O Livro
Dalila tinha o enorme desgosto de ter perdido a mãe demasiado cedo.
Teve a felicidade de uma infância e adolescência acompanhadas pela mãe, recheadas de carinho e compreensão. Mas quando finalmente chegou à idade adulta e gostaria de lhe retribuir todo o amor e cuidados que recebeu, na infância e juventude, esta faleceu precocemente, de doença fulminante, e Dalila viu-se órfã de mãe, com um enorme remorso, por não ter tido tempo suficiente, para dar à mãe toda a atenção que esta merecia.
Os pais tinham-se divorciado na sua infância, tendo o pai constituído nova família. Pelo que o relacionamento com o progenitor, embora não fosse propriamente conflituoso, era, no mínimo, frio. Razão pela qual Dalida se sentiu verdadeiramente órfã, após a morte da mãe.
Deu consigo a recordar, cada momento passado com a mãe, as brincadeiras de criança, os ensinamentos maternais, os gostos partilhados, as viagens juntas, as velhas amizades.
Havia um longo processo de luto a fazer, cada uma dessas recordações era um passo determinante, para aceitar a morte prematura da mãe e reconciliar-se pacificamente com a sua memória.
Dalida percorreu os livros da mãe, em busca de memórias comuns, de histórias contadas em criança, de obras recomendadas pela mãe, que ela nunca chegara a ler e que agora, finalmente, se predispunha a arranjar tempo para a leitura. Até descobriu livros seus, de infância, a que tinha perdido o rasto e que agora reapareciam, por magia, entre os pertences da mãe.
Era uma chuva de memórias, muitas vezes dolorosas, que frequentemente levavam Dalida às lágrimas. Mas nestas alturas o choro faz falta, ajuda a fazer o luto, a interiorizar a perda e a aceitá-la, eventualmente.
Ao percorrer todos aqueles livros, lembrou-se de um, em particular, que a mãe lhe contou ter lido na infância e a ter marcado muito, chamado o Escaravelho do Diabo.
A mãe por diversas vezes quis ler-lho, mas nunca o conseguiu descobrir na sua colecção, tendo-se convencido que o teria perdido, ou emprestado a alguma amiga de infância, que nunca mais lho devolveu.
Também Dalida revolveu tudo, em busca dessa obra perdida, mas sem qualquer sucesso.
Um dia, passando por uma livraria, perguntou por alguma edição recente da obra, mas disseram-lhe que, há muito, não era editado em Portugal, apenas no Brasil, sendo por isso necessária a sua encomenda e importação do Brasil.
Não se deu ao trabalho, por ter tantas outras coisas mais importantes e urgentes, na altura, para fazer. Dar conta do espólio, deixado pela mãe, pois tinha seis meses para entregar a casa ao senhorio e não sabia o que fazer a tanta coisa, ainda por cima com elevado valor sentimental.
Felizmente contou com o apoio do companheiro e de algumas amigas, que muito a ajudaram naqueles momentos difíceis.
A pouco e pouco foi selecionando as coisas, levando para sua casa o que tinha maior valor, económico ou sentimental, vendendo muitas coisas e oferecendo outras, às amigas ou familiares.
Foi um período traumático, para Dalida. Os efeitos da perda da mãe exponenciaram-se, naquela exposição quotidiana ao passado, aos objetos pessoais e íntimos da mãe, às memórias de uma infância distante, perdida para sempre.
Quando finalmente terminou o trabalho e entregou a casa ao senhorio, Dalida sentiu um enorme alívio, como se tivesse acabado de cumprir uma pena ou sido achada curada, após uma doença grave e prolongada.
Sentia que, finalmente, começava a fazer o luto da mãe. Agora já poderia concentrar-se nas boas memórias, nas recordações felizes, nas lembranças pacíficas, que lhe aqueciam o coração. Esquecer a doença, o funeral, a casa cheia de recordações, de tralha para remover.
Sucedeu, passados alguns meses, Dalida deslocar-se à feira do livro, como era seu hábito. Ao passar pelo corredor dos alfarrabistas, lembrou-se do velho livro do Escaravelho do Diabo e tentou descobrir um exemplar, entre os muitos livros expostos.
Perguntou a um expositor pela obra e ele disse-lhe ter um exemplar na loja. Se ela quisesse passar por ali no dia seguinte, ou deslocar-se á sua loja, poderia comprá-lo.
Dalida ficou extremamente feliz. Finalmente teria oportunidade de ler aquela obra, que a mãe tanto lhe falava, e que marcara, indelevelmente, a infância materna.
Combinaram reencontrar-se, no dia seguinte, no mesmo local.
No dia e hora combinados, lá estava Dalida, impaciente, em busca do Escaravelho do Diabo. O homem não se esquecera. Estava ali, separado e embrulhado, à sua espera.
Dalida pagou e não resistiu a abrir de imediato o embrulho, para desfolhar aquela obra desaparecida, que tanto impressionara a mãe.
Era um livro antigo, uma edição manifestamente manipulada e usada por muitas crianças, ao longo de cinquenta anos ou mais.
Ao abrir as primeiras páginas, viu mesmo escrito a caneta, com letra de criança, o nome de Aurora.
As lágrimas vieram-lhe imediatamente aos olhos.
Era o nome e a letra da mãe.
Aquele era precisamente o exemplar perdido, que a mãe lera em criança, que tanto buscaram, ao longo dos anos, e que, por algum motivo, viera parar às mãos daquele alfarrabista, décadas depois.
25 de Fevereiro de 2023
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Livro em Bom Estado
Editora Teorema | < 200 páginas
7€ Envio Grátis para Portugal
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" Ela chega de uma ilha que desejou construir o paraíso... Assim começa, e assim acaba, este romance cru e desesperado de Zoé Valdés, indubitavelmente a voz mais original e expressiva surgida na América latina, nos últimos anos. Pátria, a protagonista, chama-se assim porque nasces no ano em que a Revolução triunfou em Cuba. Representa a primeira geração dos que nasceram e cresceram num sistema que deveria banir para sempre a injustiça. Porém, os anos goram passando e o paraíso prometido torna-se um inferno de frustração e penúria, de apatia e desespero, do qual todos, adeptos e cépticos, amigos e inimigos, se sentem prisioneiros. Perante a desoladora real idade, Pátria, que prefere que lhe chamem Yocandra, procura na escrita, com a raiva que se segue à impotência, um caminho que a liberte do ameaçador vazio. Revoltando-se contra a submissa paixão que a liga a dois homens, o Traidor e o Niilista, Yocandra submerge-se no labirinto do nada e escreve, sobre si própria e sobre os outros, sobre o quotidiano e o banal, sobre o passado e o presente, para se vingar, escreve até que as palavras se apoderam dela e a empurram para um futuro desconhecido e incerto, no qual brilha ténue a última luz da esperança. "
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