Pensando alto: Sobre a aversão ocidental à androginia, delicados e afeminados
A essa altura vocês já sabem o que está acontecendo: A Netflix, como sempre, caminha dois passos para frente para dar um para trás, e resolveu que vai colocar o Shun como a Shun na nova animação de Cavaleiros do Zodíaco que eles vão lançar.
Demorou um pouco para cair a ficha para mim. Eu já tinha visto isso antes, gente reclamando, mas agora eu vi que é real e o troço vai sair assim, e eu percebi que isso pelo menos sustenta alguns pontos sobre coisas que eu tenho falado nos últimos anos a respeito desse tipo de personagem — afinal, o Shun é totalmente o meu tipo de personagem, e eu vou criar personagens como ele até morrer.
Para começar, em fevereiro de 2017 eu já tinha feito um mini-artigo sobre a representação fraquíssima de persongens andróginos e afeminados no ocidente. Pois é. E agora a Netflix vai tirar de Cavaleiros a versão original do Shun, que sempre carregou em si uma representatividade que, apesar de o Japão (país homofóbico e machista) não colocar necessariamente como representavidade, enfim, não só sugere uma identificação para várias pessoas do público, como descreve sim um tipo de personalidade que existe, especialmente lá para eles (por mais estranho que pareça para nós). E independente de preconceito, o Japão sempre colocou figuras muito variadas em suas animações e mangás, várias delas à frente de seu tempo, como personagens assumidamente LGBTs, mulheres que mandam na porra toda, etc, em shounens e shoujos (ou seja, em histórias de ficção voltadas para homens e para mulheres).
Esses dias mesmo eu estava conversando com a Juliet sobre isso, dizendo que eu tinha uma paranoia nesse assunto por estar acostumado a ver pessoas expressando estranheza, ou mesmo aversão, a esses meus personagens hiper andróginos, delicados, frágeis, que obviamente sucedem da minha ligação com o YAOI, mas que não deixam de ser reais de alguma forma (ou seja, que puxam características de pessoas reais, tanto do oriente quanto daqui, do ocidente) — porque na literatura LGBT+ hoje em dia não só predominam estórias com protagonistas gays (homens biológicos cisgêneros e homossexuais), como esses protagonistas sempre obedecem, de uma forma ou de outra, normas de aceitação social ocidental: ou são tão bonitos, sarados e pintudos como os atores pornôs (que às vezes usam prótese, desculpa contar), ou são “caras super normais, mas muito bonitos”.
Nisso, o número de personagens transgêneros e travestis é reduzido, e eu tenho visto ou esses personagens sendo sempre colocados como secundários, ou feitos em moldes certinhos demais justamente para que o autor consiga créditos por estar fazendo essa representatividade que sequer parece espontânea, e sim para que alguém diga “Oh, Autorzinho fez um personagem trans!”, porque quase ninguém mais faz, então é diferentão; e nessas estórias você percebe ou um monte de gafes sobre a transgeneridade e a transexualidade, ou vê o autor tentando fugir desesperadamente de certos ditos “estereótipos” — evitando que o personagem seja “desmunhecado demais”, por exemplo, enquanto homem biológico; ou que a personagem seja “machona demais”, enquanto mulher biológica. O problema é que esses são aspectos reais, embora sejam usados como estereótipos na ficção. E aí você vai excluir da existência, da aceitação, pessoas que são realmente assim só porque antes criaram uma caricatura delas? A questão é saber usar essas características sem sustentar o estereótipo caricatural.
Quanto a Drag Queens, apesar da fama de RuPauls, eu nunca li nada ainda, mas deve ter. Cross dressers? Nem a pau. Esquece. E meninos fofos, andróginos, delicados e frágeis? Pior ainda! As pessoas não só rejeitam esse tipo de ambiguidade na aparência de um homem, e esperam que ele se defina como queer, trans, ou sei lá o quê, como tendem a ter uma aversão espontânea contra homens muito delicados e frágeis, embora em personagens femininas isso ainda seja considerado bonito, e até realista, já que temos mulheres de todos os tipos. Mas homens só podem ser fortes e cheios de iniciativa!
É por isso que eu estou bem, bem puto com essa mudança inexplicável que a Netflix até tentou explicar, dizendo que são outros tempos, que é necessário uma representação feminina, etc.
Sim, são outros tempos; mas quando você resolve fazer uma representação por obrigação (e logo eu vou fazer um artigo detalhado sobre isso), sem estudar todas as possibilidades que envolvem o tema da representação, isso vira um tiro no pé, porque a tendência é errar. E errar feio. E se mesmo autores pequenos recebem críticas imperdoáveis a esse respeito, não é a gigante Netflix que vai escapar dessa vigília.
Embora haja sim fãs que ficam de “mimimi” com mudanças e renovações de coisas nostálgicas para eles/nós, a questão do Shun é muito diferente:
Para começo de conversa, o Shun é exatamente o tipo de personagem/pessoa que mais sofre preconceito no mundo todo: o afeminado. Independente da sexualidade dele, ele tem essas características que a gente mais associa a mulheres, que são a delicadeza, o pacifismo (não vou usar a palavra “passividade” para dizer isso), a fragilidade, a meiguice, e a dependência emocional perante uma figura fisicamente mais forte (o Ikki).
Bom, a gente vive no país que mais mata travestis e transexuais, pessoas com as quais o Shun tem características em comum, embora ele seja aparentemente cisgênero e tenha um vestuário típico desses garotos assumidamente “fofinhos” do Japão (o que aqui é considerado “coisa de viado”, de qualquer forma). A questão é que: o homem biológico em si que carrega características ditas femininas, acentuadas, explíticas, tende a ser rejeitado na vida real e na ficção. As pessoas simplesmente acham um porre, porque para elas não é “comum” (na verdade, “aceitável”, mas aos olhos dessas pessoas, procura-se o “comum” para as vivências delas) ver um homem chorando em vez de brigar, chamando pela ajuda de outro enquanto tenta resolver tudo no diálogo. Etc.
Ou seja: Machismo.
E isso é sério. Eu cresci assistindo Cavaleiros do Zodíaco, na Manchete. Eu devia ter uns cinco anos de idade e era obcecado por ele: Tinha camisetinhas, meinhas, alguns brinquedinhos mais baratos. Eu só não tive (ainda!!!) uma action figure dele, porque até hoje é muito caro, embora eu tenha, sim, planos de gastar o meu lindo dinheirinho com isso. Por alguma razão, meus pais nunca ligaram e me davam tudo dele que encontravam. E era difícil de encontrar coisas dele, puta merda.
Porque o Shun, até hoje, é emocionalmente importante para mim. De verdade. Ele é o amor da minha vida nos desehos japoneses, em desenhos em geral. Ele me impulsionou a muitas coisas. Eu comecei a escrever YAOI por causa dele, porque ele e o Hyoga foram o meu primeiro ship oficial, eu lia fanfics e depois fiquei com vontade de escrever, e comecei escrevendo com eles.
Então, estou dando esse contexto para dizer que eu passei a minha vida inteira ouvindo merda sobre o Shun: “Viadinho”, “fresco”, “insuportável”, “o problema não é ele ser viado, é ele não saber fazer nada sozinho e ficar gritando pelo Ikki”.
Em geral, o público de fãs do Shun é feminino. Eu ainda estou para conhecer um homem hetero (e gay cis também!) que tenha preferência pelo Shun entre todos os cavaleiros. Se você é essa pessoa, apresente-se, porque quero muito saber que você existe.
Então, remover o Shun masculino-cisgênero de Cavaleiros não só remove a representação LGBT+, mas alguém com características específicas dentro do grupo LGBT+, e que é renegado pelo próprio grupo LGBT+. Quando os homens gays e cisgêneros não demonstram incômodo perto de um homem “afeminado” (para depois chegarem na internet e militar chamando a Pabllo de ícone e assistir todas as temporadas de RuPauls), você vê um desinteresse enorme da parte deles na questão amorosa também: Quantos homens gays se interessam por outros homens afeminados?
Eu entendo que, se tratando de homossexualidade, há uma preferência específica de uma pessoa por outra que tenha aspectos do mesmo do mesmo sexo biológico que ela, e que um homem, para gostar de outro homem que incorpore características ditas femininas, parece precisar ser pelo menos bissexual. Mas, ainda assim, quantas pessoas você ouve dizer que ficariam de verdade com um cara afeminado? Com pessoas trans? Mesmo homens trans têm uma rejeição em que eles deixam de servir até para serem beijados por outros homens, independente de terem barba ou não.
Outro ponto problemático sobre essa “conversão” do Shun em uma mulher biológica:
Se converter o Shun em mulher coloca uma mulher como representatividade feminina dentro do desenho (apesar de Cavaleiros ter não só Athena, mas várias amazonas), como vai ficar a personalidade dela? Se ela vai ter a mesma personalidade do Shun original, significa que ela vai tentar resolver as coisas na conversa e ficar gritando pelo Ikki? E virar a “personagem feminina que precisa ser salva sempre” de novo? É isso mesmo? Ou eles vão pelo menos ter a decência de mudar completamente o personagem e fazer uma mulher independente, sem a ajuda do Ikki? Mas, aí, vai ter Ikki, o queridinho dos machos? E mesmo se ela lutar, sendo forte, ainda corre o risco de o Ikki aparecer? Como eles vão construir essa relação Shun e Ikki sem cair no padrão que, aí sim, a gente já cansou de ver, de mulheres que não conseguem se defender nunca sozinhas em uma história de ficção?
Ademais, acredito que havia mil maneiras de colocar representatividades em Cavaleiros sem alterar exclusivamente o Shun. Afinal, por que mudaram só o Shun? Por que o andrógino-delicado virou alvo fácil de conversão? Por que não mudaram justamente o Seiya? Se não queriam irritar os fãs do Seiya (se é que ele tem fãs, insuportável como é), mudassem o Shiryu, por exemplo (que é outro queridinho dos machos).
Só que eu acho que, na real, se formos ver, converter qualquer outro personagem além do Seiya ou do Ikki em uma mulher tornaria esses personagens ainda mais problemáticos: Um Shiryu ou um Hyoga mulher de alguma forma cairia na mesma problemática do estereótipo feminino, porque ambos têm personalidades dramáticas. As pessoas só não chamam eles de dramáticos porque são homens. Se fossem mulheres, tudo o que elas fizessem (furar os olhos e chorar pela mãe) seria considerado drama típico feminino.
E por que o Seiya e o Ikki, os ditos machões, são intocáveis nessa conversão?
Por quê, então, não propor uma conversão do grupo inteiro de uma vez? Ia desagradar um público mente fechada, mas eu mesmo me interessaria em ver.
Mas ainda era possível manter o elenco masculino inteiro e colocar uma representação feminina importante: a Athena/Saori poderia ter mais destaque (e ser menos chata), e eles poderiam colocar as amazonas em mais destaque, ou... ignorar os personagens principais e fazer uma animação só sobre as amazonas! Isso até renovaria a estória, mantendo o nosso prazer de revisitar as temporadas antigas depois.
Bom, a merda já está feita. E pela resposta do roteirista, eles não só não vão arrumar nada, como sequer acreditam que fizeram algo de errado. Se eles não se convencem de ter feito algo de errado, então é bem provável que esse tipo de situação ocorra posteriormente em qualquer outra coisa que o Netflix resolva (estragar) lançar.
Mas, pelo menos, se você é escritor, roteirista, enfim, está inserido na criação de estórias e de personagens, comece a pensar sobre isso.
R.I.P. Shun de Andrômeda e a importância (que nunca se deu) de personagens andróginos, delicados e afeminados.
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