ainda por fazer, sem reboco pelo lado de fora. A proprietária, Dona Eunice, que morava no andar de cima, vivia lhe cobrando atrasos e bisbilhotando pela janela de seu quarto, sempre desconfiada de pudesse estar fazendo algo ilícito. Renê, como era conhecido, tivera seus tempos de envolvimento com o crime, mas como este mesmo dizia,- “paguei tudo, com juros”. Passou 6 anos em uma prisão, longe de casa, do filho pequeno. Seu pai, policial aposentado, jurou nunca mais o receber em casa, nunca o visitou, e segundo sua mãe, morreu de desgosto. O filho, ficara com a avó, e poucas vezes conseguia tempo para vê-lo. Para não enlouquecer atrás das grades, leu de tudo, se aproximou de irmãos de fé, do evangelho de Cristo, e prometeu pra si mesmo que quando saísse nunca mais voltaria.
Caminhou até o ponto de ônibus observando as feições dos moradores, ainda que cedo, era fácil notar o cansaço, claro, ele também sentia. O caminho era de mais de uma hora, entre baldeações e o metrô, revistas na entrada do bairro empresarial, checagens de documentação, esculachos, piadas racistas e insultos gratuitos por parte da vigilância. Esta, nas áreas centrais das grandes capitais, era feita pelos Jovens Falangistas, garotos de famílias de classe média entre 16 e 22 anos, treinados e doutrinados pelo Estado Brazileiro para manter a ordem, a moral e os bons costumes nas cidades. Hipócritas. Sempre que os olhava nos olhos podia sentir o desprezo, por sua roupa, sua cor, seu cheiro, o lugar de onde vinha. Ao contrário desses, não conseguia sentir nada, nem ódio, nem pena, apenas... Impotência.
A entrada da WCM Motors era composta por duas guaritas de verificação veicular, ao lado de seis catracas para entrada de trabalhadores a pé. Um galpão pré-moldado de metal e concreto de oito metros de altura e 200 metros quadrados fechava o quarteirão. Atravessou a entrada e se dirigiu para seu lugar na linha de produção juntamente de um batalhão de proletários. No meio desses era só mais um, só mais um invisível. Colocou seus protetores auriculares e esperou a esteira ligar. Pelas suas contas, ao menos mil pessoas trabalhavam nesse galpão, e ao lado desse, mais três galpões completavam o gigantesco complexo da WCM, uma das maiores fabricantes de automóveis no país. Nunca vira os donos, nem sequer sabia o nome dos sujeitos, mas sempre que pensava sobre, conseguia imaginá-los, enxergá-los em suas mansões nos bairros onde nunca poderia pisar, com ternos que valiam mais que seu salário, sorrisos largos no rosto, os pescoços gordos e rosados, uma madame nua na banheira cheia de espuma, os empregados servindo um suculento jantar. Ultimamente pensava demais...
- Verificação, vamos anda, levanta! - chamou em um megafone com uma voz chiada e eletrônica – ainda estão dormindo? Pelo amor de Deus é quase 6 e 40! - um homem mirrado em um colete caminhava por entre as várias linhas de montagem, em suas costas podia se ler “líder”. – Seguinte, o pessoal da qualidade acabou de avisar, a produção está muito lenta, e fim de semana tem corte. – Disse segurando uma prancheta com uma mão e um megafone com a outra.
Ouviam-se cochichos e resmungos por todas as linhas. Não era a primeira vez que acontecia, na última semana, mais de cem foram pra rua, sem ressarcimento, sem acordo. Apenas a justificativa de não atender aos parâmetros da empresa, mas todos sabiam, havia milhares de desempregados por todo o país que aceitariam serem contratados por um valor mais baixo do que recebiam os funcionários antigos.
- Outra... – começava a notar um tom de felicidade em sua voz, um estranho sentimento de injúria lhe perpassou o corpo. - talvez o salário atrase, por que não conseguimos entregar o número de produtos que os compradores exigiram, estão satisfeitos? Quem não estiver batendo as metas, vai ter que se resolver no RH. – silvou o homem, fazia um barulho estranho com a boca quando tocava no megafone. – Todos de volta ao serviço. – finalizou com um sorriso torto, e assim, um turbilhão de vozes aos poucos se silenciou, dando vez ao barulho metálico das máquinas.
A linha de produção de uma empresa tem a função de acelerar o processo fabril, com esteiras girando em velocidades reguláveis, e cada funcionário ao longo destas tem um objetivo específico. Renê cuidava da parafusadeira, e sua função era simples, monótona, robótica, e cansativa: parafusar o eixo do novo Cassius X2, um carro de última geração da WCM. Em outros tempos poderia ter sonhado em ter um desse, levar sua família ao litoral em um fim de semana, com o ar condicionado batendo no rosto e a vista do mar ao descer da serra. Em outros tempos, não esses. Sabia que nesses tempos, a alguém como ele, não era permitido nada, nem mesmo um salário digno.
Um guindaste que atravessava o galpão de fora a fora trazia uma incansável fileira do mesmo automóvel, que ia se construindo pedaço por pedaço, numa precisão fordiana. Pensou em como tudo aquilo era parecido com um formigueiro gigante, e ele uma formiga fazendo seu trabalho em equipe. Um sinal de sorriso passou por seus lábios, desacreditando de seus pensamentos. Colocou a broca firme no buraco onde parafusaria, apertou. Com um pequeno chiado o parafuso girou em sentido horário e se firmou no eixo. Pegou outro parafuso, colocou na ponta imantada da ferramenta e pressionou contra o segundo buraco do eixo e prosseguiu. De novo, e de novo, e de novo. Até os cinquenta primeiros parafusos ainda contava mentalmente, mas se dispersou pensando no futebol do fim de semana. No Morro do Cacau, onde morava, todos tinham seus afazeres nos dias de semana, suas dificuldades, seus infortúnios, mas, ainda assim, ninguém podia lhes tirar o deleite e o sorriso do fim de semana. Povo sofrido, gente da gente, como meus pais, como meu filho, como Dona Eunice.
Percebeu que a parafusadeira emperrara no eixo com o parafuso. Porcaria descartável pensou, igual ele. Forçou o gatilho sobre o eixo, e então ouviu um estalo forte que quase o ensurdeceu. O impacto lhe derrubou de costas sobre uma caixa de estoque cheia de material. Uma escuridão tomou conta de sua visão lentamente, ouvia barulhos abafados de pés. Sentia um calor molhado lhe descendo o rosto e uma dor lacerante na parte frontal do rosto. Em uma fração de segundo, se lembrou de várias coisas que se passaram em sua vida. A gravidez difícil e inesperada da jovem namorada. O assalto mal sucedido, os anos de perjúrio atrás das grades, os espancamentos e insultos, o sorriso no rosto dos agentes prisionais. Sentiu a respiração mais fraca. Tentou um grito de ajuda. Braços firmes o seguraram pela nuca... as palavras não saiam... e então apagou.
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