[SESSÃO CRÍTICA] "Guará": um lobisomem goiano em Tiradentes
A ironia da primeira imagem de "Guará" (2018), curta-metragem de Fabrício Cordeiro e Luciano Evangelista, joga no colo do espectador o tom vermelho-sangue dos próximos 20 minutos de exibição: um lobo-guará empalhado colocado à frente do Instituto Rizzo, na Avenida Cora Coralina, em Goiânia, rodeado por dezenas de frases pintadas em vermelho sobre a violência contra a mulher. No plano fixo, entra uma mulher desconfiada, sozinha. Apressa o passo ao reparar em um carro estranho que encosta ao seu lado. O lobo observa tudo. Temos aqui o nosso protagonista: a violência urbana, que em poucos segundos se traveste de normalidade.
Mas o curta não tem pretensão de ser um novo "Som ao Redor" (de Kleber Mendonça Filho), embebido em sua falsa espontaneidade vestindo a toga da onisciência. Os diretores querem brincar com gêneros cinematográficos, e aqui metaforizam a tensão e a desconfiança sociais numa figura insólita: um homem que se transforma num enorme Lobo Guará.
A cidade tem papel fundamental no filme. É impressionante - e dá um tempero muito especial às cenas - identificar ruas e avenidas da capital goiana na tela, com um plano sequência de gosto duvidoso no trecho final - emulando inclusive o gameplay de "Streets of Rage 2" - culminando numa das cenas mais épicas e absurdamente espetaculares do cinema goiano até o momento [atenção para o spoiler!]: o Guará escalando o monumento ao Bandeirante, na Avenida Anhanguera (um dos mais importantes da capital). Coisa finamente trash.
O resultado é um filme que não se leva a sério, porque a pretensão claramente esboçada pela trilha de abertura - a canção tema do jogo de Mega Drive "Streets of Rage 2", composta por Yuzo Koshiro - é a de invocar um certo clima trash oitentista, típico de filmes como "Razorback - O corte da navalha" (1984), "Breeders" (1986), "Criaturas" (1986) ou mesmo "Brinquedo Assassino" (1988). O perigo - ainda que de origem sobrenatural - se camufla perfeitamente na rotina comum da metrópole. A sequência de abertura, com cenas da cidade à noite, cimenta essa tensão.
Tá ok, o roteiro tem suas falhas: como explicar minimamente a origem do Guará? O lobo empalhado transformou o homem? Fatores genéticos? Acidente radioativo? Porque nunca apareceu antes na cidade? O surgimento de uma ameaça nova, num contexto já violento, é um fator importante para estabelecer uma plausibilidade e um pé na realidade - característica básica de qualquer primeiro ato. E o garoto atacado no beco? Por que uma criança iria brincar sozinha àquela hora? De onde ela surgiu? A referência a filmes como "A coisa" e "O vampiro de Dusseldorf" está lá, mas falta o lastro mínimo no roteiro. O mesmo em relação a casal de namorados - que já está dentro do carro e decide sair quando o monstro aparece. Quem é que escolheria sair daquele carro? São lastros simples na realidade que o roteiro acaba deixando de lado, evidenciando um pouco caso - intencional ou não - com detalhes demais, explicações demais. O filme quer ir direto ao que interessa: sangue.
Também a fantasia do Guará poderia ter ficado um pouco melhor. Os olhos vermelhos brilhando no escuro dão um efeito muito legal, e os planos-detalhe ou fechados de modo geral, aliados à montagem dinâmica à la John Landis (diretor do videoclipe de "Thriller", de Michael Jackson, e de "Um lobisomem americano em Londres") impulsionam a tensão do filme. Mas essa tensão é frequentemente quebrada ao mostrar o monstro inteiro, claro e explícito, transformando-o numa espécie de integrante esquizofrênico da Carreta Furacão.
Defeitos à parte, os diretores conseguem manter a coerência da proposta, ancorados sempre na montagem, na fotografia sempre competente de Larry Machado, na atuação impecável de Rodrigo Cunha, Valeska Gonçalves e Tothi Cardoso. Diálogos fluídos, planos muito bem feitos (inclusive um memorável de Sidi Leite estripado), tudo conforme o figurino manda. Um terror com a cara de Goiás. Entrar na brincadeira também faz parte da experiência do espectador. E que brincadeira fantástica!
TRAILER
Entrevista
Fabrício Cordeiro e Luciano Evangelista, diretores do curta-metragem Guará
- Diante da flagrante intenção de brincar com gêneros e fazer referências a obras cult e clássicas do passado, é impossível não perguntar: "Guará" teve influência mais direta de algum diretor ou obra específica?
Luciano: As principais foram essas que você apontou mesmo. Streets of Rage no tom e atmosfera do filme, de violência urbana divertida e colorida; e John Landis num sentido utópico de cinemão inatingível, e por isso mesmo, a brincadeira de querer/fingir ser.
Surgiam ideias, aí eliminávamos o que concordávamos que era paia. Ou um de nós tentava defender como a ideia era interessante, mas sempre chegávamos em um ponto-comum. Isso aconteceu em todas as fases: ideia, roteiro, filmagem (com ideias que surgiam na hora) e montagem. Mas algumas coisas já tínhamos na cabeça: que o filme tinha que ser divertido e manter a luz natural da cidade ao máximo.
Fabrício: Um outro filme que trouxe a referência de como queríamos filmar o lobisomem é o "Alien", do Ridley Scott - o primeiro. Ele tem isso, de nunca mostrar o Alien inteiro, só partes dele. Na abertura do filme, em que aparece a cidade a referência é "Um Dia de Cão", do Sidney Lumet.
- Como foi dividir a direção, roteiro e montagem, tendo de conciliar tantas possibilidades de referências e influências?
Luciano: A gente parte de um impulso conjunto de querer fazer um filme de lobisomem. A partir daí fomos pensando o que esse bicho faria e quem ele mataria. Aí entra naquela negociação do que cada um gosta e quer ver no filme, e aos poucos vamos fechando qual será o tom do curta e o que ele dirá. De início junta um monte de coisa e depois vai eliminando o que é destoante demais
Fabrício: Tanto Luciano quanto eu, gostamos muito de filmes de gênero, de horror. Havia a ideia de fazer o filme de lobisomem e rapidamente já concordamos com muita coisa. A gente já tinha o final pro filme. Mas tudo muito simples: sem explicação de onde o lobisomem surge, só uma besta, uma fera, matando no centro de Goiânia.
- "Guará" foi um dos filmes goianos exibidos na Mostra de Cinema Tiradentes deste ano. Como foi a experiência?
Luciano: Foi uma bela exibição na praça, ao ar livre. Pessoal deu muita risada e algumas crianças choraram. Foi bem legal o Festival ter apostado nesse apelo popular que o filme pode ter. É uma coisa que a gente sempre teve na cabeça: que o filme fosse divertido.
Fabrício: A praça geralmente é um lugar mais popular. A gente queria que o filme tivesse a pegada mais pro horror, com sangue, mas também com uma pegada popular e aceito dessa forma. Um dos nossos desafios, em toda a realização do filme, era pensar como conciliar isso. A gente queria que o filme deixasse claro que ele não se levava à sério e colocava o riso. Como o Luciano disse, teve muita reação diferente e foi bom acompanhar isso. Na praça sempre dá muita gente e isso também foi muito bom.
- Sendo o filme impregnado de certa goianidade, conseguiu causar em Tiradentes o mesmo impacto num público que poderia ser, para esses efeitos, considerado como externo?
Luciano: Algumas pessoas vieram perguntar da estátua, querendo saber mais. Mas ainda que eles não identifiquem o Bandeirante, é fácil a associação dele com a figura do colonizador, ou ainda simplesmente uma figura do mal. Os demais aspectos de afirmação regional a galera curtiu, parece haver um entendimento de que é natural encontrar esses elementos tão regionais nos cinemas emergentes de fora do eixo.
Fabrício: A única coisa que ficava um tanto enigmática - no sentido de história e significado – é o que seria, exatamente, aquela estátua. A gente dá importância e pontua ela ao longo do filme até, de fato, chegar nela. É uma estátua que representa um passado, como a maior parte das estátuas. A gente nunca quis que esse entendimento fosse didático e nos interessa que ele suscite essa interrogação na cabeça das pessoas: ‘que estátua é essa, que esse plano-final está dando tanta importância?’. E talvez até fazer as pessoas se sentirem mais interessadas em vir nos procurar para conversar sobre isso, ao invés de dar uma explicação didática, que não era nosso interesse.
- Muitas cenas se passam no centro de Goiânia, há referência à Guarda Civil Metropolitana, e tem aquela cena espetacular do Guará escalando o Monumento ao Bandeirante, na Praça Atílio Correa Lima. Como foram as negociações com a Prefeitura de Goiânia para autorizar as filmagens?
Luciano: De nossa parte, como diretores, foi muito fácil. Nós pedimos isso pros nossos produtores (que são a Suelen Corsino e o Tothi Cardoso) e eles agilizaram. Tanto que nem sei quão complicado foi.
Fabrício: Realmente foi muito simples, porque nós pedimos à Suelen e o Tothi e eles fizeram. Pra nós pareceu mais simples do que, de fato, foi para eles. Eu sou fascinado com o trabalho de produção, em que você dá uma ideia meio absurda, do tipo, ‘vamos colocar um cara lá em cima’, e a produção pensa como fazer isso. Eles fizeram um trabalho incrível nesse filme.
Vinculado a isso, a paciência e a disposição do Rodrigo. Ele estava muito empolgado com a ideia e sempre foi a nossa primeira escolha, porque ele tem esse trabalho de atuar com o corpo, que é muito forte. E topou ser colocado lá em cima, há um risco nisso, e ele nunca ofereceu nenhuma resistência e sempre achava as ideias massa. Há uma tensão, de colocar ele lá em cima, com quais níveis de proteção. Nesse sentido, também entra a produção, pra pensar como executar. Essas foram as coisas mais desafiadoras.
Tothi Cardoso, produtor do filme, junto com Suelen Corsino: Cerca de 20 dias antes da data prevista pra gravação, a produção protocolou um ofício no órgão responsável pela administração do patrimônio memorial e cultural da cidade, informando sobre a gravação no local. Com a liberação, não rolou nenhuma complicação para realização das cenas. Contamos com o apoio da Guarda Municipal de Goiânia, que bloqueou as vias próximas aos locais de gravação e garantiu a segurança da equipe no local.
- Qual foi a maior dificuldade na produção desse curta?
Luciano: Com certeza foi o trampo de arte. A Gabriela Richter Lamas, a Ana Simiema, a Wilma Morais, o Mikael Siqueirae o Kaco Olímpio foram muito heróis de levantar esse filme na estrutura e no orçamento que a gente tinha. E o Rodrigo Cunha, o ator, também, de aturar todos os dias a produção e desprodução do monstro, que levava horas.
Fabrício: A arte, com certeza. Sempre tivemos na cabeça que, em algum ponto, iríamos mostrar o lobisomem inteiro. Haveriam os truques de montagem, de filmar de uma forma distante, nebulosa, escondida, rápida, para não revelar tanto. Mas havia um interesse de que ele aparecesse por inteiro, também. O trabalho do pessoal da arte, realmente, foi muito bom e muito importante, eles eram cruciais.
- Há um distanciamento enorme entre "Guará" e "Leblon Marista" - outro filme da dupla Cordeiro/Evangelista - em questão de proposta, roteiro, estilo e tudo mais. Qual deles é mais a praia dos diretores?
Luciano: Eu gosto muito de horror e de documentário. Isso do gênero não influencia muito na hora de criar. Cada ideia é uma ideia.
Fabrício: Eu acho que, assim como Luciano, não tenho nenhuma resistência a nenhum dos dois. Mas acho que seria mais a minha praia algo vinculado ao que é o Guará. Gosto muito de filme de horror, de ficção científica. Mas não gosto de pensar que se tem que fazer um tipo de filme, o cinema pode ser interessante de várias maneiras.
Pensando na distinção entre os dois filmes: o Leblon Marista é um filme sobre uma ideia de um edifício, um empreendimento imobiliário. É um filme interessante, mas não sei se é o tipo de tema ainda me moveria hoje. Embora eu ache Leblon Marista um filme interessante, que fizemos com a ideia e o material. Ele foi feito pouco tempo que fizemos uma oficina de documentário com o Marcelo Pedroso e surgiu a notícia desse lançamento do prédio e aí resolvemos fazer. Tinha um eco de umas ideias que surgiram naquele momento.
- Existem planos futuros na agenda da dupla? Continuar no Cinema Trash está entre eles?
Luciano: Não temos encaminhado nenhum projeto juntos. Eu tenho dois projetos de curta-metragens que não são propriamente horror mas têm uns pontos fantásticos. Mas ainda estão em fase de edital, tudo muito inicial.
Fabrício: Planos concretos, não. Acredito que o vínculo do horror e do trash, possivelmente. Essa coisa do nosso trabalho, de fazer filmes juntos, surge a partir de alguma ideia de fazer juntos. Não é necessariamente uma obrigação de trabalharmos juntos. Me interessa trabalhar próximo de gente que eu já conheço, que já são amigos. Mas mesmo que eu faça filmes sem, necessariamente, dirigir ou roteirizar com o Luciano, ele sempre será minha primeira opção como montador.
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