P.O.V Flashback - Family Problems
Uma carta deixada sobre a cama. Sem remetente, apenas com o destinatário. O envelope delicadamente colado, sem deixar qualquer rebarba.
O selo Hermex de envios feitos por mortais. O conteúdo da carta era peculiar:
"Aidan, me encontre no arco, domingo, 7 de julho, às 10:00hrs da manhã."
O filho de Ares fitava os escritos como se houvesse algo a ser desvendado ali. Uma mensagem subliminar ou um traço da identidade do escritor, qualquer coisa era melhor do que o enigma perante seus olhos. Não havia obtido dias de paz desde que retornou em definitivo para o acampamento e aquela carta parecia um convite para um novo problema que, ao menos, parecia opcional.
Ele poderia muito bem ignorar aquela carta, jogar o envelope no lixo e seguir os seus dias no caótico acampamento meio sangue, pois entre traidores e assassinatos, existia espaço para os dramas pessoais de cada um.
Mas nós sabemos, o que há de corajoso em Aidan, há de curioso. E ele não perderia aquela fofoca.
Durante a noite do dia seis, cogitou não ir. Guardou a carta entre as páginas de seu diário e se deitou. A cabeça parecia pequena para tantas hipóteses que surgiam perante seus olhos.
E se fosse alguém relevante?
E se fosse uma proposta dos antigos parceiros de profissão?
E se fosse um informante com detalhes sobre o traidor?
Quando deu por si já estava vestido com o uniforme dos patrulheiros, guardando a nova espada em sua cintura e ajustando o colete em seu peito. Lá estava ele, uma hora antes do programado.
O local escolhido parecia muito simbólico para Aidan. O arco era próximo da fronteira, um monumento rochoso criado com a estética grega a qual todos esperavam, os dizeres entalhados no topo pareciam estranhamente cintilantes naquela ocasião e as tochas que rotineiramente iluminavam aquela entrada já se encontravam apagadas. Um espaço de chegadas e despedidas, onde tantos semideuses adquiriram uma nova carga de responsabilidades e experiências, onde deixavam suas versões mortais para trás.
O filho de Ares encostou as costas no pilar, com os olhos fixos na fronteira, esperando que algo ou alguém se aproximasse, convicto de que, seja lá o que fosse, não o veria ali, mas ele poderia ao menos sanar as dúvidas acerca da autoria daquele convite.
Aos poucos notou que alguém se aproximava em passos lentos, poucos minutos após o informado. Aidan sempre valorizou a pontualidade, mas naquele cenário, podendo obter algo inesperado da vida, optou por permanecer.
Manteve os olhos fixos nas silhuetas que caminhavam em sua direção e, conforme se aproximavam, conseguia precisar mais características daquelas pessoas. Duas adolescentes, consultando um celular e discutindo entre elas se estavam no local certo. A mais baixa, que possuía fios cacheados e ruivos, carregava um colar chamativo com um pingente espiritualista e vestia uma roupa hippie típica dos anos setenta, já a mais alta possuía cabelo ondulado e escuro como a noite, seu olhar castanho era estranhamente familiar, carregava nas mãos um caderno antigo, bem junto ao corpo, como se ali houvessem segredos sagrados.
A imagem era peculiar para Aidan que, ao cogitar se tratar de uma emboscada, puxou sua espada e preparou-se para o contato, mesmo temendo pela ação tão isolada em um local distante dos demais. Seu movimento foi suavizado ao ver a infantilidade descrita nas expressões das meninas. Eram inofensivas ao ponto de tropeçar nas raízes altas do pinheiro que estava em seu caminho, ingênuas o suficiente para gargalharem, no meio de uma floresta fechada, como se o ambiente fosse seguro para isso.
Elas eram apenas duas meninas que procuravam por algo.
"Espera! É aqui!" A ruiva alertou quando estava há alguns passos de distância da fronteira. "Ela tinha dito que era só vir aqui nesse horário e falar."
"Olha Ellie, eu entendo que você goste da minha mãe, mas... Não acredito em tudo aquilo que ela diz e você também não deveria." A morena parecia incerta com a aproximação, um tanto apreensiva com os próximos passos. "Ela não diz coisa com coisa e..."
"Você só precisa tentar. Só isso. Ela disse que precisava da nossa ajuda e já estamos aqui, viemos de muito longe apoiando os desejos dela e esse é o momento. Ela pode ter uma boa memória aqui, pode ser um local importante de fato para ele."
"Importante? Nada parece importante para ele!"
"Por favor... Tente."
Um longo suspiro.
Aidan guardou a espada em sua bainha, caminhando para perto da fronteira, com os olhos vidrados naquela dupla tão peculiar. A morena aparentava possuir uma mescla conhecida de emoções, insegura e raivosa, abraçando o caderno contra o peito e olhando na direção do filho de Ares, como se pudesse vê-lo ali. Por um segundo o fez questionar se, de fato, ela estivesse enxergando o guerreiro por detrás da névoa.
A menina pareceu reunir forças, motivada pelos olhares afetuosos da ruiva. Mais um suspiro e iniciou.
"Olá Aidan. Meu nome é Nessa, Nessa O'Keef. Sou sua irmã. Estou aqui pois mamãe. Ela está internada em um hospital psiquiátrico depois de ter um episódio psicótico grave e... Ela acredita que você está vivo e que merecia saber sobre a vida dela."
As pernas do filho de Ares enfraqueceram momentaneamente com as informações, sentindo o amargo das informações atingirem seus estômago em cheio.
Quando saiu de casa aos treze anos de idade, em busca da segurança incerta das ruas, não mais teve contato com sua mãe ou com o universo familiar. Até então, acreditava que sua mãe finalmente teria encontrado a alegria em viver com o homem que havia escolhido, que havia apagado de vez os rastros da existência de Aidan e que jamais teria se importado com o primogênito já que a mulher jamais abriu queixa de seu desaparecimento, um procedimento esperado por alguém que exercia poder sobre o adolescente. Impactado, Aidan encarava sua irmã mortal, boquiaberto, imóvel.
"Eu não consigo entender o motivo pelo qual foi embora, o motivo de ter abandonado a gente. Você me salvou sem nem ao menos saber que eu estava na barriga da mamãe, você poderia ter aguentado mais, ter ficado até o meu nascimento, poderia ter me conhecido, ver como as coisas mudaram... Mas você sumiu." A voz da adolescente ficou embargada, trazendo um choro selvagem para sua face. "E eu não era o bastante para ela. Mamãe enlouqueceu por isso, começou a falar sobre lendas, sobre o seu pai e sobre o amor dela por vocês. Ela se tornou hipocondríaca, sempre medindo minha temperatura, sempre me chamando pelo seu nome, sempre perguntando sobre sintomas imaginários. O meu pai foi embora antes do meu nascimento, ele não aguentou ver ela nessas condições. Foi o começo do fim, Aidan. Ela enlouqueceu completamente, dizia que íamos fugir com o seu pai, que ele vinha visitar ela durante a noite, que trazia informações sobre você... E ela chorava muito, Aidan. Ela chorava querendo você. Ela chora até hoje querendo você."
O filho de Ares permanecia estático.
As lágrimas não conseguiam despencavam dos olhos marejados, os pés pareciam concretados no chão, a mão apertava o cabo entalhado de sua espada, questionando mentalmente se existia veracidade em cada uma daquelas palavras, se poderia levar em conta aquele discurso tão emotivo sendo proferido por uma adolescente que deveria ter a mesma idade que ele à véspera de seu desaparecimento. Mas era impossível que houvessem inverdades ali. As inúmeras dificuldades vivenciadas por Nessa e por Aileen, Aidan via honestidade nos olhos escuros da menina, uma honestidade brutal.
"Eu sou uma idiota por estar aqui, uma idiota! As coisas seriam mais fáceis se você estivesse comigo e você não está. Você nunca esteve." Ellie se aproximou de Nessa, trazendo-a para um abraço acolhedor, mas foi recusada pela garota que, secando as lágrimas, permitiu que o semblante triste se transformasse em ódio. "Tudo isso por sua causa. Você nunca ligou pra ela, nunca! Ela perdeu décadas da vida dela escrevendo um diário pra você, uma vida de fantasias para um filho morto!"
O caderno, antes agarrado em seu peito, foi lançado na direção da barreira, atravessando o perímetro mágico e colidindo contra o arco ao lado do semideus, que permaneceu mudo.
Sua cabeça era inflada com inúmeros questionamentos, compartilhando da dor da irmã mais nova que chorava ruidosamente com o próprio desabafo. Pôde ouvir, dentro de si, a intuição apontando o caminho para as respostas. Aidan desviou os olhos dos rosto da irmã por um segundo, encarando o diário no chão, com folhas sobressaindo entre as páginas, demonstrando que haviam documentos soltos entre os papéis.
Nessa tornou a discorrer sobre as experiências, sobre as angústias e sobre as pequenas conquistas que surgiram no percurso, mas ressaltava o tempo todo o possível falecimento de Aidan, provavelmente a desculpa apresentada pelo padrasto do filho de Ares.
Aidan piscou finalmente, deixando que a cachoeira corresse livremente, cada vez mais afoito, se aproximando da barreira mágica com temor. Dentro de si, implorava para que o domo mágico caísse momentaneamente, que por um segundo pudesse cruzar a proteção para abraçar Nessa e conduzi-la para debaixo de suas asas, onde protegeria ela do mundo e do caos, podendo resolver as pendências que a assustavam. Sequer reparou quando começou a implorar pela piedade de Hera, sua avó divina, rogando para que ela cuidasse de Nessa e de Aileen como cuidava de Aidan. Quando deu por si estava ali, de joelhos, prostrado perante a irmã, compartilhando da dor que se instalou no local.
Chorou pela sua criança interior. Chorou com a culpa, o medo, a raiva e todos os sentimentos conflitantes que habitavam em sua cabeça. Chorou, chorou e chorou, ao ponto de não notar que Nessa foi conduzida para fora da floresta, longe de seus olhos.
Ao se recompor, agarrou o diário de sua mãe nas mãos, folheando as páginas e se deparando com a vastidão de detalhes descritos nas folhas. Secou as lágrimas, recolheu seus pedaços e retornou para o seu chalé, guardando o diário em sua gaveta, esperando pelo momento em que iria ler aqueles escritos.
Sua história seria recontada.
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